terça-feira, 20 de outubro de 2015

O novo pacto lulista (Marcos Nobre)

19 de outubro de 2015




Depois de nove meses de crise aguda, o quadro agora se tornou apenas crônico. Instalou-se um governo-tampão dentro do governo Dilma. Seu primeiro horizonte são as águas de março de 2016. A atual recessão política crônica deve continuar a acompanhar a sua irmã gêmea, a recessão econômica prolongada, e o ajuste político será pago em prestações, da mesma forma como o ajuste fiscal e econômico. O que pode indicar que o atual arranjo talvez não seja exceção, mas regra de razoável duração. Pode ser uma espécie de experimento piloto do que virá: algo como dois ou três sucessivos governos de seis meses, cada um com seu horizonte, agenda e desafios.

O primeiro e mais urgente desafio da agenda deste primeiro governo-tampão é colocar alguma ordem nas contas públicas. No grau que for possível, da maneira como der. Porque uma característica marcante do novo pacto lulista em prestações é um radical rebaixamento das expectativas de ajuste. Por ter sentido no rosto o bafo do colapso econômico, o mercado se rendeu a qualquer arranjo de estabilização, desde que dure mais do que uma semana. Praticamente abriu mão, mesmo que de maneira provisória, de exigências que considera habitualmente inegociáveis, como a de um ajuste que indique sustentabilidade de médio prazo, por exemplo.

O desespero chegou a tal ponto que uma estabilização de seis meses se tornou o equivalente de equilíbrio sólido. Não por acaso, até defesas apaixonadas da CPMF se multiplicaram, vindas de onde menos se poderia esperar. Não que adiante muito a esta altura, já que a CPMF parece mesmo enterrada. Mas é um sintoma importante da Síndrome de Estocolmo do mercado, que passou a defender com veemência o mesmo sistema político que o sequestrou nos últimos meses.

A rendição do mercado mostra que as expectativas se reduziram agora a estancar a sangria. Se o governo conseguir impedir que o rombo de 2015 pare de aumentar e se conseguir convencer de que o buraco de 2016 não vai ser assim tão grande, já terá conseguido o apoio da elite econômica de que precisa para atravessar esse primeiro mandato-tampão. A abdicação de Dilma em favor de Lula significou a volta de um fiador crível, do ponto de vista do mercado. No velho estilo dos seus dois mandatos, Lula promoveu a celebração de um pacto que promete manter o sistema político e a base da sociedade sob relativo controle sem desesperar a elite econômica. Só que, desta vez, o mercado vai ter de aceitar as condições escorchantes impostas pela bancarrota política.

Porque Lula tem também de combinar com o povo que sofrerá os horrores da recessão prolongada e com as suas próprias bases mais tradicionais de apoio. Esse é o segundo desafio mais premente. Joaquim Levy não é ele mesmo o problema. É apenas um símbolo do governo anterior de Dilma, o da crise aguda. Pode ter de ser afastado para marcar um novo começo. Nada pessoal.

Lula tem de entregar o prometido em termos de relativa calmaria social e política. O sistema político continua se esfaqueando pelos cargos de segundo escalão. Não se trata das navalhadas de sempre, porque agora a máquina pública foi declarada terra devoluta, sem qualquer cordão sanitário de proteção nem mesmo para áreas de mananciais. Mas, dentre mortos e feridos nessas disputas de grilagem, cercas e porteiras vão acabar sendo erguidas em algum momento próximo.

Do lado do sofrimento social, a orientação será de reforçar na medida do possível mecanismos de proteção ao emprego e à renda, de reduzir juros e de aliviar o compulsório dos bancos, além de retomar um patamar mínimo para o investimento público, simplesmente dizimado em 2015. Também sob esse aspecto, o mercado se verá obrigado a engolir adicionalmente uma taxa de inflação que já subiu no telhado da meta.

Mesmo sendo implementadas com sucesso, essas medidas não bastarão para colocar a insatisfação social sob relativo controle. Em junho, Lula teria dito que ele e Dilma estavam no volume morto. A queda do nível do reservatório teria feito emergir o verdadeiro fiador da presidente, o próprio Lula, a quem Dilma deveria urgentemente entregar governo se quisesse salvá-lo. Desde então, repete até hoje de maneira insistente que o governo precisa produzir um discurso capaz de dar sentido ao sofrimento presente e de descortinar alguma perspectiva de futuro.

Essa é a principal dificuldade política do momento atual. E não apenas para o presente governo-tampão, que pode jogar a população nos braços das forças anti-Dilma a partir de fevereiro do ano que vem se não conseguir dar alguma explicação e alguma perspectiva de melhora para a desgraça de hoje. Também a turma pró-impeachment tem enorme dificuldade para produzir um discurso crível. Ganha um impeachment de caramelo suíço quem conseguir explicar para a maior parte do eleitorado o que é uma "pedalada fiscal" e convencê-la de que isso seria equivalente a usar recursos ilícitos para pagar contas privadas da casa de um presidente no exercício do mandato, como foi o caso de Collor, em 1992.

Levar o atual governo-tampão até março do próximo ano significa ainda sobreviver à fase de maior turbulência e desorganização da Lava-Jato. Será o momento em que a operação já deverá ter praticamente completado o seu álbum de figurinhas de quem será alijado do jogo. É só a partir daí que o sistema político poderá efetivamente estabelecer acordos que não fiquem invalidados pela próxima leva de denúncias de prisões.

Mesmo com a continuidade da recessão política e econômica, chegar até março permitiria estabelecer um novo governo-tampão para os seis meses seguintes, tendo como horizonte as eleições municipais de 2016. Da mesma forma, passadas as eleições municipais, o horizonte se deslocaria imediatamente para 2018, levando já em conta o novo quadro partidário que resultar das prefeituras conquistadas. Seria o momento em que o prazo do mandato-tampão seguinte poderia então passar de seis meses para um ano e meio. Pode até funcionar. O que não se sabe é o que vai sobrar do país depois disso tudo

(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap

Fonte: Valor Econômico (19/10/15)

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