São muitos os ingredientes da crise política: derrota do candidato do governo, Arlindo Chinaglia, na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados; três grandes manifestações de rua, a primeira em março deste ano, pedindo o impedimento de Dilma; queda acentuada da aprovação do governo; várias derrotas do governo em votações importantes no Parlamento; a operação Lava-Jato e suas investigações policiais e processos judiciais que envolvem e eventualmente condenam políticos e executivos ligados aos governos do PT. Para quem frequenta Brasília, um importante ingrediente da crise é a crescente abertura de deputados federais e senadores ao falar em plenário da eventual deposição da presidente por meios legais.
A avaliação de que a crise política é grave é consensual, tanto no governo quanto junto à oposição. Muito menos consensual é a avaliação acerca das origens da crise. Há quem diga que foi plantada na campanha eleitoral, quando a então candidata à reeleição gerou expectativas positivas para a economia que não vieram a se realizar. Há na oposição aqueles que defendem que Dilma venha a público admitir que errou na campanha eleitoral ao gerar tais expectativas. Outros consideram que a crise é institucional, que tem a ver com o padrão de relações entre as empresas, o governo e o financiamento de campanhas eleitorais. Há também quem considere que "é a economia, estúpido" (evocando a expressão celebrizada pelo marqueteiro de Bill Clinton em sua primeira eleição presidencial). Assim, a crise econômica e a consequente redução do bem-estar e do poder de compra da população resultam em queda da aprovação do governo, e isso leva o Poder Legislativo a ficar recalcitrante frente aos interesses do Executivo.
Crise política e crise econômica se retroalimentam. Aprovação presidencial baixa ou em queda faz com que deputados e senadores se tornem, no mínimo, reticentes em seu desejo de estarem próximos ao governo. Isso torna mais difícil obter-se apoio parlamentar e o governo acaba sendo derrotado em votações de medidas importantes para gerar expectativas econômicas positivas. Em seguida, a economia piora novamente, porque os empresários, com a confiança em queda, decidem não investir.
Uma crise política da proporção que estamos vivendo não surge da noite para o dia. Saber o que a causou é o primeiro passo para que ela seja, se não debelada, ao menos mitigada. De novo, no mundo humano, das percepções, dificilmente haverá consenso acerca das origens da crise, acerca de seu diagnóstico. Seria bem mais fácil para o governo se esse consenso existisse e, preferencialmente, se fosse algo que coordenasse as percepções dos principais articuladores políticos do governo.
É lógico considerar que uma crise política é, antes de mais nada, uma crise de apoio político do governo. É disso que se trata. A cada votação de medidas econômicas que têm impacto nas contas da União, empresários e investidores se perguntam se o governo será capaz de gastar menos e arrecadar mais. As medidas de ajuste fiscal aprovadas no primeiro semestre vêm sendo anuladas pela chamada pauta-bomba: iniciativas legislativas que aumentam significativamente os gastos do governo. Se o governo tivesse apoio político no Parlamento não haveria o risco de aprovação da pauta-bomba.
Apoio político é sinônimo de maioria parlamentar. Dito de maneira bem simples: não haveria crise política se o Poder Executivo tivesse uma sólida maioria parlamentar em seu apoio. Não sendo possível obter sólida maioria, bastaria que o governo tivesse uma maioria que fosse formada caso a caso, votação por votação, e a crise não seria tão profunda como é hoje.
Fernando Henrique e Lula passaram por períodos de crise política. O primeiro, em seu segundo mandato e Lula, durante 2005, quando emergiu o escândalo do mensalão. A crise que se abateu sobre o governo Fernando Henrique teve muito a ver com o rearranjo da aliança, em período de aprovação presidencial em baixa, visando à eleição de 2002 quando o presidente não mais poderia ser reeleito. Quem viveu o período tem na memória a antológica disputa entre os senadores Antônio Carlos Magalhães, do PFL, e Jáder Barbalho, do PMDB. O conflito entre os dois era o conflito entre dois partidos sócios do PSDB no governo. Cada qual queria mais espaço junto a quem seria o futuro candidato tucano a presidente. O PFL acabou por sair do governo apoiando inicialmente Roseana Sarney e em seguida Ciro Gomes. A crise política, de apoio parlamentar, teve consequências eleitorais importantes. O PMDB ficou com Serra na eleição de 2002.
Lula venceu sem o PMDB e governou sem ele até a crise política do mensalão. Há hoje um diagnóstico, relativamente consensual de que, para Lula, acabou sendo fundamental que o PMDB entrasse em seu governo, para lhe conferir a saída da crise. Isso aconteceu concomitantemente à melhoria da aprovação do governo no final de 2005 e início de 2006.
