quinta-feira, 27 de agosto de 2015

O governo petista acabou (Denis Rosenfield)




O governo petista acabou! Como um doente terminal, pode durar meses ou anos, com todos os sofrimentos daí resultantes. Impeachment ou renúncia teriam a imensa vantagem de dar um basta a essa situação, com a segunda alternativa sendo muito melhor que a primeira, por ser mais rápida e menos traumática. Aguardar as eleições de 2018 pode significar que o novo governo que assumir terá de reestruturar totalmente um País exaurido.

O discurso petista de que qualquer abreviamento do mandato da atual presidente seria um golpe nada mais é que um mero instrumento demagógico. Impeachment é um instrumento previsto constitucionalmente e utilizado quando do governo Collor, forçando-o à renúncia. A transição não foi traumática, o então vice-presidente Itamar Franco fez um governo exemplar, de união nacional, e foi o responsável pelo Plano Real. O mesmo pode repetir-se agora com o vice-presidente Michel Temer, a quem não faltam condições para tal mudança.

Aliás, o PT parece não ter memória, pois chegou a apregoar o impeachment do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Não era golpe! No que diz respeito às convicções democráticas, o PT e seu governo têm dado sinais indeléveis de seu pouco apreço pelas instituições republicanas, defendendo os governos bolivarianos e o socialismo do século 21 em nossos países vizinhos. A democracia desmorona a golpes de facões chavistas na Venezuela e nosso governo não cessa de defender sua “democracia”.

Mais recentemente, o presidente da CUT, Vagner Freitas, declarou, dentro do Palácio do Planalto, que ele e seus comparsas pegariam em armas para defender o atual governo. Como assim, pregando a violência no palácio e chamando isso de defesa da democracia? A situação não deixa de ser hilária. O PT não defende o Estatuto do Desarmamento? Terão os sindicalistas da CUT armas? Onde as obtiveram?

O ex-presidente Lula tentou logo depois fazer um remendo, dizendo que a verdadeira arma seria a “educação”. Conversa fiada. Repete o comportamento que o caracterizou no governo: atiça o fogo e logo diz atuar como bombeiro.

Acontece, porém, que o País mudou. Nas manifestações nacionais do dia 16 um boneco inflável de Lula como presidiário virou meme nas redes sociais e apareceu nos jornais e na mídia em geral. Um símbolo, nesse dia, ruiu. É toda uma época que chega ao seu término.

O boneco estampava o número do PT e um artigo do Código Penal, em clara demonstração de que seu nome já está associado à corrupção, à Lava Jato e à prisão. Perdeu o efeito teflon, ou talvez tenhamos agora um outro tipo de teflon, o negativo, tudo passando a colar nele e na sua sucessora. Os acordos negociados com o presidente do Senado não tiveram nenhum efeito popular senão o de colar o senador Renan Calheiros às figuras de Dilma e Lula. O acordão não funcionou para esse importante setor da opinião pública.

As manifestações, ao contrário das anteriores, focaram no afastamento da presidente, insistindo no impeachment ou em eventual renúncia. Sua imagem não apresenta nenhuma melhora. Ao contrário, piora. Os protestos estão apontando para o fim do ciclo petista, procurando abreviá-lo.

Note-se que essas manifestações foram maiores e mais importantes do que se previa – supostamente uma baixa adesão. Foram maiores que as de abril reuniram acima de 1 milhão de pessoas, apesar de jornalistas e “analistas” simpáticos ao PT procurarem camuflar esse fato. Globo e G1 fizeram um cálculo, segundo as Polícias Miliares (PMs), de 879 mil participantes, não contando os manifestantes do Rio e do Recife, sem estimativas das respectivas PMs.

Ora, o Rio congregou pelo menos 100 mil pessoas e o Recife, 50 mil, o que dá um total superior a 1 milhão. Esses números só perdem para as manifestações de março. As imagens cariocas foram impressionantes.

Ademais, trata-se de um processo que começou em março, seguiu em abril e chegou a agosto com novas manifestações já sendo previstas. Tivemos três enormes manifestações em cinco meses, algo inédito na História do nosso país. Por último, esta última manifestação teve foco, centrado nas figuras de Dilma e Lula, com a bandeira explícita do impeachment.

Exemplo público a ser seguido concretizou-se no aparecimento de camisas e faixas em apoio ao juiz Sergio Moro. Ele representa atualmente um ideal de Justiça, algo digno de ser imitado. A Nação não mais tolera metamorfoses ambulantes, quer correção na vida pública e esperança de um País justo, no qual um novo futuro possa ser vislumbrado.

Do ponto de vista político, essas manifestações de apoio a Moro significam uma forte sustentação à Operação Lava Jato contra qualquer tipo de pizza. A sociedade está atenta aos seus desdobramentos e, certamente, não aceitará nada que possa prejudicá-la. Os culpados deverão ser punidos, tanto no setor empresarial quanto no político. Se isso não ocorrer, as manifestações poderão ganhar ainda mais fôlego. Um recado foi enviado!

Apostar numa melhora da situação econômica significa voltar a ouvir os cantos de sereias que nos guiaram desde a saída de Antônio Palocci do Ministério da Fazenda. Os “mágicos” economistas petistas levaram o País a esse buraco, os ditos desenvolvimentistas incrustados no governo e no partido. A inflação deve alcançar dois dígitos (ou perto disso) no final do ano, o desemprego está aumentando, o PIB é estimado em 2% negativo neste ano e deve permanecer negativo no próximo, o poder de compra da classe média e dos trabalhadores em geral está caindo, e assim por diante.

O Natal e o ano-novo não serão de festa do ponto de vista social. A quebra de expectativas e a desesperança só tendem a piorar. E será nesse cenário que o clima de insatisfação política se vai expandir.

Professor de filosofia na UFRGS.

Fonte: O Globo (24/08/15)

Os partidos estão colapsando? (José Álvaro Moisés)





Pesquisa recente do Ibope sobre a confiança dos brasileiros em instituições democráticas mostrou que partidos são as instituições mais desacreditadas pela população. Mais de 80% dos entrevistados afirmaram não confiar em partidos. O índice repete o que minhas pesquisas de 2006 e 2014 mostraram: a desconfiança chegou a 81% e 84%, respectivamente. E perguntados se a democracia pode funcionar sem partidos, mais de 30% responderam que sim em 2006, mas o porcentual subiu para 45% em 2014. Quase metade da população brasileira parece estar deixando de ver os partidos como essenciais ao regime democrático.

O problema ganhou as ruas nos protestos de 2013. Grande parte dos manifestantes repudiou a participação de partidos ou rejeitou o seu papel de representação. Não foi suficiente, contudo, para levar os líderes partidários a enfrentar a situação. E a Operação Lava Jato está revelando aspectos mais complexos e profundos do problema: não é só o caixa 2 das campanhas eleitorais, mas a existência de um poderoso esquema de desvio de recursos para partidos, dirigentes de empresas estatais e personagens emblemáticas como o ex-ministro José Dirceu, do PT. Ou seja, mesmo partidos de esquerda abandonaram a res publica como objetivo da democracia.

Alguns analistas sustentam que como ocorreu na Itália com a Democracia Cristã, o Partido Socialista Italiano e o Partido Liberal, em consequência da Operação Mãos Limpas – que nos anos 1990 lançou luz sobre a gigantesca rede de corrupção que dominava a vida política e econômica daquele país –, o sistema partidário brasileiro também pode colapsar. A hipótese traduz avaliação negativa sobre a mais importante operação de enfrentamento da corrupção realizada no Brasil e prenuncia efeitos devastadores para o sistema político; no fundo, questiona se a Operação Lava Jato deve continuar, sem admitir que o abuso de poder dos partidos de governo compromete a qualidade da democracia.

Os partidos vivem o seu pior momento desde o fim do processo de democratização. Após mobilizar corações e mentes para o resgate da dignidade da política, o PT traiu seus princípios, aceitou a cultura dos malfeitos e, sem conseguir se explicar, perde a confiança de eleitores e militantes. Opondo-se a parte das políticas de ajuste do seu próprio governo, disputa posições de poder com seu principal aliado, mas sofre sucessivas derrotas no Congresso Nacional sem que o PMDB abra mão de cargos no governo. A síndrome afeta toda a base aliada, que, sem coerência programática e de costas para a sociedade, busca benefícios sem dar contrapartida.

A oposição tampouco está melhor. PSDB, PPS e DEM, sem definir rumos claros, oscilam entre o impeachment de Dilma, eleições fora de regras constitucionais e apoio a aumentos de gastos públicos que contrariam suas posições programáticas. Os sinais são confusos, não oferecem alternativas e indicam irracionalidade no enfrentamento da crise.

O sistema partidário brasileiro tem algo de paradoxal: além de sua perturbadora fragmentação e da constante troca de legendas por parlamentares, os partidos são chamados a garantir a governabilidade do País no Congresso, mas dão pouca ou nenhuma importância à sua conexão com os eleitores, que desconfiam deles, não têm preferência partidária e não querem filiar-se. O que conta não é o que os partidos significam para a sociedade, mas como seus arranjos facilitam que os dirigentes – que em muitos casos se perpetuam na direção das legendas – conquistem ou mantenham posições de poder.

Mas posições de poder para quê? A explicação está faltando para os eleitores e para a sociedade. Alguns acham que o quadro é normal, partidos existem para conquistar o poder e, se o conseguem, importa pouco se sinalizam ou não algo de substantivo para os eleitores. É uma opção pragmática, autojustificada, que contamina todo o espectro partidário – já tomou conta do PT, confirma o que faz o PMDB e avança entre partidos de oposição. Mas segundo Tarso Genro, ex-governador gaúcho, no caso do PT o ciclo está se encerrando; para Frei Betto, amigo de Lula, a busca pura e simples do poder condenou o PT; e para o filósofo José Arthur Giannotti, simpatizante do PSDB, para além de viabilizar as carreiras políticas individuais de seus líderes, o PSDB precisa provar que tem coerência com o seu programa social-democrata.

