Há cerca de 15 dias, Lula colocou Dilma diante do fato de que estava para ficar sem base suficiente para enfrentar o impeachment e que se veria obrigada a renunciar. Como fez reiteradas vezes desde 2014, deu-lhe o ultimato de entregar a ele a articulação do governo ou ficar sem condições de governar. Com muito choro e ranger de dentes, Dilma entregou a Lula a articulação. Quer dizer, entregou em dois tempos. Na primeira etapa, há duas semanas, a presidente cedeu ao antecessor algo como metade de seu governo, o mínimo necessário para a formação de um ministério anti-impeachment.
Semana passada Dilma foi obrigada a aceitar que esse movimento seria insuficiente. Travar a guerra do impeachment já seria a derrota, significaria assinar a carta de renúncia, deixando em branco apenas a data. A guerra do impeachment exigiria virar as costas para a economia e para o mercado por pelo menos dois meses. Em um contexto de crise aguda, seria o mesmo que pedir para que o mercado produzisse o ajuste na marra e jogasse o governo no precipício do caos econômico que levaria ao impeachment.
Ficou claro que não era possível separar o movimento de desarme do impeachment da formação de uma base parlamentar ampla o suficiente para permitir ao governo sair de uma posição meramente defensiva. Mas esse segundo movimento Dilma já não tinha mais condições de realizar sem abdicar em favor de Lula. O gesto foi selado pela entrega do último bastião de sua independência, a Casa Civil. A troca de Mercadante por Jaques Wagner não apenas põe Lula na Presidência: significa que Dilma já não tem mais controle sobre seu próprio governo. O que a Casa Civil não processa, não existe. Nem que seja o mais vivo desejo expresso da presidente.
Lula entregou com isso parte do que exigia o mercado: neutralizar Dilma sem o imponderável de uma ruptura como o impeachment. Veio junto uma demonstração importante de comando e controle sobre uma base congressual suficiente para levar o mandato de Dilma até o final. A primeira questão que vem depois da abdicação é saber se o mercado vai se dar por satisfeito, se o afastamento pelo menos temporário do colapso será avaliado como o máximo a que se pode almejar no momento, dando o resto por perdido pelo tempo que for possível. Porque, mesmo deixando de lado o incontrolável das graves incertezas do mercado internacional, o desequilíbrio estrutural das contas públicas persiste.
Os horrores da recessão darão sua contribuição, mas estão longe de resolver. Também vão contribuir, mas não vão bastar, a inflação mais para o lado do teto da meta em 2016 (o que já parece contratado) e o aumento de impostos (em se encontrando substitutos para o bode da CPMF). Mas o mercado pode perfeitamente não se contentar com o simples adiamento do colapso. Passado o susto de uma crise política em estado terminal, o mercado pode agora achar que já existe estabilidade política suficiente para ter o seu "momento PMDB", para começar a exigir ações de ajuste politicamente dolorosas.
Nesse cenário, Lula poderia se ver obrigado a recorrer a uma manobra nos moldes do duplo mortal carpado de 2003. Naquele seu primeiro ano de mandato, Lula saiu-se com uma reforma da Previdência cujo intuito foi produzir um "choque de credibilidade". Na circunstância atual de crise aguda, mesmo uma manobra como essa continuaria sendo insuficiente do ponto de vista do mercado, continuaria não resolvendo o problema das contas públicas esburacadas. Mas mostraria comprometimento com uma das principais "reformas estruturantes" e, sobretudo, demonstraria uma vez mais controle e comando sobre o sistema político. Nesse quadro, Lula acabaria impondo Henrique Meirelles no lugar de Joaquim Levy, acrescentando um requinte de crueldade à abdicação, já que Dilma simplesmente não tolera o ex-presidente do BC de Lula.
Não que o impeachment tenha inteiramente desaparecido do horizonte. Ali por março, abril de 2016, a inflação, o desemprego e a queda da renda estarão no pico do desespero. A Lava-Jato estará no auge do quadro de denunciados. Também não será surpresa se o Congresso do PMDB, previsto para 15 de novembro próximo, acabar adiado em quatro ou cinco meses, para coincidir com esse novo encontro de contas do novo governo. Sendo muito improvável que um processo de impeachment possa prosperar junto com as eleições municipais, o primeiro semestre é a última chance para as forças anti-Dilma. A desgraça ainda maior em que estará o país certamente vai ajudar. Mas, conforme passa o tempo, também o andor do impeachment vai ficando cada vez mais pesado de carregar.
Paradoxalmente, as melhores chances das forças pró-impeachment dependem de Dilma. Se a presidente usar os seis meses de crédito que ganhou com a abdicação para tentar reassumir a Presidência, provocará um movimento de instabilidade terminal de seu mandato. O presente arranjo é sua última chance. Não há volta nem alternativa a ele. Se sobreviver a 2016, Dilma pode até tentar negociar a retomada de algum espaço em seu próprio governo. Mas não mais do que isso.
Do ponto de vista do governo, tudo isso pode ser hoje condição necessária para tentar retomar alguma estabilidade menos instável do que se teve ao longo de 2015. Mas não é condição suficiente para resolver os problemas colocados. E não apenas do ponto de vista do equilíbrio das contas públicas. Mais grave, persiste a quadratura do círculo de conciliar as manobras de ajuste com a resistência social às medidas até agora apresentadas.
Lula jogou até agora de costas para o seu partido e para as bases sociais de sustentação do PT. A articulação aplacou, temporariamente ao menos, o sistema político. Deu um passo decisivo para alcançar o próximo objetivo, estabelecer uma trégua duradoura com o mercado. Falta o essencial, entretanto. Em uma democracia, é preciso produzir discurso e prática capazes de conquistar uma boa e sólida parcela de adesões entre quem trabalha, protesta e vota. Das três etapas, é a mais difícil de alcançar. Esse é o verdadeiro nó da abdicação.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (05/10/15)
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