Os arrastões de praia no Rio de Janeiro e os contra-arrastões da polícia para combater essa prática, inspecionando ônibus em que eventualmente viajam jovens procedentes dos bairros e da periferia com destino às praias, explicam-se por uma mesma lógica. A ideologia de praia, no Brasil, é a ideologia da apropriação por alguns de espaço que é de todos. Nas áreas urbanas, de todas as cidades, há uma sub-reptícia classificação social de senso comum que “põe cada um no seu lugar”. A própria palavra “periferia” é aplicada para definir o que está longe do que é propriamente urbano e civilizado.
Essas classificações atingem seus moradores e a eles estendem, injustamente, atributos de inferioridade social, que acabam sendo considerados indícios de inferioridade pessoal. Isso vale também para “morro” e “favela”.
Daí decorre uma cerca invisível que, no caso das praias, as torna subjetivamente inacessíveis a um grande número de pessoas que carregam alguma marca de diferença. Apesar da multidão que a ocupa, na praia há regras que asseguram o reconhecimento da validade dessa concepção: parece um lugar público, mas não o é. A praia é um faz de conta, uma fantasia.
O aparato de coisas que carregam os que vão à praia, aquilo que o sociólogo Erving Goffman define como equipamento de identificação, torna-a culturalmente inacessível aos que não têm o que ostentar.
De certo modo, esses lugares públicos, ao se tornarem lugares de ostentação, numa sociedade que não é igualitária, dominada pelo discurso da polarização de classes sociais e da injustiça histórica que a fundamenta, acabam sendo usados como lugares de refúgio, mais do que lugares de liberdade. Os arrastantes, por sua vez, procedem do confinamento decorrente e residual daqueles para os quais os lugares de ostentação se tornaram interditados, lugares de suspeição e rejeição. O arrastão é uma forma comunitária e autodefensiva de reagir ao confinamento de classe social, no bloqueio do acesso aos lugares simbolicamente proibidos a quem não pode exibir os signos de pertencimento.
O fato de que os participantes dessas demonstrações coletivas de força sejam adolescentes oriundos dos bairros e da periferia do Rio de Janeiro não significa necessariamente que o façam para apenas roubar. O “arrastão ostentação”, como é chamado nas redes sociais das localidades de origem dos participantes desses atos, indica um exibicionismo juvenil que tem outra motivação.
Independentemente das diferenças sociais que se escondem por trás das ocorrências, nessas exibições os arrastantes completam em casa e no bairro o ato iniciado na praia: quanto mais colares de ouro, celulares e outros objetos de desejo cada um exibir na rede, maior o seu triunfo. Esse é o modo de construírem sua própria fantasia de praia.
As praias das áreas afluentes dessas ações são encaradas pelos participantes como um jardim zoológico, território de caça ao tesouro, lugar de exibição da valentia e da coragem de que os jovens, do sexo masculino, precisam para se mostrarem adultos para si mesmos e para sua gangue. O medo das vítimas, que é hoje um componente da cultura da classe média, dá a esses jovens o ânimo para o exercício do poder e do prazer que podem sentir diante de um adulto de outra classe social, indefeso e aterrorizado.
Os arrastões têm a função de um rito de passagem da adolescência para a maturidade, ainda que pela via errada. O problema não está no rito, mas na forma que assume, por falta de vias integrativas de passagem de uma faixa de idade a outra. A sociedade protege-se contra desvios sociais optando pela exclusão do outro. Entrega à polícia a tarefa de reprimir para protegê-la na omissão que considera um direito. Coisa de sociedade que teve escravidão, em que o capitão do mato enquadrava os insubmissos.
Consciência coletiva. A polícia, na equivocada política de uma abordagem preventiva que é repressivamente cerceadora do direito de ir e vir, acaba confirmando a discriminação e coadjuvando o confinamento exibicionista dos que podem e ocupam as praias. Ao fazê-lo legitima as desigualdades sociais. Age como defensora dos valores da sociedade estamental que subsistem na consciência coletiva, a sociedade da estratificação social rígida que precedeu a relativamente flexível sociedade de classes, a sociedade moderna. É evidente que a igualdade jurídica dos banhistas e frequentadores de praia não fica assegurada por ações que apenas reforçam a concepção de que a praia é um lugar reservado aos que podem ostentar.
É o que torna mais grave essas ações se considerarmos que a polícia do Rio usou como critério abordar menores que estivessem sem documentos, descalços, que não tivessem pagado a passagem. A única arma de que dispõe na prevenção dos arrastões, que sem dúvida são crime, é a do estereótipo e do preconceito. Os mesmos instrumentos da velha Polícia de Repressão à Vadiagem, que foi ativa após a abolição da escravatura para enquadrar na disciplina do trabalho compulsório ex-escravos e imigrantes.
Fonte: O Estado de São Paulo/Aliás (05/10/15)
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