Gentileza gera gentileza, essa foi a frase com letras bem torneadas com que um popular, conhecido como o Profeta Gentileza, grafitou, nas duas últimas décadas do século passado, 56 pilastras que suportam um viaduto na Avenida Brasil, importante via de acesso à cidade do Rio de Janeiro. Além dos seus grafites, o Profeta Gentileza percorria lugares públicos portando estandartes que estampavam seu bordão quando fazia suas pregações por relações amorosas entre os homens. Suas palavras de invocação ao espírito de concórdia comoveram a cidade, que o converteu em personagem cultuado, a ponto de ele ter inspirado o enredo, no carnaval de 2001, de uma escola de samba dirigida pelo famoso carnavalesco Joãozinho Trinta.
Talvez algo desse espírito tenha baixado no vice-presidente da República, Michel Temer - ou por ainda admitir, quem sabe, o velho diagnóstico do brasileiro como homem cordial -, quando, há poucos dias, denunciou em entrevista como imprópria à nossa cultura e às nossas tradições o clima de beligerância que medra sem limites na política e nas redes sociais. Suas palavras, ao que parece, soaram no vazio, uma vez que não há dia sem que o fermento da cólera deixe de envenenar o cotidiano da nossa vida política. Um influente jornal britânico, tratando desse estado de coisas entre nós, em tom hiperbólico, ecoando uma expressão dos idos da Revolução Francesa sob a liderança de Robespierre, chegou à sentença um tanto descabelada de que o País estaria a viver um terror sem fim.
Contudo, ao menos nos dias correntes, ao contrário do sucedido nas chamadas jornadas de junho de 2013, os ódios e o clima de exasperação colérica ainda não ganharam as ruas, embora não faltem, à direita e à esquerda, os que desejam trazê-los de volta - por sinal, o aziago mês de agosto pode ser propício aos seus desígnios malévolos. As ruas e a vida política seguem, como quase sempre entre nós, órbitas distintas entre si, daí que os antagonismos que ora enervam a cena pública têm seu circuito limitado na assim chamada classe política, dizendo respeito às condições de sobrevivência de muitas de suas principais lideranças.
O específico da situação atual, sem o que ela não ganha inteligibilidade, se encontra no fato de importância capital de que, desta vez, o controle da crise não tem como ser exercido apenas pelos políticos, debalde os apelos à concórdia dos bem-intencionados. Fora da arena propriamente política, faz-se presente um tertius, o Poder Judiciário e o conjunto de instituições constitucionalmente criadas a fim de exercer controle sobre a administração pública, como, entre outras, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público Federal, instâncias formalmente autônomas da política e que, nestes 27 anos de vigência da Carta de 1988, têm forjado uma cultura própria. Neste mundo de direitos, princípios e interpretações hermenêuticas, Maquiavel, soberano indiscutível entre os políticos, não entra. Salvo, é claro, pela porta dos fundos.
Sem rebuços, é irrefreável a constatação de que estamos diante de mais um caso de judicialização da política - a política que importa, nesta hora, transcorre nos tribunais, com as principais lideranças dos Poderes Executivo e Legislativo expostas aos riscos de um processo criminal, com a eventual perda dos seus mandatos. Com o deslocamento da arena política para dimensões externas a ela, em particular a da magistratura, blindada a pressões políticas por forte sustentação na opinião pública, nada de surpreendente que muitos dos personagens afetados se comportem sob o mote do après moi, le déluge.
Neste mundo de alto risco não há lugar para gentilezas nem há oportunidades para a doação na expectativa de uma retribuição - ninguém está disposto a ceder a outrem seu próprio pescoço. Pressionado por forças que não controla, o sistema político se contorce num abraço de afogados diante de um público até aqui impassível à sua má sorte. Neste circo de horrores que se tornou nossa vida republicana, com o fel da discórdia grassando em toda parte, ainda agravado por uma economia que não concede esperanças de melhoras, desde agora dois cenários se põem diante de nós.
O primeiro, relativamente benévolo, se apoiaria em mais um sucesso das instituições que herdamos da Carta de 1988, com o saneamento exemplar da política de práticas que a corrompem e a consequente apenação dos culpados, sob a aprovação majoritária da sociedade, mesmo que apenas tácita. A seguir, retomar-se-ia, após os abalos de praxe em circunstâncias desse tipo, um curso menos agonístico na cena política, tal como ocorreu no caso do impeachment do ex-presidente Collor. Como é de óbvia conclusão, esse desfecho teria como principal protagonista, talvez único, o Poder Judiciário e demais instituições formalmente neutras quanto ao poder político. Por qualquer critério, em face do tamanho da crise que aí está, esse insulamento olímpico não parece contribuir para uma solução desejável.
Outro cenário, este de altíssimo risco, seria o de uma eventual ampliação irrestrita do antagonismo, caso venham a ser mobilizados por aqueles que têm tudo a perder, os partidos políticos, os movimentos sociais e denominações religiosas, sobretudo se a isso se vierem somar a insatisfação das ruas com os rumos de uma economia que notoriamente se contrai. No caso, os antagonismos em equilíbrio - segundo Gilberto Freyre, uma marca da nossa cultura política, tópica tão bem estudada por Ricardo Benzaquen de Araújo em sua análise da obra desse autor - poderiam perigosamente se desequilibrar.
Aconteça o que acontecer, nada passará ao largo da política. A proteção de valores e princípios, que nos custaram tanto a afirmar, mais a preservação do que já foi conquistado nesta devassa ainda em curso, está reclamando que se tire logo o Maquiavel do armário.
Fonte: O Estado de São Paulo (02/08/15)
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