Os partidos têm, portanto, problemas que ultrapassam as distorções reveladas pela Lava Jato. Como ocorreu na Itália dos anos 1990, não será a fragilização ou a eliminação de regras e procedimentos de fiscalização e de controle que os salvará. Partidos têm o monopólio da representação dos cidadãos e, por isso, se o contingente de eleitores que os desqualifica cresce, algo está errado. Representar significa “estar no lugar de” e para isso os representantes precisam ouvir, comunicar-se e constituir-se em referência para as escolhas dos eleitores.

Evitar o colapso dos partidos só depende da capacidade de seus líderes de reconhecer a natureza da crise e reagir antes que seja tarde demais. Eles precisam dizer com clareza como pretendem reconquistar a confiança dos eleitores e explicar, por exemplo, por que os partidos não consultam filiados e simpatizantes para a escolha de candidatos e programas. Precisam, sobretudo, assumir claro compromisso anticorrupção para recuperar os valores republicanos.

Mas é ilusório pensar que isso vale só para o PT e a situação, a oposição também precisa comprometer-se com o aprofundamento da democracia brasileira. E a solução não está em impedir a continuação da Lava Jato, mas em apoiá-la.

(*) Diretor do núcleo de pesquisa de políticas públicas da USP, editor do site qualidade da democracia, é autor do livro ‘Desconfiança política e seus impactos na qualidade da democracia’ (EDUSP, 2003)

fonte: O Estado de São Paulo (24/08/15)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Balas, gatilhos e impeachment (Marcos Nobre)



• O PIB chamou o sistema político à ordem 

Formou-se um amplo e surpreendente consenso na elite econômica de que a saída de Dilma Rousseff representa mais incerteza e risco do que sua permanência. Colaborou muito para isso a adesão de Aécio Neves aos movimentos pelo afastamento da presidente e uma rejeição universal ao deputado Eduardo Cunha. Para não falar nos temores de que Michel Temer esteja já sob investigação. Ficou claro para a ponta de cima do PIB que deixar a crise nas mãos de uma disputa de rua ou diretamente nas garras da Lava-Jato levaria a situação a um grau de imprevisibilidade inaceitável.

Como ainda tinha quem não acreditasse, foi necessário transmitir a mensagem em alto e bom som. Para que não restasse qualquer dúvida de que o pacto tinha sido selado, o presidente do Itaú Unibanco concedeu entrevista publicada ontem pela "Folha de S. Paulo" para deixar muito clara a posição: "Seria um artificialismo querer tirar a presidente neste momento. Criaria uma instabilidade ruim para nossa democracia". Dilma conseguiu esse apoio decisivo pela ausência de alternativas críveis de estabilização. Não é pouco. Significa que aumentaram exponencialmente suas chances de sobreviver a 2015.

Mas é também sinal de fragilidade do novo consenso. É incomum e sintoma de enorme preocupação que um peso pesado do PIB tenha de vir a público para defender a permanência da presidente. É uma atitude que só aparece em situações extremas, é o tipo de exposição a ser evitada a todo custo. Mostra que as conversas de bastidor não foram suficientes para sofrear os atores políticos em suas tentativas de derrubar Dilma, ou mesmo a chapa inteira eleita em 2014. Não há quem seja mais sensível a um acordão do andar de cima do que o sistema político. Mas impressiona no jogo de forças atual que tanto esteja mesmo já de fato fora de controle. Muitos atores políticos já andaram tanto em uma direção que não têm mais como voltar atrás sem colocarem em risco seu patrimônio eleitoral.

Uma tentativa de segurar o processo foi feita por Fernando Henrique Cardoso, logo após a manifestação do dia 16. Ao propor a renúncia da presidente Dilma Rousseff, o ex-presidente não poderia pretender alcançar esse objetivo. O maior adversário simbólico dar um ultimato à presidente é o caminho mais seguro para que ela não o aceite. A única conclusão lógica e plausível, eliminado o impossível de uma renúncia humilhante, é que FHC pretendia bloquear dentro do PSDB qualquer linha de ação que pudesse resultar no afastamento da presidente.

Ao propor o impossível, FHC tirou o gás das manifestações de 16 de agosto dando a impressão de que estava radicalizando. Tentou manter unidos ele mesmo, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra. Tenta manter unido o PSDB até 2018, de preferência a distância prudente do PMDB. Daí também o caráter moral de seu apelo pela renúncia. Da moral à política há um oceano de instituições e campos de força que, para ser transposto, precisa de bem mais energia do que o impulso moral.

O grito de alerta de Roberto Setubal mostra que a tentativa de FHC caiu no vazio e que o sistema político está ainda mais desorganizado do que ambos pensavam. Mesmo atores políticos sempre dispostos a acatar uma ordem unida vinda do lado de cima do PIB deram declarações protocolares de concordância com FHC e voltaram imediatamente a seus planos de derrubada de Dilma Rousseff. A questão desta semana é saber como reagirão à ordem direta do PIB.

Porque a munição contra Dilma continua a ser tirada do arsenal. Um recurso muito comum na luta política é colocar a bala na agulha e não engatilhar a arma. O projétil fica ali à espera do momento certo para mostrar sua serventia. Pode ser efetivamente disparado, pode ser usado como instrumento de chantagem. Ou não. O recurso pode ficar na gaveta durante anos ou décadas. Um segundo turno de votação de uma emenda constitucional, por exemplo, pode ficar em suspenso indefinidamente.

O mesmo raciocínio se aplica à ocupação de postos estratégicos. Manter alguém com afinidade de posições em um órgão do Estado com capacidade de influir em processos de importantes repercussões macropolíticas pode ser decisivo em momentos cruciais. Gilmar Mendes, na qualidade de ministro do Tribunal Superior Eleitoral, solicitou investigações sobre financiamento da campanha à reeleição de Dilma Rousseff mediante recursos ilícitos, oriundos do petrolão. Manteve viva a perspectiva de impugnação da chapa vencedora na eleição de 2014, mesmo que se trate de um recurso extremo. Em 2009, o TSE cassou o mandato do governador do Maranhão, Jackson Lago, e deu posse a Roseana Sarney. Fazer o mesmo em relação à eleição presidencial do ano passado provocaria uma confusão na rua dificilmente comparável. Mas a bala continuou na agulha.

O Tribunal de Contas da União até agora não esclareceu quando pretende enviar à Câmara dos Deputados seu parecer sobre as contas do primeiro mandato de Dilma Rousseff. Mantém sua posição de poder e fica à espera de que alguma ordem unida prevaleça no sistema político que lhe permita encaminhar o enguiço. Disso também depende Eduardo Cunha, que colocou em votação de uma vez as contas de mandatos presidenciais que cobrem mais de vinte anos. Até uma decisão do STF que lhe tirou esse poder de iniciativa, colocou as contas do primeiro mandato de Dilma Rousseff na linha de tiro. Caso a ocasião e a necessidade deem as mãos, pode engatilhar o impeachment.

Há ainda Temer. Ao colocar à disposição seu cargo de coordenador político do governo, põe-se mais do que nunca na posição de alternativa a Dilma. Caso não seja de fato atingido pela Lava-Jato, terá unicamente o papel do jogador em permanente aquecimento para entrar em campo.

Só se saberá se a chamada à ordem de Roberto Setubal foi mais bem sucedida do que a de FHC se balas começarem a ser efetivamente retiradas da agulha. Será uma medida importante do rumo que o sistema político irá tomar a partir de agora. Se os gatilhos continuarem armados, ficará ainda mais difícil vislumbrar outra maneira de impor o novo consenso.


Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

Fonte: Valor Econômico(24/08/15)

O lixo da História (Luiz Carlos Azedo)

 


• O colapso do projeto de Dilma se deve às ideias políticas e econômicas fora de lugar, secundadas por práticas patronalistas que ameaçam desmoralizar toda a esquerda 


Após o AI-5 (13/12/1968), o Brasil entrou num período de trevas e radicalização política. O sociólogo Roberto Schwartz, então professor de teoria literária da Universidade de São Paulo (USP) e assistente de Antônio Cândido, teve que se esconder na casa de amigos e, depois, se exilar na França, onde releu O Príncipe, de Maquiavel, e O Alienista, de Machado de Assis. Nessas obras se inspirou para escrever uma chanchada intitulada A lata do lixo da História (Companhia Das Letras), uma sátira impiedosa da sociedade brasileira na época do regime militar.

Estavam ali os germes de uma de suas obras mais importantes, Ideias fora do lugar (Companhia Das Letras). No ensaio que intitula a obra, ele procura mostrar como as ideias liberais eram solapadas pela realidade de um país escravocrata e socialmente atrasado, em que o favor era a moeda corrente, como é ainda hoje na política brasileira. Nos anos 1970, a expressão “vai para a lata do lixo da História” era muito usada pelos setores de esquerda que hoje ocupam o poder.

Era uma maneira de dizer que tanto as ideias liberais quanto as da velha esquerda haviam sido derrotadas e que seriam ultrapassadas pelas “novas lutas”, inspiradas em Cuba e na China, na medida em que a “revolução coincidisse com a derrubada da ditadura”. Não foi bem isso o que aconteceu, pois a luta armada contra o regime foi um fiasco e a política de unidade das forças democráticas, defendida por liberais e comunistas, deu forma à derrocada do regime militar.

Ocorre, porém, que a História é voluntariosa. No bojo desse processo, emergiu o novo sindicalismo do ABC, que nada tinha a ver com os velhos sindicalistas ligados ao PTB e ao PCB. Líder dos metalúrgicos de São Bernardo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva organizou a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e criou o PT. A tese da lata do lixo da História pareceu se confirmar quando, em 2002, ele chegou à Presidência.

A gênese dos partidos operários está na velha tese marxista da centralidade do trabalho na luta política, que parte da ideia de que a contradição entre o trabalho e o capital é o motor da História e o eixo de atuação política do partido. Vem daí o glamour perdido do PT e o fascínio dos intelectuais e artistas de esquerda por Lula.

Vale destacar que filósofa alemã Hanna Arendt, uma democrata radical, sempre viu nessa concepção que absolutiza o trabalho uma das raízes do totalitarismo. Para ela, a condição humana é dada não pela atividade laboral, um meio de sobrevivência, mas pelo “agir e pensar politicamente”, em regime de plena liberdade, o que tanto o fascismo como o stalinismo não permitiram.

