segunda-feira, 24 de agosto de 2015
Crise de hegemonia: notas sobre a conjuntura atual e recente (Felipe Maia G. da Silva)
Que a crise é imensa, envolve política e economia, já não há dúvidas. Que encerra um ciclo também ficou difícil negar. Só não se consegue perceber o desenlace provável, nem o que virá a seguir. A esta altura do campeonato, o resultado é incerto, depende portanto da política, esta arte que em sociedades democráticas, com divisão de poderes, procedimentos resguardados e opinião pública, tornou-se bastante complexa. Mas é da política, da capacidade de organizar maiorias, persuadir a opinião, formar hegemonias, que sairá o desfecho da crise, o que pode demorar.
Como diria a velha piada, nesta crise, tudo pode acontecer, inclusive nada. Nesta hipótese, Dilma completaria seu mandato, mantendo algum arranjo parecido com o atual, no qual ela “reina, mas não governa”, pois como se sabe, a política econômica foi entregue a um ministro cujas convicções são bastante distintas das da presidenta e a articulação política foi transferida para o Vice-presidente da República, que de quebra é ainda o presidente do PMDB. Para completar o cenário, o Legislativo, que no famigerado presidencialismo de coalizão costuma secundar a agenda do Executivo, ganhou estatuto de maioridade e passou a determinar sua própria agenda, com intenções manifestas de isolar e se contrapor ao ideário do partido da presidenta, o PT. Alijados da política econômica, da articulação política e da formação da agenda legislativa, dificilmente se poderia dizer que o PT e o grupo da presidenta efetivamente governam. Por isso, ainda que estranha, a solução “reina mas não governa” tem sua probabilidade e teríamos, talvez pela primeira vez em nossa história republicana uma presidenta da República que se assemelha a uma chefe de Estado, mas não a uma chefe de governo. Resta saber se um país tão acostumado a governos fortes aguenta um equilíbrio tão precário.
Uma outra possibilidade é sem dúvida o impedimento de Dilma e, talvez de seu vicepresidente. Ao que parece, a articulação pelo impedimento seduz o presidente da Câmara e o líder tucano Aécio Neves, especialmente se Michel Temer fosse levado junto. É todavia uma solução nebulosa, um caminho em boa medida desconhecido para os agentes políticos e com forte custo para a sociedade. Dependeria de toda forma de um forte caso judicial que envolvesse, para além das lideranças do partido, a pessoa da presidenta da República, que todos reputam honesta.
Uma terceira hipótese, a esta altura muito difícil, mas cuja discussão ajuda a entender algumas das razões e da dimensão da crise, seria uma auto-reforma do governo petista. Tentativas de auto-reforma de regimes políticos ou de governos em crise são comuns, embora dificilmente funcionem. Gorbatchev tentou uma saída deste tipo com a Perestroika, mas não conseguiu levar adiante, sendo atropelado por forças políticas e sociais que já não podia controlar. No Brasil, no ocaso do Império, a monarquia parece ter cogitado movimento semelhante, pensando até em uma reforma agrária para completar a obra da abolição. O projeto, no entanto, mal atravessou os salões imperiais, por impotente frente aos novos interesses que se articularam em uma sociedade que havia se tornado muito dinâmica para ser contida pela velha estrutura imperial. Durante o Império, houve muita modernização social, mudanças estruturais que foram batizadas por Florestan Fernandes de “revolução encapuzada”, quando uma nova economia floresceu com o café e em torno das cidades um novo mundo mercantil mais distante da burocracia imperial. Novas gerações de jovens intelectualizados forçavam a abertura de uma sociedade estamental, hierarquicamente organizada. Eram novas aspirações que não se integravam bem ao arranjo monárquico e que desembocaram, ainda que de forma um tanto desorganizada, na solução republicana.
Mutatis mutandi, de certo modo houve algo semelhante nos últimos vinte ou trinta anos no Brasil, muita modernização social e enrijecimento do sistema político. Os governos do PSDB e do PT, já se pode reconhecer, fizeram muito, cada um à sua maneira, pela modernização social, mas pouco por mudanças na política, o que por si já remete a uma história mais afeita às mudanças moleculares que a revoluções políticas. Todavia, em algum momento a modernização social cobra seu preço das instituições políticas, como o fez, de formas distintas, na República, na transição democrática dos anos 1980 ou mesmo em 1930. O que diferencia o momento atual dos anteriores é que, felizmente, o arcabouço institucional brasileiro se mostra hoje mais desenvolvido e mais capaz de absorver as mudanças necessárias, dispensando a necessidade de uma refundação. A crise é de hegemonia política e não de incompatibilidade entre o ideário normativo e as instituições legadas pela Carta de 88 e a sociedade.
