quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

As raízes do Brasil e a democracia (parte I) - Brasílio Sallum Jr.





A noção de democracia, tal como usada por Sérgio Buarque de Holanda, tem grande complexidade, o que permite ao analista que dela se utiliza evitar enganos advindos, por vezes, do uso de viseiras conceituais estreitas, tendentes a produzir conhecimentos claros mas simplórios. Esta complexidade, porém, oferece suas próprias dificuldades, pois o termo diz respeito a distintas dimensões da vida social, elas próprias dependentes da estrutura e dinâmica da vida social subjacente.

Com efeito, em Raízes do Brasil, o termo democracia se refere, às vezes, a um padrão de relações de poder entre distintas camadas e grupos sociais, apontando portanto para a dimensão sociopolítica da sociedade. Neste sentido, ela designaria realidades existentes talvez em outras partes, mas não no Brasil daqueles tempos. No momento em que o livro foi publicado, ela estaria, apenas, em gestação. Portanto, democracia neste sentido é um contraponto à relação oligárquica e pode designar um modo de organizar a vida política que o analista identifica como futuro provável decorrente das tendências de transformação social em operação em determinada sociedade.

Outras vezes, o termo democracia remete ao plano cultural — da cultura política. Ela designa aí ideologia, uma representação social que adorna, que ornamenta relações não democráticas de poder. Ainda no plano da cultura política, ela pode designar, ao contrário, valores e modos de organização política não prevalecentes no país, sintonizados com relações sociopolíticas democráticas, contrapostos aos predominantes, ancorados em nossa tradição Ibérica. Neste sentido, ela designa aspiração coletiva e não apenas uma forma de organização política que o analista identifica como tendente a se realizar.

A discussão que aqui se fará da noção de democracia tal como utilizada em Raízes do Brasil tem relevância não só do ponto de vista da interpretação de um dos clássicos do pensamento social brasileiro. Creio que o modo como Sérgio Buarque reflete sobre a noção em pauta pode ser iluminador no exame do presente histórico.

Como em Raízes do Brasil, a noção de democracia aparece em contraponto à tradição ibérica, começarei pela exame desta tradição. Discutirei, depois, a noção de democracia e as relações complexas que mantém com a sociedade como um todo; por último, examinarei as dificuldades para sua implantação nos países da tradição ibérica, como o Brasil.

Personalismo, oligarquia e patrimonialismo
A dupla referência que fiz ao futuro — sublinhando que a democracia em Raízes do Brasil aparece como aspiração social ou como realidade em gestação que o analista identifica — mostra bem o problema que Sérgio Buarque tinha em vista ao elaborar seu ensaio. Com efeito, o problema central do livro não é reconstituir o passado do Brasil, nossas raízes enquanto tais; é desvendar o processo de transição sociopolítica experimentado pela sociedade brasileira.

É no último capítulo, como atesta o seu título — “nossa revolução” — que o cerne do livro vem à tona plenamente. Mas a questão percorre toda a obra, mesmo quando o texto parece só ter em vista o passado. Ao examinar as concepções, instituições e formas de vida gestadas por nossos antepassados, Sérgio Buarque o faz tendo em vista que elas ainda oprimem — como diria Marx — o cérebro dos vivos.

O que se quer identificar no livro é qual passado estava então para ser superado e qual futuro embrionário estava contido naquele presente histórico. É claro que os episódios e formas de sociabilidade examinados no livro podem decerto ser situados no tempo, mas sua intenção não é reconstituí-las como passado encapsulado e desconectado do presente. Seu objetivo, ao invés, é reconstruir fragmentos de formas de vida social, de instituições e de mentalidades, nascidas no passado, é certo, mas que tomavam parte da constituição da identidade nacional que Sérgio Buarque acreditava estar em curso. Raízes do Brasil não é, assim, um livro de história. Ele usa a matéria legada pela história para identificar as amarras que bloqueiam no presente o nascimento de um futuro melhor.