O colapso
Durante a guerra fria, essa contradição se manifestava na disputa entre a União Soviética, os países do Leste europeu, os países dependentes e os movimentos nacionalistas, de um lado, e o os países desenvolvidos, principalmente os Estados Unidos, ou seja, o imperialismo, de outro. Com o fim da União Soviética e a derrocada do comunismo no Leste europeu, a situação se modificou completamente.

O que restou disso, além de Cuba e da Coreia do Norte, foi o misto de capitalismo de Estado e “modo de produção asiático” do partido comunista chinês, secundado pelo Vietnã, que disputa com os Estados Unidos, via Oceano Pacifico, o controle do comércio mundial.

O “grande jogo” da política mundial e a globalização, porém, para muitos setores da esquerda, continuaram sendo vistos na ótica dos velhos paradigmas marxistas, ou seja, o inimigo principal é o imperialismo norte-americano; o capitalismo de Estado, após a tomada do poder, é a antessala do socialismo.

A aliança com a África do Sul, a China, a Índia e a Rússia seria a vanguarda de uma nova ordem mundial, assim como o Mercosul é um bloco anti-imperialista. Esse é o grande nó da política empreendida pelo governo Dilma, a chamada “nova matriz econômica”, que apostou no intervencionismo estatal para expandir o mercado interno e direcionar a economia, cometendo erros sucessivos de gestão, cujos resultados negativos nas atividades produtivas estamos colhendo agora.

O colapso dessa estratégia não se deve apenas à corrupção na Petrobras e outras estatais, envolvendo o PT e seus aliados, executivos de empresas públicas e empresários a ela ligadas. Esse é o elemento catalisador da crise econômica e política. O colapso do projeto político de Dilma e do PT se deve às ideias políticas e econômicas fora de lugar, seguidas por práticas patronalistas estimuladas por Lula, que ameaçam enlamear toda a esquerda e jogar suas lideranças na lata do lixo da História porque derivaram para o escândalo da Operação Lava-Jato.

É por isso que o governo Dilma não tem uma saída à vista para a crise econômica. Além de ter provocado a volta da inflação, a recessão, o desemprego e a explosão da dívida pública, Dilma perdeu o rumo. Sua base política e social rejeita o ajuste fiscal — um mero paliativo — e não quer nem ouvir falar em mudanças estruturais na direção do mercado. Luta apenas pela sobrevivência do próprio mandato.

Correio Braziliense ( 23/08/15)

La nave va (Fernando Gabeira)





O governo disse, após as manifestações, que o grande problema do Brasil é a intolerância. Discordo: acho que é a corrupção. Milhares de pessoas que foram às ruas acham o mesmo. A resposta do governo não me surpreende. É tão previsível que poderia reduzi-la a um programa de computador, quem sabe uma fórmula matemática. Sempre acusa, nunca erra, nunca se desculpa. Prefere o papel de vítima da intolerância do que assumir suas responsabilidades no buraco em que meteu o Brasil.

De fato, a tolerância, essa que o governo usa como cortina de fumaça, é uma qualidade vital. Bertrand Russel dizia que, além de respeito aos fatos, é preciso aprender a ouvir coisas que não gostamos de ouvir.

A memória me ajuda a exercitar a tolerância. Quando o presidente da CUT disse que resistiria com armas na mão ao impeachment de Dilma, consegui sorrir.

Lembrei-me de um episódio em 1964. Éramos cinco jornalistas morando num conjugado do 200 da Barata Ribeiro. Um de nós foi buscar as armas que o Almirante Aragão distribuiria para resistir ao que, na época, era um verdadeiro golpe.

Aragão comandava os fuzileiros navais, tinha armas verdadeiras. Quando lançou a ordem de entregar as armas, ela foi se deformando e chegou lá na porta como um aponte as armas. Pessoinha, José Pessoa, esse era o seu nome, voltou com olhos arregalados e de mãos vazias.

Dos cinco daquela época, morreram três, sobramos Moacir Japiassu e eu. Vivo, Pessoinha também riria das armas do presidente da CUT. E muito mais do desfecho: em vez de armas, o presidente da CUT ofereceu churrasco e cerveja.

As crises trazem muita ansiedade, sobretudo em nossa época. Toda hora ir ao computador à espera de algo que você não sabe bem o que é, algo que impulsione uma saída.

Com as memórias de muitos anos de manifestação de rua, fui ver de perto, depois assisti com tranquilidade às análises, coberturas de tevê, enfim todas as possíveis interpretações. Uma das coisas que me pareceram meio cômicas foi a obsessão com os números. Era uma manifestação oceânica, grande para qualquer democracia ocidental e mesmo para a Índia. Mas era preciso esquadrinhar a Avenida Paulista em busca de um número.

Como disse Bertrand Russel, é preciso respeitar os fatos. Os números devem ser levados em conta, mas não são a única variável. As manifestações revelaram um foco: o impeachment. E marcaram uma aliança entre os manifestantes e a Operação Lava-Jato. E se fixaram na rejeição de Dilma, Lula e o PT.

As coisas ficaram mais claras. E manifestações nunca se esgotam nelas mesmas. Elas são transmitidas para milhões de pessoas que não foram às ruas. Por causa disso, independentemente de pequenas diferenças numéricas, as manifestações produzem um enorme efeito num índice que não para de crescer: o da rejeição a Dilma.

Agarrados a números como um contador atarefado, muitos não sentiram a dimensão do protesto, a proeza de unir um movimento nacional em torno de uma só aspiração. Se isso não tem foco, recomendo levar a lente para um especialista. Ao contrário das manifestações do século passado, nas de agora agora são famílias inteiras que vão para as ruas. Não houve ocorrências policiais ao longo de todo o país. Não havia comícios, mas microfones abertos.

Outro dia, num encontro do PT, um dos oradores pediu a volta dos black blocks. Onde estão eles que não nos ajudam? Nas vésperas da manifestação, o presidente da CUT vem com essa história de armas, transfiguradas em chope e churrasco.

É verdade que surgiram ao longo do Brasil algumas faixas pedindo intervenção militar. Mas quem acredita mesmo que situação histórica se resolve num conflito das Forças Armadas com os sindicalistas armados de Vagner Freitas? É preciso muito chope para considerar esta hipótese.

Manifestações nem sempre têm o condão de resolver sozinhas as crises. Elas as dramatizam e empurram os atores para assumirem seu papel em cena. Na verdade, embora a palavra de ordem fosse impeachment, vi mais esperança no curso da Operação Lava-Jato do que no processo político.

O que ficou claro no domingo é que as multidões não aceitam sabotagens à Operação Lava-Jato. Esperam que se desdobre, pois veem nela o elemento mais dinâmico nessa pasmaceira. De um lado um governo que não governa, apenas tenta sobreviver; de outro a necessidade de abrir uma brecha no impasse político, premissa para se recuperar a economia.

Impossível não perceber o movimento da multidão: seus clamores não foram ouvidos pelos políticos, ela se volta para a polícia. E está funcionando. É algo que funciona, e a própria oposição decidiu se opor. Sei que esta frase pode parecer arriscada mas é a conclusão que tirei nas ruas: la nave va.

Fonte: O Globo (23/08/15) 





segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Onde está a crise (Alberto Carlos Almeida )




São muitos os ingredientes da crise política: derrota do candidato do governo, Arlindo Chinaglia, na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados; três grandes manifestações de rua, a primeira em março deste ano, pedindo o impedimento de Dilma; queda acentuada da aprovação do governo; várias derrotas do governo em votações importantes no Parlamento; a operação Lava-Jato e suas investigações policiais e processos judiciais que envolvem e eventualmente condenam políticos e executivos ligados aos governos do PT. Para quem frequenta Brasília, um importante ingrediente da crise é a crescente abertura de deputados federais e senadores ao falar em plenário da eventual deposição da presidente por meios legais.

A avaliação de que a crise política é grave é consensual, tanto no governo quanto junto à oposição. Muito menos consensual é a avaliação acerca das origens da crise. Há quem diga que foi plantada na campanha eleitoral, quando a então candidata à reeleição gerou expectativas positivas para a economia que não vieram a se realizar. Há na oposição aqueles que defendem que Dilma venha a público admitir que errou na campanha eleitoral ao gerar tais expectativas. Outros consideram que a crise é institucional, que tem a ver com o padrão de relações entre as empresas, o governo e o financiamento de campanhas eleitorais. Há também quem considere que "é a economia, estúpido" (evocando a expressão celebrizada pelo marqueteiro de Bill Clinton em sua primeira eleição presidencial). Assim, a crise econômica e a consequente redução do bem-estar e do poder de compra da população resultam em queda da aprovação do governo, e isso leva o Poder Legislativo a ficar recalcitrante frente aos interesses do Executivo.

Crise política e crise econômica se retroalimentam. Aprovação presidencial baixa ou em queda faz com que deputados e senadores se tornem, no mínimo, reticentes em seu desejo de estarem próximos ao governo. Isso torna mais difícil obter-se apoio parlamentar e o governo acaba sendo derrotado em votações de medidas importantes para gerar expectativas econômicas positivas. Em seguida, a economia piora novamente, porque os empresários, com a confiança em queda, decidem não investir.

Uma crise política da proporção que estamos vivendo não surge da noite para o dia. Saber o que a causou é o primeiro passo para que ela seja, se não debelada, ao menos mitigada. De novo, no mundo humano, das percepções, dificilmente haverá consenso acerca das origens da crise, acerca de seu diagnóstico. Seria bem mais fácil para o governo se esse consenso existisse e, preferencialmente, se fosse algo que coordenasse as percepções dos principais articuladores políticos do governo.

É lógico considerar que uma crise política é, antes de mais nada, uma crise de apoio político do governo. É disso que se trata. A cada votação de medidas econômicas que têm impacto nas contas da União, empresários e investidores se perguntam se o governo será capaz de gastar menos e arrecadar mais. As medidas de ajuste fiscal aprovadas no primeiro semestre vêm sendo anuladas pela chamada pauta-bomba: iniciativas legislativas que aumentam significativamente os gastos do governo. Se o governo tivesse apoio político no Parlamento não haveria o risco de aprovação da pauta-bomba.