Ninguém governa o Brasil sem o PMDB. As últimas seis eleições presidenciais tiveram o PT e o PSDB com os dois candidatos mais votados. Fernando Henrique derrotou Lula duas vezes. Lula derrotou Serra e Alckmin. Dilma derrotou Serra e Aécio. Todos os eleitos, porém, precisaram do PMDB para governar. O PT ocupa a centro-esquerda do espectro político. O PSDB ocupa a centro-direita. Cabe ao PMDB ocupar o centro. Todos os países multipartidários, Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, França, têm partidos de centro. A grande diferença entre o Brasil e eles é que o nosso partido de centro, o PMDB, é imenso. O PMDB é o maior partido de centro do Ocidente. Brigar com o PMDB é brigar com a governabilidade.
Os estudiosos de nosso sistema político sabem da enorme importância da presidência da Câmara e do Senado. Talvez não seja fácil fazer você, leitor, perceber quão poderosos são Renan Calheiros e Eduardo Cunha. Ambos controlam a agenda legislativa. Controlar a agenda legislativa é muita coisa. O Poder Executivo depende de suas decisões. Por exemplo, a tramitação da iniciativa legislativa que reduz a maioridade penal foi iniciada há 22 anos. Estava parada, esperando que um presidente da Câmara a colocasse em votação, e isso aconteceu no semestre passado. Alguns podem se perguntar por que não teria sido votada antes. Uma resposta possível é que os presidentes da Câmara que antecederam Eduardo Cunha, a pedido da Presidência da República, a engavetaram. Há muitos exemplos como este.
O projeto de lei da terceirização da mão de obra começou a tramitar na Câmara dos Deputados há 11 anos, mas foi rapidamente votado no semestre passado. É bem possível que os presidentes da Câmara anteriores tenham, a pedido do Poder Executivo, deixado o projeto parado. As contas dos governos Collor, Fernando Henrique e Lula não foram votadas até agora pela Câmara. Ora, já se vão mais de 20 anos que Collor deixou a Presidência e somente agora sua gestão contábil foi votada e aprovada na Câmara. Isso aconteceu por causa do poder de agenda legislativa nas mãos do presidente da Câmara. Vamos multiplicar os exemplos.
A PEC "da bengala", que aumentou para 75 anos de idade a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), impedindo Dilma de indicar cinco novos ministros nos próximos anos, estava tramitando no Poder Legislativo desde 2005. Foi colocada em votação por Eduardo Cunha e aprovada no semestre passado com os votos do PMDB.
Na semana passada, foi aprovada, por 445 deputados federais, em primeiro turno, a PEC 445, que vincula os salários dos advogados públicos federais, procuradores estaduais e municipais e delegados da Polícia Federal e da Polícia Civil dos Estados aos salários dos ministros do STF. Se essa PEC for finalmente aprovada, isso acarretará gastos adicionais acima de R$ 2 bilhões, não apenas para o governo Dilma, mas para todos os presidentes que a sucederem. Essa PEC estava na Câmara dos deputados desde 2009 e nunca tinha sido colocada em votação. Isso foi feito agora porque Eduardo Cunha é oposição ao governo.
Fernando Henrique, Lula e Dilma, em seu primeiro mandato, tiveram presidentes da Câmara afinados com eles. Presidiram a Câmara durante os governos Fernando Henrique: Inocêncio de Oliveira, do PFL; Luiz Eduardo Magalhães, também do PFL; Michel Temer, do PMDB; e Aécio Neves, do PSDB. Todos eles foram eleitos com o apoio do Palácio do Planalto.
Foram presidentes da Câmara nos governos Lula: João Paulo Cunha, do PT; Aldo Rebelo, do PC do B, depois de Severino Cavalcanti, eleito em fevereiro e levado a renunciar em setembro de 2005; Arlindo Chinaglia, do PT; e Michel Temer, do PMDB. Todos eles foram escolhidos por seus pares com o apoio do Palácio do Planalto.
No primeiro Governo Dilma, os presidentes da Câmara foram Marco Maia, do PT, e Henrique Eduardo Alves, do PMDB. Ambos tiveram o apoio da Presidência.
Como sabemos, Eduardo Cunha é a exceção à regra de que o presidente da Câmara é eleito com apoio do presidente da República e que ambos agem de forma afinada. O bom relacionamento entre a Presidência da República e a presidência da Câmara é o que permite que projetos que contrariam os interesses do Palácio do Planalto fiquem anos a fio engavetados nas casas legislativas. Foi o que ocorreu com a maioridade penal, terceirização, PEC "da bengala" e a PEC 445, até que Eduardo Cunha decidisse colocá-las para votar.
Grande parte da atual crise política tem a ver tanto com o relacionamento entre o Poder Executivo e o PMDB quanto com o fato de o atual presidente da Câmara, aquele que tem o controle da agenda legislativa de uma das casas do Parlamento, ter sido escolhido por seus pares para o cargo ao derrotar, em fevereiro, o candidato apoiado pelo governo. Atender às demandas do PMDB e acomodar-se com Eduardo Cunha aliviaria em muito a atual crise.
(*) Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de “A Cabeça do Brasileiro” e “O Dedo na Ferida: Menos Imposto. Mais Consumo”
Fonte: Valor Econômico / Eu & Fim de Semana (22/08/15)
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