Há, pois, que ter cautela com a interpretação que entende ser o objetivo de Raízes do Brasil reconstituir a identidade nacional brasileira, aquilo que nos singularizaria como sociedade [1]. Cautela, porque trata-se em Raízes de reconstituir a identidade brasileira “tradicional” apenas como um dos componentes do presente, como o elemento do passado que ainda conforma parcialmente o presente mas que, no entender de Sérgio Buarque, tendia a ser superado pelo processo de transformação social que perpassava a sociedade brasileira. Assim, para Sérgio, a identidade brasileira estava em devir, em construção.

No entanto, em Raízes do Brasil a tensão inerente à práxis histórica não derivava apenas da “nossa revolução”. Antes mesmo de que iniciasse a história nacional brasileira, ainda no início da aventura portuguesa na América, sublinha-se a tensão entre passado e presente, entre legado institucional e condições sociais e materiais. Esta tensão é entendida como característica dos fenômenos examinados. Assim, no momento mesmo de colonização portuguesa, Sérgio Buarque sublinha a ambiguidade da experiência decorrente da nova sociedade ser fruto da colonização europeia e não se amoldar bem à sua herança social. Este é o tema das primeiras frases do livro: “A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante” (Buarque de Holanda, 1993, p. 3).

Parece, assim, que as transformações iniciadas no século XIX, que tiveram na Abolição o seu epicentro, reinstauraram na sociedade brasileira um descompasso que Sérgio Buarque sublinha ter havido nos albores da colonização, quando os portadores das instituições transplantadas tiveram que enfrentar o desafio de condições naturais e sociais diferentes das existentes no mundo ibérico.

Em meados dos anos 30, Sérgio Buarque sublinha, mais uma vez, o descompasso; mas, agora, com sinal contrário. Já não é a rusticidade da matéria que resiste às formas institucionais do legado ibérico; agora é a tradição ibérica e sua encarnação institucional que constrangem a construção de uma nova sociedade, divergente em relação à tradição herdada.

Que tradição ibérica é esta a que Sérgio Buarque se referia?

Trata-se do personalismo. No seu cerne estava uma concepção da natureza humana que portugueses e espanhóis compartilhavam antes e ao longo do processo de colonização da América. Com efeito, predominava na Península Ibérica — por oposição às concepções reinantes na Europa de além Pirineus — a cultura da personalidade, a valorização extremada da pessoa, de sua autonomia em relação aos seus semelhantes. Em lugar, da subordinação aos valores e normas das coletividades estamentais, para os ibéricos, sublinha Sérgio, o índice do valor de um homem pode ser inferido da extensão em que não dependa dos demais.

Este sentimento da dignidade própria a cada indivíduo, mesmo tendo se universalizado, inclusive entre os plebeus, nasceu da nobreza, como ética de fidalgos. A burguesia ascendente, em lugar de contrapor-se a ela, assimilou-a. De fato, a frouxidão da estrutura social, a permeabilidade das hierarquias — em contraste com as barreiras existentes onde o feudalismo imperava — permitira que artesãos e mercadores citadinos ascendessem socialmente em Portugal sem grandes obstáculos, já na época da Revolução de Avis, no século XIII. Estas facilidades explicam — segundo Sérgio — por que a burguesia mercantil não precisou em Portugal adotar um modo de viver e pensar absolutamente novo, que marcasse permanentemente o seu predomínio. Ao contrário, procurou associar-se às antigas classes dirigentes e assimilar muitos dos seus princípios, “guiar-se pela tradição, mais do que pela razão fria e calculista” (BH, 1993, p. 8).

Em suma, no mundo ibérico a cultura da personalidade associava-se a certa frouxidão da estrutura social, a uma falta de hierarquia organizada, em que os privilégios hereditários jamais tiveram influência muito decisiva, importando menos o nome herdado que o prestígio pessoal, relacionado com “a abundância dos bens de fortuna, os altos feitos e as altas virtudes” (BH, 1993, p. 9).