Apoio político é sinônimo de maioria parlamentar. Dito de maneira bem simples: não haveria crise política se o Poder Executivo tivesse uma sólida maioria parlamentar em seu apoio. Não sendo possível obter sólida maioria, bastaria que o governo tivesse uma maioria que fosse formada caso a caso, votação por votação, e a crise não seria tão profunda como é hoje.

Fernando Henrique e Lula passaram por períodos de crise política. O primeiro, em seu segundo mandato e Lula, durante 2005, quando emergiu o escândalo do mensalão. A crise que se abateu sobre o governo Fernando Henrique teve muito a ver com o rearranjo da aliança, em período de aprovação presidencial em baixa, visando à eleição de 2002 quando o presidente não mais poderia ser reeleito. Quem viveu o período tem na memória a antológica disputa entre os senadores Antônio Carlos Magalhães, do PFL, e Jáder Barbalho, do PMDB. O conflito entre os dois era o conflito entre dois partidos sócios do PSDB no governo. Cada qual queria mais espaço junto a quem seria o futuro candidato tucano a presidente. O PFL acabou por sair do governo apoiando inicialmente Roseana Sarney e em seguida Ciro Gomes. A crise política, de apoio parlamentar, teve consequências eleitorais importantes. O PMDB ficou com Serra na eleição de 2002.

Lula venceu sem o PMDB e governou sem ele até a crise política do mensalão. Há hoje um diagnóstico, relativamente consensual de que, para Lula, acabou sendo fundamental que o PMDB entrasse em seu governo, para lhe conferir a saída da crise. Isso aconteceu concomitantemente à melhoria da aprovação do governo no final de 2005 e início de 2006.

Ninguém governa o Brasil sem o PMDB. As últimas seis eleições presidenciais tiveram o PT e o PSDB com os dois candidatos mais votados. Fernando Henrique derrotou Lula duas vezes. Lula derrotou Serra e Alckmin. Dilma derrotou Serra e Aécio. Todos os eleitos, porém, precisaram do PMDB para governar. O PT ocupa a centro-esquerda do espectro político. O PSDB ocupa a centro-direita. Cabe ao PMDB ocupar o centro. Todos os países multipartidários, Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, França, têm partidos de centro. A grande diferença entre o Brasil e eles é que o nosso partido de centro, o PMDB, é imenso. O PMDB é o maior partido de centro do Ocidente. Brigar com o PMDB é brigar com a governabilidade.

Os estudiosos de nosso sistema político sabem da enorme importância da presidência da Câmara e do Senado. Talvez não seja fácil fazer você, leitor, perceber quão poderosos são Renan Calheiros e Eduardo Cunha. Ambos controlam a agenda legislativa. Controlar a agenda legislativa é muita coisa. O Poder Executivo depende de suas decisões. Por exemplo, a tramitação da iniciativa legislativa que reduz a maioridade penal foi iniciada há 22 anos. Estava parada, esperando que um presidente da Câmara a colocasse em votação, e isso aconteceu no semestre passado. Alguns podem se perguntar por que não teria sido votada antes. Uma resposta possível é que os presidentes da Câmara que antecederam Eduardo Cunha, a pedido da Presidência da República, a engavetaram. Há muitos exemplos como este.

O projeto de lei da terceirização da mão de obra começou a tramitar na Câmara dos Deputados há 11 anos, mas foi rapidamente votado no semestre passado. É bem possível que os presidentes da Câmara anteriores tenham, a pedido do Poder Executivo, deixado o projeto parado. As contas dos governos Collor, Fernando Henrique e Lula não foram votadas até agora pela Câmara. Ora, já se vão mais de 20 anos que Collor deixou a Presidência e somente agora sua gestão contábil foi votada e aprovada na Câmara. Isso aconteceu por causa do poder de agenda legislativa nas mãos do presidente da Câmara. Vamos multiplicar os exemplos.

A PEC "da bengala", que aumentou para 75 anos de idade a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), impedindo Dilma de indicar cinco novos ministros nos próximos anos, estava tramitando no Poder Legislativo desde 2005. Foi colocada em votação por Eduardo Cunha e aprovada no semestre passado com os votos do PMDB.

Na semana passada, foi aprovada, por 445 deputados federais, em primeiro turno, a PEC 445, que vincula os salários dos advogados públicos federais, procuradores estaduais e municipais e delegados da Polícia Federal e da Polícia Civil dos Estados aos salários dos ministros do STF. Se essa PEC for finalmente aprovada, isso acarretará gastos adicionais acima de R$ 2 bilhões, não apenas para o governo Dilma, mas para todos os presidentes que a sucederem. Essa PEC estava na Câmara dos deputados desde 2009 e nunca tinha sido colocada em votação. Isso foi feito agora porque Eduardo Cunha é oposição ao governo.

Fernando Henrique, Lula e Dilma, em seu primeiro mandato, tiveram presidentes da Câmara afinados com eles. Presidiram a Câmara durante os governos Fernando Henrique: Inocêncio de Oliveira, do PFL; Luiz Eduardo Magalhães, também do PFL; Michel Temer, do PMDB; e Aécio Neves, do PSDB. Todos eles foram eleitos com o apoio do Palácio do Planalto.

Foram presidentes da Câmara nos governos Lula: João Paulo Cunha, do PT; Aldo Rebelo, do PC do B, depois de Severino Cavalcanti, eleito em fevereiro e levado a renunciar em setembro de 2005; Arlindo Chinaglia, do PT; e Michel Temer, do PMDB. Todos eles foram escolhidos por seus pares com o apoio do Palácio do Planalto.

No primeiro Governo Dilma, os presidentes da Câmara foram Marco Maia, do PT, e Henrique Eduardo Alves, do PMDB. Ambos tiveram o apoio da Presidência.

Como sabemos, Eduardo Cunha é a exceção à regra de que o presidente da Câmara é eleito com apoio do presidente da República e que ambos agem de forma afinada. O bom relacionamento entre a Presidência da República e a presidência da Câmara é o que permite que projetos que contrariam os interesses do Palácio do Planalto fiquem anos a fio engavetados nas casas legislativas. Foi o que ocorreu com a maioridade penal, terceirização, PEC "da bengala" e a PEC 445, até que Eduardo Cunha decidisse colocá-las para votar.

Grande parte da atual crise política tem a ver tanto com o relacionamento entre o Poder Executivo e o PMDB quanto com o fato de o atual presidente da Câmara, aquele que tem o controle da agenda legislativa de uma das casas do Parlamento, ter sido escolhido por seus pares para o cargo ao derrotar, em fevereiro, o candidato apoiado pelo governo. Atender às demandas do PMDB e acomodar-se com Eduardo Cunha aliviaria em muito a atual crise.

(*) Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de “A Cabeça do Brasileiro” e “O Dedo na Ferida: Menos Imposto. Mais Consumo” 

Fonte: Valor Econômico / Eu & Fim de Semana (22/08/15)

"Há um polo importante de protesto" (José Álvaro Moisés/entrevista)





As manifestações de domingo têm sido avaliadas pela quantidade de pessoas que foram às ruas, mas o cientista político José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo, considera que é muito mais importante a consolidação de um pólo de oposição ativa ao governo federal. Concentrada na classe média, a participação nesses eventos representa a mobilização de uma camada da população capaz de pautar opiniões.

Ao mesmo tempo, e agora com base em pesquisas que conduz na universidade, Moisés manifesta preocupação com a crise generalizada dos partidos brasileiros, incapazes de dialogar com a população e rejeitados por grande número de eleitores.

Valor: Há diferenças entre a manifestação do dia 16 e as do primeiro semestre?

José Álvaro Moisés: As da semana passada deram um foco maior sobre o impeachment, criticando os governos de Dilma e Lula pelo envolvimento do PT com corrupção. O que a manifestação de domingo evidencia é que há um polo muito importante que segue em posição de protesto ativo contra o governo. Uma oposição de natureza diferente daquela que se realiza no Parlamento, mas que permeia segmentos importantes da sociedade. Percorri toda a avenida Paulista no domingo, para observar o tipo de camada social que estava ali. Era a classe média, mas muita gente da baixa classe média. Eu não diria que tinha gente da periferia, mas consolidou-se um polo de oposição ativa muito forte, com diferentes segmentos da classe média. Isso não alivia em nada a situação do Planalto.

Valor: O foco mais claro aumenta a eficácia do movimento?

Moisés: Isso está em disputa. Alguns dados sugerem que houve mais gente se manifestando no dia 16 do que em abril. Outros sugerem que foi menos do que em abril. Mas o peso das manifestações independe do tamanho. Pela terceira vez no primeiro ano de mandato [de Dilma Rousseff], houve grandes manifestações contrárias ao governo, que está em crise também na relação com o Congresso e, em todas as pesquisas de opinião, está em posição extremamente frágil. Não acho que o Planalto se saiu melhor por causa do número menor de pessoas. Vemos a reiteração de uma crítica contundente por um segmento importante do eleitorado. A classe média, além de segmento intermediário entre a base e a cúpula da pirâmide social, é constituída de formadores de opinião.

Valor: A rejeição aos partidos em geral também aparece com força nos dados sobre as manifestações. Sem vínculo partidário, como se canaliza a insatisfação?

Moisés: Os partidos brasileiros vivem seu pior momento desde a redemocratização. O índice de desconfiança está muito alto. Nas pesquisas que conduzo, de 2006 a 2014 o percentual de desconfiança com os partidos supera 80%. Quando perguntamos se a democracia pode funcionar sem os partidos, a resposta positiva saltou de 30% para 45%. É uma coisa grave. E não vejo os líderes partidários enfrentando a questão. Os partidos não estão definindo respostas para a opinião pública, para recuperar a importância que os partidos tiveram na redemocratização. Os eleitores estão distantes dos partidos e os partidos se mantêm distantes dos eleitores.

Valor: Que consequências pode ter a descrença com os partidos?

