segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O PT muda ou acaba? (José Arthur Giannotti)





Para que hoje se entenda o partido, é preciso lembrar que ele nasceu basicamente de três linhas: uma sindical, outra religiosa e outra intelectual.

No caminhar a linha intelectual implodiu, na medida em que aquela unidade de pensamento socialista também se esfarelou. Boa parte dos que seriam petistas na reunião do Sion em que eu estava hoje estariam no PSOL ou em algum outro tipo de agremiação... não diria mais de esquerda, diria mais lunática. A área religiosa se enfraqueceu na medida em que a própria Igreja Católica está sendo comida pelos pentecostais e tem d’autres chats à fouetter, outros afazeres. A ala sindical, que predominou, passou por um processo normal que afeta os sindicalistas quando chegam ao poder: eles vão se apropriando dos instrumentos do poder e enricando com eles. Foram se corrompendo ano a ano. Nem sempre é a corrupção individual de cada um de seus membros, mas aquela que os militantes praticam em nome do Partido que é ‘a voz da História’. O (ex-ministro) Gilberto Carvalho pode se inflamar dizendo que não é ladrão, que não tem bens pessoais - e acredito nisso pia e fraternalmente -, mas lhe cabe explicar o processo de filtragem do dinheiro público que já começa com Celso Daniel na gestão na prefeitura de Santo André.

À medida que o PT chega ao poder, e já através de alianças estranhas do ponto de vista ideológico, ele as amplia fechando com as velhas lideranças do coronelismo brasileiro. Veja bem: a mesma aliança foi feita por FHC, mas no final do processo os coronéis estavam bem mais fracos. No fim do mandato Lula, o poder dos coronéis estava recauchutado. Com o sucesso de seus programas sociais, o PT muda de base e finca pé nos antigos grotões que passaram a participar desta nossa pobre sociedade de consumo.

Dilma 2 tenta se afastar dessa ‘direita’ sem ideologia. Projeta voltar a uma política de crescimento arrumando a casa, cerca-se de petistas de sua confiança, mas até agora não se sabe se terá força política para tal. Arma o trio que vai gerir a nova economia, mas até agora não construiu as bases políticas que possam sustentá-lo.

A disputa está aberta entre aqueles que acreditam ser possível criar crescimento simplesmente aumentando a oferta e aqueles que, mais cientes dos traços do novo capitalismo contemporâneo, acreditam que não há crescimento sem a transformação de nossa base tecnológica. Como aquela que está acontecendo hoje nos EUA. Precisamos de um plano de longa duração, reformando a infraestrutura, ao menos bloqueando a decadência das grandes cidades e, sobretudo, reformulando o sistema de ensino e expandindo os sistemas de pesquisa. As universidades burocratizadas não dão conta desse recado. O lema ‘Brasil, Pátria educadora’ indica a estreiteza do diagnóstico. Reforçar a educação segundo os velhos padrões é educar para o atraso. Ainda estamos à espera da transformação técnico-científica que possa assegurar papel relevante do País no mundo futuro. Não é à toa que uma pessoa honrada, mas que não entende nada disso, Aldo Rebelo, foi posta no Ministério da Ciência e Tecnologia. O jogo distributivo das alianças prevaleceu sobre os critérios técnicos e o projeto de nação.

O partido, de um lado, se corrompeu infiltrando sua burocracia na burocracia estatal, com prejuízo das duas. E, de outro, não tem perspectivas de como deve atuar no capitalismo contemporâneo. Não só se ajustou ao presidencialismo de coalizão, mas se tornou uma das forças que o sustenta. Nessas condições tem pouca eficácia clamar pelo retorno às origens quando lhe falta uma visão mais ampla e adequada do que significa uma luta pela igualdade nas condições em que continua a operar um novíssimo capitalismo contemporâneo. Sem isso, não teremos riqueza para distribuir, nem capacidade de pensar os males que o capitalismo necessariamente provoca.

Sobre o diagnóstico da Marta, é difícil avaliar toda sua extensão. Vai depender de como se desenvolverá a crise larvar que é o próprio governo Dilma, de como o jogo político brasileiro vai se armar deixando espaço para que o PT tenha um comportamento político mais unificado. Está em curso uma operação saneadora, promovida sobretudo pelo MP, mas tendo grande apoio da população, muito semelhante àquela das Mãos Limpas que ocorreu na Itália e desmanchou seu sistema político. A bomba da Petrobrás ainda não se esgotou. Até que ponto as denúncias e as sentenças afetarão nosso sistema político como um todo? Outros membros do PT deverão ser sacrificados?