Não se reconhecia esta autonomia aos que dependiam (filhos, mulheres, etc.) dos que portavam na sua plenitude a condição de pessoas. O mesmo ocorria com os que viviam de trabalhos mecânicos. O personalismo ibérico, fazendo a apologia da autonomia da pessoa, concebia a ação sobre as coisas, sobre objetos exteriores, como aceitação de uma lei estranha ao indivíduo, que aviltaria e prejudicaria a própria dignidade. É por isso, escreve o nosso Autor, que “é compreensível que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. [...] E assim, enquanto os povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se largamente no ponto de vista da antiguidade clássica [...] de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor” (BH, 1993, p. 10).

Desta concepção personalista de autonomia da pessoa resultam três consequências para as relações entre os homens. Dela resulta, segundo Sérgio, boa parte da fragilidade das formas de associação baseadas em solidariedades livremente pactuadas. A própria carência de uma moral do trabalho no mundo ibérico reforça a pouca capacidade de organização social autônoma. De fato, onde impera uma moral do trabalho, o esforço humilde, anônimo e desinteressado tende a produzir a solidariedade de interesses, a organização racional e a coesão entre os homens. Entre os hispânicos, pois, a solidariedade não emerge da compatibilização de interesses; surge mais frequentemente de vínculos sentimentais — solidariedade entre parentes ou amigos, círculos necessariamente limitados e particularistas.

Segundo aspecto. Ao exaltar o mérito pessoal — riqueza, feitos ou virtudes — frente aos privilégios herdados, o personalismo distingue-se obviamente do universo de pensamento inerente ao feudalismo da Europa além dos Pirineus. Contra esta subordinação dos indivíduos à coletividade, o personalismo é uma forma de individualismo. Mas afasta-se também do individualismo moderno. Este pressupõe uma igualdade essencial entre os homens; para o personalismo, ao contrário, a desigualdade é o resultado inevitável da competição entre eles; alguns homens seriam mais, outros menos talentosos, uns mais, outros menos dependentes dos demais. Pode-se dizer, quando muito, que o personalismo é um individualismo aristocrático, de uma aristocracia aberta ao talento.

Terceiro aspecto. As tendências anárquicas inerentes à exaltação da personalidade e as dificuldades de gestação de formas livremente pactuadas de organização social convertem os governos no único princípio organizador das sociedades ibéricas. Diz-se em Raízes: “em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida” (p. 4). A estabilidade política aqui só poderá surgir de uma alternativa, a renúncia à personalidade, à autonomia da pessoa, em vista de um bem maior. Renúncia conducente à obediência cega, disciplinada, a uma potência externa. Entre os povos ibéricos, “a vontade de mandar e de cumprir ordens são-lhes igualmente peculiares. As ditaduras e o Santo Ofício parecem constituir formas tão típicas de seu caráter como a inclinação à anarquia e à desordem” (BH, 1993, p. 11).

Desta forma, a instabilidade política — a oscilação entre a anarquia e a ditadura — torna-se inevitável, uma constante da vida social, um pressuposto sociopolítico do personalismo.

Essa “cultura política”, centrada no personalismo, encarnou-se no Brasil-colônia na família patriarcal, centro de toda sua organização social. Seguindo as normas do antigo direito romano-canônico, preservadas na Península Ibérica, a família patriarcal incluía no seu círculo não só os parentes de sangue mas também os agregados, os escravos domésticos e das plantações. Nela, o pátrio poder era quase ilimitado, mantendo-se quase imune às pressões ou restrições de fora. A propriedade rural como um todo estava sujeita à sua vontade. E ela própria era um organismo que, em princípio, bastava-se a si mesmo, tendia à autarquia. Tinha escola, capela, produzia sua alimentação cotidiana, os móveis e apetrechos do engenho saíam de suas serrarias.

Foi este o modelo de organização social que, ao ver de Sérgio Buarque, se projetou para toda a vida social colonial, priorizando o particularismo e os laços afetivos. Com efeito, a família patriarcal foi o elo social através do qual a tradição personalista e aventureira herdada dos colonizadores portugueses se aclimatou entre nós e acabou por imprimir sua marca na sociedade com um todo, mesmo quando, depois da Independência, desenvolveram-se os centros urbanos e decaiu a velha lavoura. Com efeito, na ausência de uma burguesia urbana independente, as principais ocupações citadinas acabaram sendo preenchidas por donos de engenhos, lavradores ou seus descendentes, os quais acabaram por transportar para as cidades a mentalidade, os preconceitos e, na medida do possível, o estilo de vida originário dos domínios rurais.