Moisés: Se os partidos não canalizam a insatisfação, há um hiato importante. Em algumas situações históricas, esses hiatos acabaram servindo a aventuras antidemocráticas. Já tivemos a experiência do caçador de marajás. Aliás, uma das características daquela experiência é que não existia um partido quando Fernando Collor se lançou candidato. Um partido teve que ser montado em seis meses. Circunstâncias dessa natureza podem se prestar a aventuras que muito raramente têm sentido democrático.

Valor: Por que o PSDB, principal partido contrário ao governo, não consegue ser o polo aglutinador da oposição?

Moisés: O PSDB está num percurso errático. Uma hora quer o impeachment, outra hora quer convocar novas eleições, fora das regras constitucionais, outra hora a bancada na Câmara dos Deputados aprova projetos que aumentam os gastos públicos num contexto de ajuste fiscal, contrariando a posição programática. O PSDB não consegue oferecer uma linha clara e isso dispersa a opinião pública. Tenho ouvido muitas dúvidas sobre o papel do PSDB, que teria potencial para constituir-se em polo central das oposições. Tem potencial de apoio eleitoral e tem potencial de presença na Câmara e no Senado, tem potencial de presença em alguns Estados importantes.

Valor: A "Agenda Brasil" traz alguma tranquilidade ao governo?

Moisés: Repetindo o que acontece na história do Brasil, fez-se um acordo de elites. Como demonstram as manifestações, esse acordo está em conflito com uma parte importante da opinião pública. Um tema muito forte das manifestações é a crítica à posição da presidente na campanha eleitoral, quando ela deu uma imagem falsa da situação econômica, como estamos vendo hoje com a inflação e o desemprego. Todo esse cenário foi apresentado de maneira rósea. Ouvi isso de muita gente na manifestação: "Eles mentiram para nós". Mas é inegável que a mudança da conjuntura na última quinzena aliviou a situação de Dilma.

Fonte: Por Diego Viana – Valor Econômico/Eu & Fim de Semana (22/08/15)

O ciclo imperfeito (Marco Aurélio Nogueira)




Há um clima de fim de ciclo no País: o dos governos do PT e da “hegemonia” petista na política nacional. Fala-se disso na situação e na oposição e os diferentes partidos parecem convencidos de que o futuro nascerá de um movimento de superação. Gostaria de problematizar a ideia.

É melhor ver o esgotamento do ciclo petista - que é real - como parte do esgotamento de um ciclo maior, que deita raízes na redemocratização e no movimento que culminou na Constituição de 1988. Entre 1995 e os dias atuais, este ciclo ganhou força, produziu resultados importantes, chegou ao apogeu e está agora, ao que tudo indica, conhecendo sua desconstrução.

Tivemos no Brasil, durante esse período, um ciclo social-democrata imperfeito. Seu componente social-democrata associa-se à afirmação progressiva de uma grande democracia de massas, de caráter inclusivo e popular. Mas também à implantação do que se tem hoje no País de “Estado de bem-estar”, com políticas sociais importantes, reconhecimento explícito de direitos e uma orientação oficial largamente favorável à melhoria na distribuição de renda e à redução das desigualdades sociais. Associa-se tanto às políticas de estabilização monetária e responsabilização fiscal dos anos FHC quanto às políticas assistencialistas e de renda dos anos Lula; tanto ao esforço de redimensionamento e racionalização do Estado e da administração pública quanto à busca de novas formas de inserção internacional do País.

Tal ciclo, porém, não conseguiu atingir a “perfeição”, ou seja, tornar-se sustentável. Nem sequer chegou a ganhar plena coerência, a sintonizar seus termos e componentes ou a ser assimilado pela população e pela opinião pública a ponto de se converter em ideia-força, cultura política e convicção cívica.

A imperfeição do ciclo está estampada em algumas de suas características mais relevantes.

Antes de tudo, o ciclo não foi assumido como tal: jamais se fixou, na vida nacional, o reconhecimento explícito de que estávamos a conhecer, de modo tardio, uma “onda” social-democrata. A arena política não foi contagiada por essa ideia. Ora o vetor discursivo predominante se apoiou na tese de que se estava a viver a “continuidade da redemocratização”, ora que se tratava de trazer para o País o ideário “neoliberal” e ora que se iniciava entre nós uma fase de “redenção nacional”. Não se compreendeu que uma social-democracia estava em marcha.

Em decorrência, os partidos políticos e movimentos que protagonizaram o ciclo deixaram de cooperar entre si: optaram por abrir guerras e litígios uns com os outros, investindo energia irracional na disputa eleitoral. Preferiram processar suas diferenças às cegas, ou melhor, privilegiando tão somente a conquista de governos e posições de força no sistema político.
Uma terceira imperfeição deriva deste ponto. Convertidos em máquinas eleitorais, os partidos não se reproduziram de modo adequado, não funcionaram como “escolas de quadros” e não renovaram seus quadros de direção. Transmitiram assim, para o conjunto do Estado, um notável fracasso em termos de formação de lideranças e de oxigenação da elite política.

Soterraram, sem pena nem glória, figuras políticas da estatura de Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, Paulo Brossard, Miguel Arraes, Tancredo Neves, Itamar Franco, entre outros, que haviam definido o perfil da elite política que emergiu durante os anos de luta pela democracia. Mesmo lideranças como Fernando Henrique Cardoso e Lula não foram preservadas e engrandecidas da forma devida. A elite política, com isso, perdeu densidade e chega aos dias de hoje reduzida a níveis inimagináveis de ruindade e primitivismo: não há mais estadistas, os líderes nada lideram, o discurso político é tosco e grosseiro, falta cultura aos políticos.

Apoia-se no entrelaçamento destas três “imperfeições” o fator principal da imperfeição social-democrata a que me refiro: seus partidos principais, o PSDB e o PT, mas também parte do PMDB, o PSB, o PPS, o PSol e os movimentos sociais mais fortes, como o MST, nunca conseguiram erguer um projeto claro de sociedade. Jamais responderam à questão de saber quem somos e para onde queremos ir. Em decorrência, não educaram a cidadania, não promoveram reformas estruturais profundas e não construíram uma hegemonia digna do nome, ou seja, uma cultura capaz de cimentar e dar sentido às posições de força que se conquistavam no sistema político e no aparelho de Estado. Houve muita ocupação de espaços e muito uso dos mecanismos estatais, mas poucas ideias e pouca articulação. As próprias políticas públicas mais afeitas à social-democracia - saúde, educação, previdência, renda e trabalho - ficaram soltas, sem se completar.

A globalização, a revolução tecnológica, a conectividade em rede, a individualização foram reconfigurando a sociedade, mas o sistema político permaneceu parado, digerindo suas próprias entranhas.

O resultado disso está exposto à luz do dia: a bola de neve da corrupção, a miséria intelectual da política, uma sociedade civil exasperada e mal estruturada, a demonstração cabal de que cargos e vitórias eleitorais não dão sustentação confiável aos governantes e sobretudo uma estrondosa e profunda separação entre sociedade e Estado. A crise política atual reflete isso, ainda que também possa ser lida pela chave da inoperância presidencial. O povo distanciou-se dos governos, em especial do governo federal, principal peão de um sistema presidencialista. Não convidado, ao longo dos anos, a discutir seriamente a relação com os governos, o povo optou por romper relações com eles.

Deu no que deu. O que virá pela frente é uma incógnita, mas dá para dizer que um novo ciclo já está brotando e que avançará em diálogo com a social-democracia imperfeita do ciclo que hoje se esgota. Isso pode significar que a ideia social-democrata permanecerá a disputar hegemonia na vida nacional. Se conseguirá sucesso nisso é algo a ser respondido mais à frente.

(*) Marco Aurélio Nogueira é professor titular e diretor do instituto de políticas públicas e relações internacionais da UNESP 

Fonte: O Estado de São Paulo (22/08/15)

Crise de hegemonia: notas sobre a conjuntura atual e recente (Felipe Maia G. da Silva)


Que a crise é imensa, envolve política e economia, já não há dúvidas. Que encerra um ciclo também ficou difícil negar. Só não se consegue perceber o desenlace provável, nem o que virá a seguir. A esta altura do campeonato, o resultado é incerto, depende portanto da política, esta arte que em sociedades democráticas, com divisão de poderes, procedimentos resguardados e opinião pública, tornou-se bastante complexa. Mas é da política, da capacidade de organizar maiorias, persuadir a opinião, formar hegemonias, que sairá o desfecho da crise, o que pode demorar.

Como diria a velha piada, nesta crise, tudo pode acontecer, inclusive nada. Nesta hipótese, Dilma completaria seu mandato, mantendo algum arranjo parecido com o atual, no qual ela “reina, mas não governa”, pois como se sabe, a política econômica foi entregue a um ministro cujas convicções são bastante distintas das da presidenta e a articulação política foi transferida para o Vice-presidente da República, que de quebra é ainda o presidente do PMDB. Para completar o cenário, o Legislativo, que no famigerado presidencialismo de coalizão costuma secundar a agenda do Executivo, ganhou estatuto de maioridade e passou a determinar sua própria agenda, com intenções manifestas de isolar e se contrapor ao ideário do partido da presidenta, o PT. Alijados da política econômica, da articulação política e da formação da agenda legislativa, dificilmente se poderia dizer que o PT e o grupo da presidenta efetivamente governam. Por isso, ainda que estranha, a solução “reina mas não governa” tem sua probabilidade e teríamos, talvez pela primeira vez em nossa história republicana uma presidenta da República que se assemelha a uma chefe de Estado, mas não a uma chefe de governo. Resta saber se um país tão acostumado a governos fortes aguenta um equilíbrio tão precário.

Uma outra possibilidade é sem dúvida o impedimento de Dilma e, talvez de seu vicepresidente. Ao que parece, a articulação pelo impedimento seduz o presidente da Câmara e o líder tucano Aécio Neves, especialmente se Michel Temer fosse levado junto. É todavia uma solução nebulosa, um caminho em boa medida desconhecido para os agentes políticos e com forte custo para a sociedade. Dependeria de toda forma de um forte caso judicial que envolvesse, para além das lideranças do partido, a pessoa da presidenta da República, que todos reputam honesta.