Este é um governo em crise política, que também se mantém em guerrilha com o Congresso. Sob Lula essa relação funcionava melhor porque ele tem uma notável inteligência política e operava numa situação econômica extremamente favorável. O problema é que não vejo hoje, nem mesmo entre os intelectuais brasileiros, uma visão mais clara sobre a crise política e econômica em que estamos mergulhados. Como se organizarão as oposições? Como a população reagirá a tudo isso? Diante do tamanho desse desafio, como vai se estabilizar a luta de poder dentro do próprio PT? Quem dará as cartas? Os lulistas? Dilmistas? Martistas? Mas o jogo já não está viciado?
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José Arthur Giannotti, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

O PT muda ou acaba? (Jairo Marconi Nicolau)





O PT faz 35 anos e isso não é pouco na nossa história republicana. Tirando os partidos políticos da Primeira República, que duraram quase 40 anos, mas com feições diferentes, já temos instituições longas para o padrão brasileiro. Ele é a organização partidária mais diferenciada que o País já teve. Quando nasceu, esta era a leitura que os próprios membros faziam de si mesmos: ‘Somos diferentes de tudo que tem aí, quebramos um padrão de se fazer política’. Essa fase do início da década de 1980 é muito celebrada, de maneira romântica, porque ele não dependia das estruturas estatais como hoje. Era uma agremiação de voluntários, com um processo de deliberação mais de baixo para cima.

Esse partido acabou, e passou por dois processos de inflexão - um interno e outro externo. O interno, de moderação do discurso tendo em vista a chegada à Presidência da República, veio com a expulsão das correntes mais de esquerda e o estabelecimento de uma aliança em 2002 com um partido fora do campo de esquerda, o PL. Mas há o externo, que talvez seja um pouco subestimado pelos analistas: o PT sofreu grande influência de fora para dentro com a mudança da Lei de Partidos, em 1995. Ela transformou completamente a forma de organização dos partidos no Brasil, com a criação do fundo partidário - que poucos anos depois já era a principal fonte de recursos do PT, em detrimento dos dízimos pagos pelos militantes e dirigentes na primeira fase. Entra também o Horário Eleitoral Gratuito. Foi quando nossos partidos passaram a ser mais regulados pelo Estado; a lei puxou sua organização do âmbito da sociedade para o do Estado e os colocou mais dependentes de recursos estatais. Nesse contexto entram também as decisões do TSE, desde o alinhamento das coligações em todos os níveis até as restrições recentes às trocas de legenda. Quando as pessoas olham o PT hoje e dizem que ele virou ‘uma máquina’, basicamente um partido de funcionários e de gente que vive da política, se esquecem que parte disso se deve a esse processo exógeno, que afetou o sistema todo.

O PT ficou mais parecido com as outras organizações. Os partidos hoje no Brasil estão se tornando instituições paraestatais, não só porque recebem dinheiro e tempo de TV, mas também porque não conheço outro país no mundo em que as listas de filiados sejam controladas pelo TSE, a criação de partidos dependa da chancela de um burocrata, ou o Supremo decida se alguém pode ou não trocar de legenda. Apesar dessa peculiaridade, a tendência é mundial, com o declínio da imagem dos partidos e a opção da sociedade pela militância em outras formas de organização.

Entrando na questão da ex-ministra Marta Suplicy, o fato de o PT governar o País há 12 anos - indo para 16 - torna praticamente impossível o partido se desvencilhar do fato de ser governo. Mesmo que em seus congressos e documentos internos até tente se posicionar de maneira autônoma. Vivemos uma ‘era do PT’ nas duas últimas décadas: mesmo quando ainda não era governo, o PT de alguma forma organizou a vida política brasileira. E acho que o partido vai viver esses dilemas internos, com disputas entre correntes e lideranças, talvez até mais aguçadas. Entretanto, como o partido é muito grande e organizado, tendo a achar que a tensão que a Marta denuncia entre Lula e Dilma tem caráter pontual, de um certo momento da campanha em que a candidatura apresentava dificuldades. Eu não daria tanto peso a essa interpretação.

O grande desafio que o PT vai viver é no momento que voltar a ser partido no sentido clássico, pois agora ele é partido-governo. Boa parte de seus dirigentes está longe do partido, ocupando cargos de confiança em secretarias e ministérios. Então, o desafio virá quando ele perder a eleição presidencial, for para a oposição e decidir como vai defender seu legado político no governo.