Nos últimos vinte anos o Brasil mudou e, mesmo sem se desvencilhar de suas singularidades históricas, suas “dependências de trajetória” como gostam alguns, aproximou-se das modernas sociedades e economias capitalistas ocidentais, embora em certa posição periférica ou semiperiférica. A economia capitalista se desenvolveu imensamente, com impulso estatal, mas também muito vinculada às dinâmicas do mercado internacional, como é exemplar o caso do “agronegócio”. A sociedade se complexificou, com elevação dos níveis de escolaridade, de acesso a informação, de integração a dinâmicas de rede que envolvem toda uma nova camada de jovens cujas expectativas são, felizmente, bastante elevadas. Toda uma economia mercantil se ramificou nas grandes cidades, associada a ideários de empreendedorismo e de esforço pessoal que, por vezes, tornaram-se verdadeira religião, mesmo nas classes mais populares. A miséria ou a pobreza absoluta puderam ser contidas por boas políticas de distribuição de renda, o que por outro lado, reavivou a mercantilização das relações econômicas em pontos mais vulneráveis do território. Uma boa indicação desta modernização social é a evolução do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos municípios brasileiros. Como informa o economista Ladislau Dowbor, em 1991 85% dos municípios brasileiros tinham um índice abaixo de 0,5, que é considerado muito baixo. Em 2010, apenas 0,6% dos municípios estavam nesta condição, indicando uma transformação importante que é corroborada pela melhora em outros indicadores, tais como os de escolarização, expectativa de vida, renda per capita, etc. Por outro lado, as marcas da desigualdade social permanecem, o que sugere que talvez tenhamos vivenciado uma espécie de “efeito elevador” por meio do qual a sociedade se move em conjunto sem grandes alterações nas posições relativas entre as classes, o que não exclui uma diversidade de trajetórias individuais de mobilidade ascendente ou descendente, como aliás, é comum na história brasileira.
Por sua vez, a institucionalidade oriunda da Carta de 88 se expandiu, fortalecendo a autonomia de instituições democráticas, tais como o Ministério Público, o poder Judiciário, ou todo um conjunto de normas que favorecem o acesso às informações públicas e o controle da sociedade sobre os atos dos governantes. Não se pode entender uma investigação do porte da “Lava – Jato” sem a autonomização dessas instituições face ao controle governamental, que em outros momentos sabia abafar, conter ou controlar. No conjunto, esses são efeitos da redemocratização política brasileira que projetou o horizonte normativo de um moderno país capitalista com promoção e proteção de direitos sociais, um horizonte que na falta de expressão melhor poderíamos qualificar de social-democrata e que pode sofrer inclinações mais liberais ou mais à esquerda, sem porém se desvencilhar de compromissos básicos tanto com certos gastos sociais, quanto com a economia de mercado como motor do desenvolvimento econômico.
Há por certo uma crise econômica que parece estar relacionada ao fracasso das tentativas do primeiro governo Dilma de promover uma inflexão de sentido mais nitidamente “desenvolvimentista” na condução da economia, ampliando as capacidades estatais de seletividade e planejamento do crescimento econômico, usualmente lidas pelos agentes de mercado como “intervencionistas”. A razão do insucesso parece ser a imensa resistência que os capitalistas brasileiros têm mostrado à ampliação da coordenação estatal, que pode estar relacionada a uma retração nos investimentos. Mais uma vez na história brasileira, a via do capitalismo de estado, ainda que apenas levemente esboçada, não encontra apoio na classe social decisiva para sua consecução, que permanece mais voltada para um ideário liberalizante. Some-se a isso a mudança na conjuntura de preços do setor mais dinâmico da economia, o capitalismo agrário, e há um caminho para entender a retração do crescimento com efeitos sérios para o equilíbrio fiscal da República.