Uma terceira hipótese, a esta altura muito difícil, mas cuja discussão ajuda a entender algumas das razões e da dimensão da crise, seria uma auto-reforma do governo petista. Tentativas de auto-reforma de regimes políticos ou de governos em crise são comuns, embora dificilmente funcionem. Gorbatchev tentou uma saída deste tipo com a Perestroika, mas não conseguiu levar adiante, sendo atropelado por forças políticas e sociais que já não podia controlar. No Brasil, no ocaso do Império, a monarquia parece ter cogitado movimento semelhante, pensando até em uma reforma agrária para completar a obra da abolição. O projeto, no entanto, mal atravessou os salões imperiais, por impotente frente aos novos interesses que se articularam em uma sociedade que havia se tornado muito dinâmica para ser contida pela velha estrutura imperial. Durante o Império, houve muita modernização social, mudanças estruturais que foram batizadas por Florestan Fernandes de “revolução encapuzada”, quando uma nova economia floresceu com o café e em torno das cidades um novo mundo mercantil mais distante da burocracia imperial. Novas gerações de jovens intelectualizados forçavam a abertura de uma sociedade estamental, hierarquicamente organizada. Eram novas aspirações que não se integravam bem ao arranjo monárquico e que desembocaram, ainda que de forma um tanto desorganizada, na solução republicana.

Mutatis mutandi, de certo modo houve algo semelhante nos últimos vinte ou trinta anos no Brasil, muita modernização social e enrijecimento do sistema político. Os governos do PSDB e do PT, já se pode reconhecer, fizeram muito, cada um à sua maneira, pela modernização social, mas pouco por mudanças na política, o que por si já remete a uma história mais afeita às mudanças moleculares que a revoluções políticas. Todavia, em algum momento a modernização social cobra seu preço das instituições políticas, como o fez, de formas distintas, na República, na transição democrática dos anos 1980 ou mesmo em 1930. O que diferencia o momento atual dos anteriores é que, felizmente, o arcabouço institucional brasileiro se mostra hoje mais desenvolvido e mais capaz de absorver as mudanças necessárias, dispensando a necessidade de uma refundação. A crise é de hegemonia política e não de incompatibilidade entre o ideário normativo e as instituições legadas pela Carta de 88 e a sociedade.

Nos últimos vinte anos o Brasil mudou e, mesmo sem se desvencilhar de suas singularidades históricas, suas “dependências de trajetória” como gostam alguns, aproximou-se das modernas sociedades e economias capitalistas ocidentais, embora em certa posição periférica ou semiperiférica. A economia capitalista se desenvolveu imensamente, com impulso estatal, mas também muito vinculada às dinâmicas do mercado internacional, como é exemplar o caso do “agronegócio”. A sociedade se complexificou, com elevação dos níveis de escolaridade, de acesso a informação, de integração a dinâmicas de rede que envolvem toda uma nova camada de jovens cujas expectativas são, felizmente, bastante elevadas. Toda uma economia mercantil se ramificou nas grandes cidades, associada a ideários de empreendedorismo e de esforço pessoal que, por vezes, tornaram-se verdadeira religião, mesmo nas classes mais populares. A miséria ou a pobreza absoluta puderam ser contidas por boas políticas de distribuição de renda, o que por outro lado, reavivou a mercantilização das relações econômicas em pontos mais vulneráveis do território. Uma boa indicação desta modernização social é a evolução do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos municípios brasileiros. Como informa o economista Ladislau Dowbor, em 1991 85% dos municípios brasileiros tinham um índice abaixo de 0,5, que é considerado muito baixo. Em 2010, apenas 0,6% dos municípios estavam nesta condição, indicando uma transformação importante que é corroborada pela melhora em outros indicadores, tais como os de escolarização, expectativa de vida, renda per capita, etc. Por outro lado, as marcas da desigualdade social permanecem, o que sugere que talvez tenhamos vivenciado uma espécie de “efeito elevador” por meio do qual a sociedade se move em conjunto sem grandes alterações nas posições relativas entre as classes, o que não exclui uma diversidade de trajetórias individuais de mobilidade ascendente ou descendente, como aliás, é comum na história brasileira.

Por sua vez, a institucionalidade oriunda da Carta de 88 se expandiu, fortalecendo a autonomia de instituições democráticas, tais como o Ministério Público, o poder Judiciário, ou todo um conjunto de normas que favorecem o acesso às informações públicas e o controle da sociedade sobre os atos dos governantes. Não se pode entender uma investigação do porte da “Lava – Jato” sem a autonomização dessas instituições face ao controle governamental, que em outros momentos sabia abafar, conter ou controlar. No conjunto, esses são efeitos da redemocratização política brasileira que projetou o horizonte normativo de um moderno país capitalista com promoção e proteção de direitos sociais, um horizonte que na falta de expressão melhor poderíamos qualificar de social-democrata e que pode sofrer inclinações mais liberais ou mais à esquerda, sem porém se desvencilhar de compromissos básicos tanto com certos gastos sociais, quanto com a economia de mercado como motor do desenvolvimento econômico.

Há por certo uma crise econômica que parece estar relacionada ao fracasso das tentativas do primeiro governo Dilma de promover uma inflexão de sentido mais nitidamente “desenvolvimentista” na condução da economia, ampliando as capacidades estatais de seletividade e planejamento do crescimento econômico, usualmente lidas pelos agentes de mercado como “intervencionistas”. A razão do insucesso parece ser a imensa resistência que os capitalistas brasileiros têm mostrado à ampliação da coordenação estatal, que pode estar relacionada a uma retração nos investimentos. Mais uma vez na história brasileira, a via do capitalismo de estado, ainda que apenas levemente esboçada, não encontra apoio na classe social decisiva para sua consecução, que permanece mais voltada para um ideário liberalizante. Some-se a isso a mudança na conjuntura de preços do setor mais dinâmico da economia, o capitalismo agrário, e há um caminho para entender a retração do crescimento com efeitos sérios para o equilíbrio fiscal da República.

Todavia, não é especificamente econômica a crise, mas política. O que está em xeque é a credibilidade e por certo a legitimidade dos representantes políticos, especialmente da presidenta e de seu partido. As revelações, trazidas à tona pelos delatores arrolados na operação Lava Jato, do entrecruzamento de interesses empresariais, partidários e pessoais nas relações entre empreiteiras, dirigentes estatais e lobistas não só jogaram os políticos governistas na vala comum da corrupção política, mas revelam também a que profundidades a política foi rebaixada. O desvio sistemático e habitual de recursos de contratos públicos para financiamento da atividade política de partidos de esquerda (e não só dela) não representa apenas prejuízo para as contas públicas – o que por si já seria execrável – mas altera profundamente as condições de participação política nas próprias fileiras partidárias, concedendo aos operadores das finanças um forte controle sobre as chances de eventuais candidatos, na prática um controle sobre a representação e a política do partido. Não é de se admirar, como informa o Observatório de Elites Políticas e Sociais da UFPR, que nestas condições a bancada do PT no Congresso Nacional já não conte com nenhum deputado cuja atividade profissional esteja identificada com a dos trabalhadores industriais ou de serviços, mas que prolifere a participação em cargos de governos como requisito básico para a obtenção de um mandato. O que causa espanto, na verdade, é a passividade com que a militância reage a esse verdadeiro sequestro do partido pelos operadores das finanças e, agora já se sabe, com fartos indícios de enriquecimento pessoal.

Ao enfraquecimento da credibilidade pelas denúncias de corrupção soma-se o estrago causado pela substituição da formulação de novos horizontes políticos pela fatuidade promovida pela marquetagem eleitoral, cujo ápice talvez tenha sido a última campanha presidencial, que rebaixa o discurso político e obstrui a constituição de uma boa esfera pública. Se o discurso conservador e maniqueísta do “nós contra eles”, de certo viés salvacionista, que havia mobilizado as campanhas anteriores já era problemático, nas últimas eleições os marqueteiros optaram por uma linha que se sabia ainda mais perigosa. Não economizaram no ataque virulento aos adversários, recusando um debate de fundo sobre novos desafios, projetaram políticas públicas como se fossem marcas de produtos, venderam à esquerda a ilusão de um governo ainda mais “desenvolvimentista”. Para na semana seguinte às eleições promoverem um recuo em direção a políticas recessivas de ajuste fiscal. Marqueteiros operam com base em um controle técnico da opinião pública, são intérpretes imediatistas e instrumentais da conjuntura política, entregar a eles a condução da política, como se fez na última campanha, tem efeitos devastadores. Daí não vem nenhuma educação política, nenhuma pedagogia, a não ser o reforço do senso comum de que o que políticos dizem em campanha, não se escreve.

A conjuntura recente ofereceu em 2013, quando das famosas jornadas de manifestações que varreram o país, uma oportunidade política para uma auto-reforma ou uma renovação do horizonte político. Ali o descontentamento era mais sistêmico e difuso, e não concentrado na figura da presidenta da República, o que ainda lhe conferia credibilidade. As jornadas de junho de 2013 foram um momento de demonstração pública das mudanças e da modernização social do país, seus participantes eram na maioria jovens de bom nível educacional e apresentavam uma pauta de reformas em serviços públicos que revelavam com nitidez ao mesmo tempo os limites das transformações ocorridas e um horizonte a ser perseguido. Seu horizonte era o da expansão das políticas sociais e da melhora da representação política, reforçando critérios de transparência e de participação na decisão em torno de prioridades de investimento, cujo símbolo foi a contraposição entre os mega-eventos esportivos e os serviços públicos universais. Tanto a incompreensão do caráter transformador inscrito nas manifestações, quanto as tentativas de manipular o descontentamento em proveito partidário, enfraqueceram a possibilidade de criação de novos laços políticos a partir dali. A rigor, politicamente as jornadas de 2013 ainda não encontraram um desaguadouro à altura, sendo que as eleições de 2014 mostraram-se em boa medida infensas ao terremoto que as manifestações anunciavam, dando mostras de um perigoso auto-fechamento do sistema político.

