Viver em instabilidade crônica exige muito treino até virar hábito. Apesar de ser regra e não exceção na história do país, a sensação de vertigem dos últimos dez meses foi sentida de maneira muito mais aguda porque um extraordinário surto de estabilidade tomou conta do cenário entre 2006 e 2013. O mensalão, em 2005, foi a primeira crise política em vinte anos que não teve qualquer repercussão relevante na economia. O profundo e duradouro abalo mundial que eclodiu em 2008 foi a primeira crise econômica que não teve qualquer repercussão relevante na política em quase dez anos.
É verdade que Junho de 2013 mostrou que a chapa já vinha esquentando bem antes na base da sociedade. Do ponto de vista democrático, esse período de pouco mais de sete anos foi uma estabilidade de pasmaceira. Não foi tentada qualquer reforma política digna do nome, capaz de reconectar as instituições oficiais de representação a uma sociedade em rápida mudança. Mesmo no sentido mais elementar de funcionamento normal do sistema político, foi um período em que a oposição praticamente desapareceu, em que o sistema se blindou contra a sociedade que deveria representar. O discurso oficial não fez mais do que dizer que a vida iria melhorar indefinidamente.
O que se teve nesses quase dez meses de 2015 foi um choque de instabilidade. Uma espécie de ajuste da percepção coletiva, correspondente ao ajuste fiscal. Quando ocorreu, Junho de 2013 podia ser tanto o início de uma adaptação a certa normalidade caótica que marca a história do país como uma chance de reorganização do sistema político. A eleição presidencial de 2014 produziu a impressão inicial de que pelo menos parte das divisões e insatisfações da sociedade iria encontrar expressão institucional mínima, de que haveria pelo menos situação e oposição, por exemplo. A ilusão durou pouco.
Sem ter se reformado, o sistema político apenas se desorganizou. A Operação Lava-Jato intensificou o processo, provocando a formação de milícias paraparlamentares de autodefesa que não respondiam mais a uma cadeia de comando partidária efetiva. Sobrou apenas um processo intensivo de ajuste da psicologia coletiva a uma desgraça duradoura. Voltou-se à situação recorrente de olhar a instabilidade como um dado da natureza, um pouco como a falta ou o excesso de chuva.
O teste desse antigo novo estado de ânimo virá com o anúncio esta semana pelo governo do tamanho do rombo orçamentário de 2015. Quando, no último dia de agosto, o ministro Nelson Barbosa declarou que seria enviado ao Congresso um orçamento para 2016 com déficit de R$ 30,5 bilhões, pareceu que o mundo iria acabar. Agora, o governo ameaça anunciar um rombo de até R$ 100 bilhões para 2015 e é provável que o mercado só dê uma piscadela. Ficou para trás a sensação de fim de mundo. O fim do mundo já aconteceu. É onde se terá de viver por um bom tempo, é a volta a um padrão bastante comum na história do país.
Assim como antes a euforia sem fundamento, também esse certo estado de depressão coletiva extrema entorpece. Desapareceu do horizonte qualquer expectativa de mudança positiva. O conformismo e a adaptação à instabilidade parecem ter se imposto de maneira duradoura. Por estranho que possa parecer, esse estado de ânimo é o combustível primeiro do novo governo liderado por Lula, que vive antes de tudo de um rebaixamento geral das expectativas.
O segundo combustível do novo governo pôde começar a ser utilizado com a imobilização de Dilma Rousseff. Determinações explícitas da presidente simplesmente não são cumpridas, como se viu em casos como o dos cargos de segundo escalão no ministério dos Portos, por exemplo, em que a Casa Civil ignorou comandos diretos vindos de Dilma. Essa restrição de movimentos da presidente foi o fator primordial que permitiu a retomada da velha tática usada desde o governo FHC de jogar o PMDB do Senado contra o PMDB da Câmara e vice-versa. Isso obriga a multiplicidade de grupos do bazar de interesses do PMDB a se unificar em apenas duas frentes, de maneira a tornar mais efetivos os acordos. Antes dessa reorganização, todo ajuntamento de três ou quatro parlamentares do PMDB e assemelhados se apresentava como tendo justo título para negociar quinhões do governo.
O movimento decisivo de Lula para isso foi trazer o vice-presidente de volta para o governo. Não apenas foram mantidos os ministros próximos a Michel Temer na reforma ministerial como o vice-presidente foi transformado no autêntico interlocutor do PMDB no grupo da Câmara dos Deputados, confirmando de fato o isolamento de direito a que já está submetido o presidente da casa, Eduardo Cunha. Empoderou Temer ao mesmo tempo em que inviabilizou sua posição de ponto de convergência do PMDB. Ao transformá-lo em representante de uma das duas frentes do PMDB, colocou em xeque sua posição de presidente do partido.
Pode parecer estranho, mas o primeiro grande teste da retomada dessa velha tática de dividir de maneira ordenada o PMDB se deu com a filiação ao partido de uma ex-senadora do PT. Em articulação do PMDB do Senado, a Executiva Nacional do partido impôs a Michel Temer a filiação de Marta Suplicy. A articulação foi feita em nome da necessidade de manter maioria sólida na casa. Mas foi principalmente a primeira manifestação visível de que a reorganização está se produzindo. A movimentação atropelou nada menos do que um acordo de longa data celebrado por Temer em seu próprio feudo, um arranjo que tinha com o atual secretário de Educação do município de São Paulo, Gabriel Chalita.
Esse episódio mostra tanto o renascimento de uma divisão organizada do PMDB que permite ao governo negociar de maneira efetiva como indica que o horizonte político já se deslocou inteiramente para as eleições municipais do próximo ano. Uma importante alteração da lei eleitoral fez com que o prazo final de filiação para concorrer às eleições de 2016 tenha passado a ser de seis meses e não mais de um ano. Não por acaso, também os seis meses de sobrevida que ganhou o atual governo.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (26/10/15)