Todavia, não é especificamente econômica a crise, mas política. O que está em xeque é a credibilidade e por certo a legitimidade dos representantes políticos, especialmente da presidenta e de seu partido. As revelações, trazidas à tona pelos delatores arrolados na operação Lava Jato, do entrecruzamento de interesses empresariais, partidários e pessoais nas relações entre empreiteiras, dirigentes estatais e lobistas não só jogaram os políticos governistas na vala comum da corrupção política, mas revelam também a que profundidades a política foi rebaixada. O desvio sistemático e habitual de recursos de contratos públicos para financiamento da atividade política de partidos de esquerda (e não só dela) não representa apenas prejuízo para as contas públicas – o que por si já seria execrável – mas altera profundamente as condições de participação política nas próprias fileiras partidárias, concedendo aos operadores das finanças um forte controle sobre as chances de eventuais candidatos, na prática um controle sobre a representação e a política do partido. Não é de se admirar, como informa o Observatório de Elites Políticas e Sociais da UFPR, que nestas condições a bancada do PT no Congresso Nacional já não conte com nenhum deputado cuja atividade profissional esteja identificada com a dos trabalhadores industriais ou de serviços, mas que prolifere a participação em cargos de governos como requisito básico para a obtenção de um mandato. O que causa espanto, na verdade, é a passividade com que a militância reage a esse verdadeiro sequestro do partido pelos operadores das finanças e, agora já se sabe, com fartos indícios de enriquecimento pessoal.
Ao enfraquecimento da credibilidade pelas denúncias de corrupção soma-se o estrago causado pela substituição da formulação de novos horizontes políticos pela fatuidade promovida pela marquetagem eleitoral, cujo ápice talvez tenha sido a última campanha presidencial, que rebaixa o discurso político e obstrui a constituição de uma boa esfera pública. Se o discurso conservador e maniqueísta do “nós contra eles”, de certo viés salvacionista, que havia mobilizado as campanhas anteriores já era problemático, nas últimas eleições os marqueteiros optaram por uma linha que se sabia ainda mais perigosa. Não economizaram no ataque virulento aos adversários, recusando um debate de fundo sobre novos desafios, projetaram políticas públicas como se fossem marcas de produtos, venderam à esquerda a ilusão de um governo ainda mais “desenvolvimentista”. Para na semana seguinte às eleições promoverem um recuo em direção a políticas recessivas de ajuste fiscal. Marqueteiros operam com base em um controle técnico da opinião pública, são intérpretes imediatistas e instrumentais da conjuntura política, entregar a eles a condução da política, como se fez na última campanha, tem efeitos devastadores. Daí não vem nenhuma educação política, nenhuma pedagogia, a não ser o reforço do senso comum de que o que políticos dizem em campanha, não se escreve.
A conjuntura recente ofereceu em 2013, quando das famosas jornadas de manifestações que varreram o país, uma oportunidade política para uma auto-reforma ou uma renovação do horizonte político. Ali o descontentamento era mais sistêmico e difuso, e não concentrado na figura da presidenta da República, o que ainda lhe conferia credibilidade. As jornadas de junho de 2013 foram um momento de demonstração pública das mudanças e da modernização social do país, seus participantes eram na maioria jovens de bom nível educacional e apresentavam uma pauta de reformas em serviços públicos que revelavam com nitidez ao mesmo tempo os limites das transformações ocorridas e um horizonte a ser perseguido. Seu horizonte era o da expansão das políticas sociais e da melhora da representação política, reforçando critérios de transparência e de participação na decisão em torno de prioridades de investimento, cujo símbolo foi a contraposição entre os mega-eventos esportivos e os serviços públicos universais. Tanto a incompreensão do caráter transformador inscrito nas manifestações, quanto as tentativas de manipular o descontentamento em proveito partidário, enfraqueceram a possibilidade de criação de novos laços políticos a partir dali. A rigor, politicamente as jornadas de 2013 ainda não encontraram um desaguadouro à altura, sendo que as eleições de 2014 mostraram-se em boa medida infensas ao terremoto que as manifestações anunciavam, dando mostras de um perigoso auto-fechamento do sistema político.
Não é exagero dizer que esta é uma crise de hegemonia e portanto de perspectivas. Uma das razões do impasse é que ao derruimento da hegemonia petista, não se apresenta, ao menos ainda, outra com plenas condições de substituí-la, o que pode vir a ocorrer ao longo do processo. O que virá, entretanto, é cedo para arriscar. De toda forma, algumas condições parecem imprescindíveis, a começar pela continuidade da apuração de ilícitos nas relações entre agentes políticos e econômicos empreendida pela operação Lava – Jato. Neste sentido, a recondução do procurador-geral da República, cuja independência tem sido notável, é um bom indicador de que já se compreende que uma vez iniciado, esse processo deve ter curso por meio das instituições devidas e em seu tempo. Outra condição é uma boa interpretação das mudanças sociais e das aspirações dos novos grupos e classes sociais que emergiram nos últimos anos.
A esquerda política e democrática, se quiser continuar a desempenhar um papel relevante no cenário futuro, deverá colocar em questão seu repertório e se desvencilhar de práticas políticas incompatíveis com sua história e com uma República democrática como a nossa.
(*) Professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Fonte: Boletim CEDES (julho/agosto 2015)
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