Não é exagero dizer que esta é uma crise de hegemonia e portanto de perspectivas. Uma das razões do impasse é que ao derruimento da hegemonia petista, não se apresenta, ao menos ainda, outra com plenas condições de substituí-la, o que pode vir a ocorrer ao longo do processo. O que virá, entretanto, é cedo para arriscar. De toda forma, algumas condições parecem imprescindíveis, a começar pela continuidade da apuração de ilícitos nas relações entre agentes políticos e econômicos empreendida pela operação Lava – Jato. Neste sentido, a recondução do procurador-geral da República, cuja independência tem sido notável, é um bom indicador de que já se compreende que uma vez iniciado, esse processo deve ter curso por meio das instituições devidas e em seu tempo. Outra condição é uma boa interpretação das mudanças sociais e das aspirações dos novos grupos e classes sociais que emergiram nos últimos anos.

A esquerda política e democrática, se quiser continuar a desempenhar um papel relevante no cenário futuro, deverá colocar em questão seu repertório e se desvencilhar de práticas políticas incompatíveis com sua história e com uma República democrática como a nossa.

(*)  Professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Fonte: Boletim CEDES (julho/agosto 2015)

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Apelar à moderação para evitar impeachment é erro (Carlos Pereira/entrevista)




Para o cientista político Carlos Pereira, setores empresariais que nos últimos dias fizeram apelos por moderação estão cometendo um erro que poderá sair mais caro para o Brasil no longo prazo.
Defensor da abertura de um processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, ele diz que há uma rara oportunidade para mudanças no país que não pode ser desperdiçada, ainda que tenha custos imediatos, como o a turbulência econômica.
Pereira reconhece que é difícil dizer, hoje, qual é exatamente o crime de responsabilidade que justificaria o impeachment. Mas ressalta que se trata de um processo político. E lembra do afastamento político de Fernando Collor, depois absolvido no STF (Supremo Tribunal Federal).
Para ele, o fato de um processo desse tipo ter de ser aberto pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha, acusado de receber US$ 5 milhões oriundos de corrupção, aumenta o risco de Dilma.
Ele enxerga o protesto deste domingo (16) como uma etapa de um movimento de longo prazo para derrubar Dilma. Nesse sentido, avalia, foi uma manifestação "muito bem sucedida".
Pereira é pessimista com o futuro do PT. Acha que o PSDB está marginalizado, mas tende a herdar o "espólio" da crise. E terá como principal rival, em 2018, o PMDB.
*
Folha - Qual é o seu balanço sobre os protestos deste domingo?
Pereira -Temos que ver isso como um movimento. Algo que começou de forma difusa, sem foco claro, fruto de uma insatisfação generalizada. A sociedade não conseguia identificar qual era a principal fonte desse mal-estar. Uma classe média que viu a situação melhorar na vida privada, melhorou a renda, o crédito, mas não viu melhoria na oferta e na qualidade do serviço público. Isso vem desde 2013. Agora, fica claro que a população identifica, como a fonte dessa insatisfação, a presidente Dilma, o PT e, o mais surpreendente, o ex-presidente Lula. A mobilização para o impeachment tem de ser ininterrupta, como num movimento de longo prazo. Nessa perspectiva, acho que foi muito bem sucedida.
Em São Paulo, a manifestação reuniu 135 mil pessoas. Foi maior que a de abril, mas menor que a de março.
O número é importante, claro. Mas não só. Hoje, fruto do resultado do julgamento do mensalão e mesmo do petrolão, que vem se desenvolvendo muito rapidamente, há uma expectativa muito positiva em ralação à Polícia federal, o Ministério Público, o Judiciário. Então talvez a eficiência desses mecanismos de controle tenha arrefecido a manifestação. Numa espécie de delegação do eleitor aos órgãos de controle, o que é uma sofisticação.
Desde o apelo do vice Michel Temer por união percebe-se uma movimentação de setores empresariais pedindo moderação. Como avalia?
Percebo uma tentativa de construção de um acordo para sair da crise com o argumento da necessidade para que as elites sejam responsáveis, evitem o aprofundamento da crise econômica. Há notícias de reuniões do presidente da Globo com líderes do governo e da oposição com apelos sobre esta suposta responsabilidade. A pergunta fundamental hoje é saber o que de fato significa ser responsável. A história oferece janelas de oportunidade para mudanças. Identifico que estamos vivendo uma dessas janelas. O Brasil sendo chamado a decidir se quer se transformar em um país desenvolvido ou se quer continuar patinando. Todos os países que alcançaram padrão de desenvolvimento reforçaram seu estado de direito e suas instituições democráticas e de controle.
Essas escolhas não são destituídas de custo. Entretanto, quando sociedades optam pagar esse custo de curto prazo são beneficiadas no futuro. Portanto, ser responsável hoje é não compactuar com comportamentos desviantes e oportunistas. Transigir sob o argumento de caos político e econômico acarretará maiores custos, pois estará se alimentando um cinismo cívico de que tudo vale.
As instituições políticas no Brasil estão maduras e a nossa democracia não passa por qualquer risco de desestruturação.
Na sua opinião, há razão para abertura de um processo de impeachment contra Dilma?
Acredito que sim. Há vários elementos que suscitam a formação de uma maioria no parlamento pelo impeachment. Lembrando que é um processo político, decisão do Congresso. Há vários indicativos de crimes eleitorais e de responsabilidade. O TCU (Tribunal de Contas da União) está em vias de analisar as contas. Pareceres preliminares foram muito críticos. O relator apresenta consistência em suas declarações. Economistas mostram que esse comportamento de maquiar contas foi recorrente.
Além de evidências de delações premiadas. Ainda não se sabe o conteúdo de tudo. Mas o que eu depreendi da decisão do procurador-geral para não abrir inquérito contra Dilma é que não foi por falta de evidências, mas porque isso foi estranho ao mandato atual. E a interpretação que ele faz é que só é suscetível ao impeachment quando o delito é cometido no mandato em vigor.
Mas isso está expresso na Constituição, não é bem uma interpretação.
É, exatamente. Mas há juristas de muito calibre que têm interpretações distintas, como Ives Gandra, Miguel Reali. Então isso é aberto para o debate. Realmente alguns membros da suprema corte já deram sinalização dando consistência à posição do Ministério Público. Mas o fato de ter juristas de grande reputação com interpretação diferente pelo menos suscita a dúvida.
Então qual é, exatamente, o crime de responsabilidade cometido pela presidente?
Pois é. É muito difícil dizer, pois é uma interpretação política. Collor sofreu impeachment sobre crime de responsabilidade no Congresso, mas foi absolvido da acusação de crime comum no STF. Então mesmo havendo divergência de interpretação entre instâncias de deliberação sobre um processo de impeachment, o impeachment ocorreu. E para que essa decisão alcance um grau de legitimidade, quanto mais aderente a acusação alcançar densidade empírica concreta, mais substancial se dará o processo.
Vale salientar que a literatura que trabalha com impeachment, principalmente na América Latina, identifica que seriam necessárias quatro condições para que o impeachment ocorra. Essas quatro situações já estão presentes no Brasil: uma crise econômica com custos dispersos no curto prazo para grande parcela da população; um escândalo de corrupção com relação direta com a perda da popularidade da presidente, nós temos isso; mobilizações de massa, este já é o terceiro evento neste ano; e, o quarto elemento, a perda da maioria do presidente no Legislativo, isso se configurou, pois a base derreteu, se desidratou.
No caso, o impeachment teria que ser aberto pelo presidente da Câmara. Mas Eduardo Cunha é acusado de receber US$ 5 milhões oriundos da corrupção. Há legitimidade nisso?
É uma contradição incrível isso, né? Mas é interessante isso. Como o presidente da Câmara e o do Senado [Renan Calheiros] são investigados, o jogo adquiriu um grau de sobrevivência individual desses atores. Assim, a estratégia dominante tem sido tentar vulnerabilizar ao máximo a presidente. É para sinalizar a ela não tem saída a não ser que esses atores também sobrevivam. Mas eu acho que o Executivo não entendeu isso e adotou uma estratégia de isolamento do Eduardo. Diante disso, a crise se aprofundou.
O surpreendente é isso que você diagnosticou: quem tem a capacidade de abrir a investigação no Legislativo é também um outro acusado, com evidências fortíssimas contra ele. Nesse cenário, acredito que aumentam as chances do impeachment. Meu diagnóstico é que ou esses atores sobrevivem juntos ou morrem juntos. Não vejo como um sobreviver e outro morrer.
Na análise do TCU, um dos argumentos usado na defesa da presidente é que as manobras batizadas como pedaladas fiscais (atraso de repasses do Tesouro aos bancos públicos para ressarcir pagamento de benefícios) também ocorreram nos governos de Lula e FHC. A mudança seria apenas no escala, não no ato em si. Não fragiliza a acusação?
Não são só os problemas dos empréstimos de bancos públicos. O TCU identificou pelo menos 13 irregularidades. Mas eu acho que essas instituições ganharam muita autonomia e independência a partir de 1988. Elas não tinham uma burocracia própria, um pessoal treinado, com capacidade técnica para analisar. Porque são coisas complexas. Então elas estão se amadurecendo. Agora tem uma geração muito inteligente de gente capaz, ávida, que entrou nos últimos 10, 15 anos. Houve um fortalecimento da capacidade técnica. Então a capacidade dessas instituições de identificar maus feitos melhorou muito nos últimos anos. Eu acho que o fato de essas mesmas instituições terem sido mais complacentes num passado recente -não terem identificado esses problemas com Lula e FHC- não abona o caso atual. E não confere ao tribunal o direito de ser benevolente agora.
Eu acho que essas instituições de controle perceberam que quando eles alinham seu comportamento à expectativa da maioria da população, elas alcançam legitimidade, reputação, identidade com a sociedade. E isso contagia outros órgãos de controle. "Quem interessante, ninguém nunca tinha notado na gente". Ninguém nunca tinha aplaudido um juiz num restaurante. Ou feito elogios públicos ao procurador-geral da República. Ninguém sabia o que era TCU. Então isso tudo gera efeitos positivos numa direção virtuosa dessas instituições.
