quarta-feira, 19 de agosto de 2015

A disputa agora é dentro do palácio (Marcos Nobre)




A presidente conseguiu levar o jogo para a prorrogação. Muitas são as razões que levaram o PMDB a concluir que manter Dilma Rousseff era a opção menos ruim no momento. Razões que vão muito além das súplicas de grandes empresários.

A indefinição provocada pela Operação Lava-Jato pesou muito na decisão. Sem saber quem ainda estará no jogo político depois de estabelecido o quadro de denunciados, não há como convencer de que outro arranjo seria menos instável do que o atual. Nem fica claro se e em que direção poderia se dar uma reorganização que preserve Dilma.

Mas a razão preponderante foi mesmo a possibilidade de danos eleitorais graves caso decidisse assumir o governo agora, com Michel Temer. Ser vidraça sem que se tenha configurado uma completa rejeição a Dilma, em um momento de recessão econômica e de desarranjo do cenário partidário, pode ter consequências catastróficas. Poderia até mesmo levar o partido a se fragmentar irremediavelmente, quando sua força está justamente em ser um bazar de interesses conflitantes que consegue se manter unido.

O PMDB não tem expertise em liderar governos. Sua especialidade é oferecer serviço de sustentação parlamentar ao governo de plantão, qualquer que seja. Com a crise dos líderes de governo dos últimos vinte anos, PT e PSDB, o poder caiu em seu colo, por gravidade política. Mas não há como unificar o PMDB em torno de diretrizes de governo mais ou menos claras e coerentes a não ser em caso de decretação oficial de estado de calamidade política. Para se certificar disso, basta consultar a "Agenda Brasil", colcha de retalhos cheia de digitais interessadas, cuja autoria se atribui a Renan Calheiros e Joaquim Levy. Deu sua contribuição para levar o jogo para a prorrogação. E só.

No entanto, se não tem tecnologia para estabelecer o que deve ser feito, o PMDB sabe muito bem o que se deve ser evitado. Foi assim que isolou um dos seus, Eduardo Cunha, e roeu a corda de um pretendente afoito, Aécio Neves. Na cartilha do partido, linhas de ação extremas como o afastamento da presidente e a posse de Temer só devem ser adotadas em duas situações: quando já se formou um claro consenso do sistema político em torno de uma alternativa; ou se a confusão na rua ameaçar sair do controle.

Nenhuma das duas situações se configurou ainda. Mas a turbulência permanente de 2015 e a proximidade da primeira leva de denúncias de políticos na Lava-Jato mostrou que o PMDB não quer mais enfrentar a crise sem ter à mão uma alternativa a Dilma. O partido resolveu construir uma opção mais sólida desde já. Considera alta a probabilidade de que uma situação extrema venha a ocorrer até o primeiro semestre do próximo ano. Ser arrastado pela rua é o pesadelo máximo para o PMDB. Daí que a prorrogação concedida a Dilma venha com um aviso que é, para quem fala pemedebês, um ultimato: foi aberto o leilão do novo consenso do sistema político.

Tendo na mão a caneta e credenciais de conteúdo nacional, a presidente tem preferência na aquisição do lote. Se conseguir de alguma maneira se firmar na competição pelo novo ponto de equilíbrio do sistema, ficará, com a benção do PMDB. Ou, pelo menos, da parte do PMDB que sobreviver à Lava-Jato.

A prorrogação não vale apenas para o atual governo, vale também para o próprio PMDB, em sua busca de uma opção a Dilma. Também o PMDB precisa de tempo para convencer de que dispõe de um arranjo alternativo viável caso a presidente não consiga começar de fato seu segundo mandato. Até o momento, se não aparecerem novos obstáculos, a opção que se consolida no campo pemedebista é Michel Temer.

Não há a mais remota chance de Dilma vestir o figurino de Itamar Franco, rumo a uma espécie de Plano Pós-Real. Só pode mesmo esticar ao máximo a corda, sem deixar arrebentar. Não havendo nenhuma evidência ululante em favor da abertura de um processo de impeachment, tem de evitar que se cristalize uma rejeição universal que a carregue em avalanche. Para isso, vai ter de apelar ao que restou do PT e de movimentos sociais. Uma das muitas dificuldades é que Dilma depende do PMDB para segurar os mastins do impeachment. Mastins dentro do próprio PMDB, inclusive. Mais grave, produzir um plano B em caso de a presidente se inviabilizar não tem volta, não é algo que se possa controlar por tempo indeterminado. Viabilizar uma alternativa ao arranjo atual significa objetivamente lutar pela derrubada de Dilma.

O jogo mudou inteiramente desde que Temer passou a trabalhar para representar um efetivo ponto de convergência pós-Dilma. Até agora, a presidente conseguiu ficar porque, contra as aparências, ainda não atingiu o fundo do poço de padrão Fernando Collor. E, principalmente, porque as alternativas disponíveis se anulavam. Com cada postulante puxando para um lado diferente, com riscos maiores e menores em cada estratégia, o jogo era de soma zero. A adesão de Aécio Neves e de José Serra aos protestos de ontem só reforçou o impasse.

O primeiro efeito da entrada de Temer foi escantear de vez o PSDB, já autodesqualificado por sua incapacidade de apresentar uma posição unificada. O passo seguinte será unir o PMDB em torno de seu nome e construir uma saída a menos traumática possível para afastar sua companheira de chapa. A movimentação de Temer transferiu a prorrogação da partida das ruas e do Congresso para dentro do Palácio do Planalto. Na disputa palaciana, Temer se encontra nada menos do que na posição de articulador político do governo. Tentou devolver essa atribuição para a presidente, que recusou a jogada, provavelmente porque pensa que assim conseguirá amarrar a sorte de Temer à sua.

Pode ser que Dilma não veja outra alternativa para tentar isolar Temer a não ser mantê-lo grudado a ela. Essa é, afinal, a lógica de toda luta palaciana que se conhece. Mas boa parte dos recursos de que a presidente poderia dispor para enfrentar essa disputa dentro de casa está nas mãos do adversário. Suas melhores chances estão no insucesso de Temer de superar as divisões internas do partido que preside.

Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

fonte: Valor Econômico (17/08/15)

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