A referência, inevitavelmente, vai ser a das políticas sociais, de distribuição de renda. Não por acaso, um trabalho que acabo de apresentar em Portugal mostra que nenhum candidato a presidente no Brasil recebeu apoio tão maciço do eleitorado pobre quanto Dilma Rousseff. A votação da atual presidente nos 20% dos municípios mais pobres do Brasil chegou numa mediana de 67% do voto total, inclusive brancos e nulos. É um apoio que nem Lula teve. E um patrimônio que o partido conseguiu construir, soube comunicar enquanto governo e explorar durante a campanha - às vezes com um discurso forte não só de persuasão, mas de ameaça, de que as pessoas iriam perder aquilo que conquistaram com uma eventual vitória da oposição.
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Jairo Nicolau, cientista político, é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

O PT muda ou acaba? (Maria Celina D'Araujo)




Não acho que o PT muda nem que acaba. Vai continuar a existir da mesma maneira porque é a maneira que tem dado certo. Ficar 12 anos no poder e ir para 16 é mais que uma aventura: é uma trajetória vitoriosa. O PT não é um partido de quadros como o PSDB, que tem os notáveis, intelectuais e tal. Também não é um partido municipalista como o PMDB. Surgiu de uma base urbana, com a concepção de um colegiado igualitário. Criou-se uma cultura política no PT de que as disputas são legítimas, de que os companheiros podem soltar fogo amigo, de que se pode fazer estelionato eleitoral se ganhar a eleição. Mas ele é, principalmente, um partido de companheiros no sentido de que se julgam iguais. Então as tensões são muito grandes porque vários se acham em condições de concorrer à Presidência da República ou à Prefeitura de São Paulo, e acham que têm legitimidade para tal. É um partido com tamanha intimidade entre os pares que isso permite tanto apoios quanto brigas. O PT é sempre um espaço de disputa.

E tem um ponto de unidade, que é o Lula, o único com luz própria no PT. A Dilma não é PT. Ela é a presidente escolhida pelo partido, mas não é uma petista histórica nem tem a cultura de conversar com os companheiros. Está muito isolada no poder. Ela é PT na medida em que não se desvincula da figura de Lula, este sim o líder carismático que sabe mobilizar, que tem uma química especial com seu eleitorado. Mas não basta ter carisma: é preciso alimentá-lo com boas políticas, boas falas, bons programas de governo. O carisma não é uma orquídea que vive de ar e sombra. Precisa estar em ação. Alguns líderes carismáticos acabaram no ostracismo. Brizola foi a grande figura dos anos 1960, teve uma vitória mais fabulosa ainda na ditadura, em 1982, quando foi eleito governador do Rio de Janeiro com tudo e todos contra. O que era isso? Era o carisma. Isso acabou porque, nos dois governos dele, não foi bem-sucedido em vários aspectos.

Lula é o norte do PT, mas nada garante que isso seja assim daqui a quatro anos. Depende de como for o governo, de quanto ele está disposto a se expor sem se incompatibilizar com Dilma. Ele tem esse problema ético porque, veja bem, Dilma foi feita candidata por ele. Se Lula sair atirando contra ela, mesmo que seja fogo amigo, isso tira inclusive sua credibilidade. E há outro problema neste momento: grande parte do PT já está acomodada nos aparelhos do Estado. Quem vai querer ficar do lado de Lula para desconstruir o governo de Dilma, mesmo que seja de forma amigável? Acho que permanece tudo como antes no quartel de Abrantes.

Enfim, o partido está ficando cada vez mais um partido normal brasileiro, um partido de cargos eleitorais, que luta por postos, que diz uma coisa e faz outra, porque o importante é ganhar a eleição. Isso não é novo.

Quem militou no movimento estudantil sabe como a esquerda ganhava as eleições nos diretórios. E não é exclusivo do PT nem do Brasil. Os ciclos eleitorais valem para qualquer partido e para qualquer país. No último ano de governo se gasta muito e no primeiro ano se chamam os melhores tesoureiros, no sentido de quem tem a tesoura, para consertar as coisas.

Comparativamente aos demais partidos brasileiros, no entanto, esse é um partido de militantes. Mas não se compara ao que foi no início. Hoje grande parte de uma classe média intelectualizada não se sente com ímpeto para vestir a camisa do PT e ir pra rua suar. Surgiram outros partidos de esquerda, como o PSOL, aqui no Rio de Janeiro.

Se o PT está isolado? Do ponto de vista dos deputados federais, ele desidratou. Em termos de governos estaduais, idem. Isso significa que o eleitorado está menos propenso a votar nessa entidade PT. Mas isso não quer dizer que ele esteja isolado. Está muito bem, é o maior partido do Congresso, tem um diálogo imenso com os demais. Dos 28 que estão na câmara, 22 fecham com ele. Por que estão com o governo, mesmo não sendo muito leais? Porque é um jogo de cooperação, às vezes de propósitos não muito louváveis, O preço dessa integração é que é o problema. O preço é ficar refém de políticos que não somam para o projeto do PT nem para sua imagem.