Dilma tem falado em "intolerância", "golpismo", "falta de diálogo" e associou essas coisas à bomba lançada no Instituto Lula. O que acha?
Acho que foi um infortúnio. De fato, há grupos extremos nesse movimento. Mas acredito que são marginais. A sociedade está comprometida com a democracia, não vejo nenhum risco de golpe.
Essa história de golpe é uma estratégia de vitimização. É racional o governo se colocar nessa posição. Precisa tentar construir alguns elos de suporte na sociedade. Ao contrário que que ocorria com Collor, o PT tem conexões fortes com os movimentos sociais, sindicais. Esse discurso visa, claramente, reconstruir tecidos de conexão com esses movimentos que outrora davam suporte mais ativo ao PT.
E a ideia do chamado golpe branco? A possibilidade de se criar uma situação para promover o impeachment, respeitando o trâmite processual, porém sem uma caracterização clara de um crime de responsabilidade?
Eu não acredito que esses movimentos são um terceiro turno, ao contrário que a presidente Dilma, o ex-presidente Lula e o Rui Falcão (presidente do PT) têm falado. O jogo eleitoral foi legítimo, foi muito competitivo. Houveram alguns excessos de algumas candidaturas, mas o jogo foi legítimo. Eu acho que a oposição reconheceu que perdeu. Isso passou. E então houve fatos novos. O nível de informação que a população tinha sobre a Operação Lava Jato é outro. Em pouquíssimo tempo, a sociedade foi exposta a uma quantidade de informação tão volumosa, e em cifras tão astronômicas, que isso gerou uma desagregação muito rápida da capacidade do governo e do partido do governo de dar respostas críveis. E existe muita consistência nessas acusações. Todas as delações premiadas indicam que esse processo começou em 2003. O próprio [ex-gerente da Petrobras Pedro] Barusco ressaltou que existia antes, mas só numa perspectiva mais individual. A formação da cartelização política e empresarial em instituições públicas foi um evento da gestão do PT.
Como é que o senhor sintetiza essa situação?
O que eu vou dizer pode soar meio louco, talvez porque seja influenciado por minha formação médica. Eu fui médico antes. O sistema político brasileiro é um sistema híbrido, no sentido de ter vários elementos de consenso no jogo. É necessário construir consensos. O sistema eleitoral é proporcional, de lista aberta, você tem Judiciário independente, federalismo, governadores, constituições estaduais, bicameralismo. Todos esses instrumentos são de consenso. Você só tem, basicamente, um poder majoritário no jogo, que é o poder do presidente. Ele é muito forte, tem poder de agenda e tudo mais. Então essa combinação híbrida requer que o partido que chegue ao poder não se comporte de forma majoritária, mas de forma também consistentemente proporcional e híbrida. O que eu acho que ocorreu é que o PT, desde 2003, se comportou de forma majoritária dentro de um sistema híbrido. Ou seja: quis impor sua preferência e a alocação de recursos políticos e financeiros para o próprio PT a despeito do peso político de seus parceiros. Isso paulatinamente gerou animosidades. É como se um corpo vivo tivesse sido objeto de um processo infeccioso. Ou de uma degeneração celular cancerígena em que isso começou a crescer. E numa reação quase imediata do organismo, natural, o corpo tenta isolar isso, tenta encapsular. Mas isso também tem um efeito perverso, pois essa infecção, ou esse conjunto de células que se comportam numa direção contrária à do sistema, começa a se desenvolver ali. Começa crescer, crescer. E isso começa a ser disfuncional. Até o momento em que o sistema quebra e um novo sistema se implementa. Ou o sistema reverte e impõe limites à infecção e a expulsa.
É a situação de hoje, na sua interpretação?
O que estou sentindo hoje é uma reação do sistema político brasileiro. Não é nem uma reação da oposição, pois a oposição está completamente marginal nesse jogo. O PSDB está marginal nisso. Tanto no processo de impeachment quanto nas votações no Congresso, é minoritário. Mas é como se a sociedade estivesse reagindo à essa forma de governar, que é contrária ao próprio desenho de como o sistema foi originalmente pensado. Então tem uma certa incongruência entre o sistema brasileiro e a forma como o PT governa. E o PT nunca entendeu isso, nunca percebeu que sua forma de governar iria gerar custos crescentes para o governo e para a própria sociedade. É essa a crise que o PT vive hoje. E é uma pena, você imaginar isso com um partido que teve um papel fundamental transição democrática, que teve papel decisivo no momento da inclusão social, que teve uma política vigorosa de aumento do salário mínimo, na oferta do crédito, na abertura de políticas de inclusão racial. Esse legado é importante. Mas isso foi feito diante de uma lógica contra a engrenagem em que o sistema estava montado.
Dilma tem 71% de reprovação, um recorde, mas é curioso notar que ela foi reeleita há menos de um ano. E não dá para alegar que era só artifício da campanha, uma surpresa, pois foi uma reeleição. O explica isso?
Eu acho que houve uma quebra muito grande de contrato. A presidente fez um discurso muito mentiroso na campanha. Houve um estelionato eleitoral. Isso fez a presidente perder legitimidade muito rapidamente. Porque ela fez um discurso na campanha como se tudo estivesse sob controle. A oposição fez o discurso de que o Brasil estava indo na rota caótica, de desequilibro macroeconômico e fiscal. E o governo negando isso, dizendo que tudo estava sob controle, mas maquiando informação. Então quando a presidente se reelegeu e as primeiras medidas foram na direção contrária do que havia sido dito, ocorreu uma completa frustração.
Alguns autores mostram que presidentes que cometem estelionato têm dificuldade para governar e também para fazer sucessor. Aconteceu, em menor medida, com Fernando Henrique entre 1998 e 2002. Ocorreu também com Fernando Collor. Com Dilma, ficou muito óbvio. A candidatura agiu de uma forma muito estratégica, muito pouco sincera com o eleitor. E aliado ao escândalo de corrupção. A gente vê propinas de bilhões, não temos nem ideia do que significa isso. Então imagine o eleitor comum bombardeado diariamente com operações em cima de operações. E ainda a questão econômica. Tudo isso, então, vira uma bomba atômica para o governo. Não é um elemento apenas. É um somatório. Não se trata de dizer que o Brasil não conhecia a Dilma. É que o Brasil se deteriorou muito rapidamente.
A política nacional é marcada pela polarização PT-PSDB desde 1994. Com o PT em crise e o PSDB à margem, como o sr. disse, podemos esperar algo diferente no próximo período?
Eu acho que sim. Estou muito pessimista com o futuro do PT. Não acho que o PT vai acabar, até porque tem muita gente que dependente dele: uma burocracia muito sólida, grande e distribuída, e que depende dessa estrutura partidária. Mas vai haver uma progressiva migração. E alguns vão mesmo criar novos partidos de esquerda. A velocidade disso vai depender diretamente da extensão da punição judicial dos envolvidos [em corrupção].
E o PSDB?
O PSDB, de certa forma, está de camarote nesse jogo. Vai tentar pegar o espólio disso. O partido teve um candidato muito competitivo em 2014 e, de acordo com as pesquisas atuais, tem uma dianteira sólida, na frente mesmo do ex-presidente Lula. Então o PSDB corre menos riscos.
Acredito que o jogo vai ficar entre PSDB e PMDB na próxima eleição. Daí porque, no caso de um impeachment, vejo a dificuldade do PSDB em apoiar um novo governo [com Temer na Presidência]. Porque o PSDB já começa a identificar o PMDB como seu principal rival. Mas vai ser muito pouco crível que o PSDB não participe de um governo de transição sob a liderança do PMDB em caso de impeachment. Então a questão do PSDB é: como participar e, ao mesmo tempo, criar condições para uma disputa num futuro recente?
O que achou da Agenda Brasil liderada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, e encampada imediatamente pela Dilma?
Achei que foi uma estratégia interessante do governo. O governo percebeu que não consegue mais desenvolver canais de cooperação com Eduardo Cunha (presidente da Câmara), e o que sobrou foi buscar esse apoio. Então eu acho que o governo conseguiu chegar no preço do Renan Calheiros. Agiu mais inteligentemente com Renan do que agiu com Eduardo. Acho que não soube pagar o preço do Eduardo. Ou talvez o preço do Eduardo tenha sido mais caro. Mas isso deu uma sobrevida ao governo, que estava perdido. Encontrou no Renan uma âncora, uma via. Agora, quanto à agenda em si, eu estou pessimista. O PMDB está muito fragmentado. O Eduardo Cunha já sinalizou que irá bloquear isso, ele tem esse poder.
A oposição é cobrada por estar votando contra medidas que ela defendia. Estaria fazendo isso só para atrapalhar Dilma. Como vê essa cobrança?
É interessante isso. Quem faz essa crítica não percebeu que para a oposição, numa situação de polarização, não existe espaço para um comportamento responsável no curto prazo. Porque ser responsável hoje significa aumentar o tempo em que essa oposição vai continuar na oposição. A estratégia dominante hoje para a oposição é vulnerabilizar ao máximo a presidente. E sabendo que ela está muito constrangida do ponto de vista fiscal, e sabendo que a probabilidade dessas medidas passarem é baixa, pois, em última instância, a oposição sabe que ela vai mesmo vetar, o que a oposição está fazendo é o jogo de transferir a responsabilidade do veto à presidente.
Mas não é esse o tipo de comportamento que, no final, vai distanciar ainda mais os eleitores? Isso que o senhor falou é um cinismo. Não seria, com sinais invertidos, um estelionato da oposição?
Não resta dúvida. O ponto é saber até onde a oposição pode ir com isso. Até quanto o custo gerado para a presidente compensa o custo da perda de grau de legitimidade com a sociedade em função de fazer isso? Mas queria destacar que a opinião pública pode não estar vendo esse componente estratégico, vê só o componente de princípios.
É uma situação de guerra aberta. Se alguém está se afogando e você joga uma boia, essa pessoa vai se agarrar nisso e vai sobreviver, pelo menos algumas horas a mais, alguns dias. 

Por Ricardo Borges 
fonte: Folha de São Paulo (xx/08/15