Como o patriarcalismo marcou a organização política da sociedade brasileira independente? Como se acomodam o particularismo de origem patriarcal ao universalismo da forma-estado, instituído pela Independência?

O processo pelo qual o universal suplanta o particular foi acompanhado de crises mais ou menos prolongadas. No caso brasileiro, assegura Sérgio Buarque, a situação seria tanto mais problemática porque a família de tipo patriarcal, aqui predominante, tende a absorver intensamente os seus membros na comunidade doméstica — marcada pelos laços de afeto e de sangue, pela reduzida autonomia e senso de responsabilidade própria de seus membros. A preocupação central de Sérgio Buarque não estava tanto nas dificuldades gerais de adaptação dos indivíduos à ordem social individualista moderna. Estava nas consequências do predomínio do patriarcalismo sobre o funcionamento das modernas instituições societárias, especialmente as atividades estatais.

De fato, para ele, o indivíduo formado em um ambiente dominado pelo patriarcalismo dificilmente conseguirá distinguir entre o domínio privado e o domínio público e, portanto, a coisa particular do bem público. Tende a comportar-se como um funcionário “patrimonial”, para o qual — segundo Max Weber — “a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem as garantias dos cidadãos” (BH, 1993, p. 106).

Este seria o caso do Brasil — escrevia Sergio Buarque nos anos trinta e quarenta do século XX. Aqui quase sempre teria predominado, tanto na administração pública como em outras áreas, o modelo de relações gerado na vida doméstica — a esfera dos laços afetivos e de parentesco.

Vale sublinhar que esta concepção de patrimonialismo diz respeito a uma forma de domínio em que agrupamentos políticos enraizados em grupos particularistas da sociedade — desdobramentos da família — produzem um viés na esfera pública, submetem o Estado e o interesse geral. Nessa concepção, não é o Estado a potência universal que organiza a sociedade, mas são os particularismos desta que submetem o Estado. Oscilando entre a descentralização tendente à anarquia e à centralização tendente ao governo forte, o Estado patrimonial nada mais é do que domínio oligárquico.

Assim sendo, há uma afinidade entre a cultura política nucleada no personalismo, o domínio oligárquico e o Estado patrimonial. Esta cultura e esta ordem política ainda vigoravam no Brasil quando Sérgio Buarque escrevia Raízes do Brasil, apesar das transformações ocorridas na estrutura social brasileira, expressas na urbanização acelerada e no crescimento industrial. Vigoravam mas eram cada vez mais contraditórias com as modificações que ocorriam no plano socioeconômico.

Retomamos, portanto, o tema do descompasso a que nos referimos parágrafos atrás: para Sérgio Buarque, as transformações sociais revolucionárias que perpassavam a sociedade brasileira, mesmo depois da Abolição, ainda não tinham encontrado uma boa “tradução” seja no plano das relações de poder entre agrupamentos sociais e seja no das instituições políticas. Daí a célebre frase: “a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns temas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos” (BH, 1993, p. 119).

Personalismo, oligarquia e democracia como adorno, decoração a ocultar os privilégios oligárquicos. Isso valia para o período da Monarquia e mais ainda para a República Liberal. Uma e outra expressavam no plano político o predomínio da grande lavoura exportadora tradicional e o poder social restrito de agrupamentos que eram desdobramentos da família patriarcal numa época em que elas já perdiam o predomínio na economia e na sociedade. A República, neste sentido, constituía forma institucional mais anacrônica do que a Monarquia, porque o processo de revolução social subjacente a ambas se acelerara depois da Abolição.
(Continua amanhã)
Fonte: Sinais sociais, v. 17, n. 19, 2012 & Gramsci e o Brasil

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