Porque o PT tem um projeto, para ser diferente dos outros, que é manter políticas sociais de distribuição da renda bastante visíveis. Faz disso seu primeiro item da agenda e insiste em inovar em políticas sociais. Isso gerou por muito tempo uma empatia muito grande com a sociedade - e ainda acabou reelegendo Dilma. É o projeto de cultivar a identidade de quem se preocupa com a distribuição de renda, como se ele fosse o primeiro e o único. Está conseguindo manter esse discurso - simplesmente porque os outros partidos são incompetentes para mostrar que não foi bem assim.

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Maria Celina D'Araujo é cientista política, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

O cotidiano invisível (José de Souza Martins/entrevista)




• Em novo livro, José de Souza Martins reflete sobre o embate entre as transformações no dia a dia da sociedade.

Defensor apaixonado da investigação dos fenômenos aparentemente menos importantes da vida cotidiana na prática sociológica como técnica valiosa para a compreensão dos chamados aspectos invisíveis da sociedade, José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), acaba de lançar em forma de livro suas reflexões sobre o tema.

Admirador de Florestan Fernandes (1920-1995), seu professor nos anos de graduação na mesma instituição, da obra de Charles Wright Mills (1916-1962) e, sobretudo de Henri Lefebvre (1901-1991), Martins deixa claro em seu "Uma Sociologia da Vida Cotidiana" (Contexto, 224 págs.) que o ponto de aproximação entre esses autores foi a capacidade de produzir investigações baseadas no artesanato intelectual e na chamada imaginação sociológica. Talvez o exemplo mais eloquente venha do francês Lefebvre, que durante um tempo trabalhou como motorista de táxi em Paris para capturar a essência daquilo que classificava como as incógnitas do vivido.

Martins, admirado por seus pares e alunos por possuir impressionante capacidade de extrair dos pequenos eventos reflexão profunda sobre o embate entre as incessantes transformações e a permanência das tradições no interior da sociedade, expõe alguns dos elementos que aparecem em sua mais recente obra.

Valor: Seu mais novo livro, "Uma Sociologia da Vida Cotidiana", nasceu de uma disciplina criada pelo senhor na USP. Em sua opinião, a academia tem perdido o traquejo de como pensar as pequenas questões do cotidiano e, a partir daí, transportá-las para uma leitura estrutural da sociedade?

José de Souza Martins: A academia não poderia perder o que não tinha. Nas ciências humanas, a grande tradição sempre foi a de pesquisa e estudo das estruturas e processos sociais, sem maior interesse por sua dimensão microssociológica. Lentamente, no entanto, vem tomando consciência e ganhando compreensão, em todos os campos do conhecimento, da importância crescente das "coisas pequenas" e da vida cotidiana na realidade social, econômica, política e histórica. Pesquisadores têm sublinhado que a própria Revolução Francesa foi detonada pela reação da população do bairro parisiense de Saint Antoine à elevação do preço do pão, um banal acontecimento bem cotidiano.

Valor: No Brasil, há quem diga que o país precisa mais de engenheiros do que de sociólogos. Em sua obra, ao tratar da imaginação sociológica e do artesanato intelectual, o senhor retoma pensadores clássicos como Wright Mills, Henri Lefebvre, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre (1900-1987) e, claro, os fundadores do pensamento sociológico. Cita ainda a obra de Guimarães Rosa (1908-1967) como exemplo dessa imaginação e prática sociológica. Sob o ponto de vista qualitativo, essa é uma falsa polêmica?

Martins: Certamente é uma falsa polêmica. Os engenheiros estão sendo substituídos pelo computador e a engenharia de aplicação está se concentrando em funções que até há pouco tempo eram desempenhadas por técnicos e artesãos. A sociologia não é imune à tendência geral da divisão social do trabalho nem disputa espaços com outras especialidades. No meu livro "A Aparição do Demônio na Fábrica" [Editora 34] analiso um caso ocorrido em grande indústria da região do ABC, em meados dos anos 1950, que presenciei, decorrente de um problema de engenharia que os engenheiros podiam resolver no plano técnico, mas não no plano dos problemas sociais por ele causados. Os engenheiros não conseguiam ver nem compreender o pânico que tomou conta das operárias de uma das seções da fábrica, cujos problemas técnicos acreditavam ter sido causados por Satanás, por falta de benzimento dos equipamentos de uma nova fábrica. Na falta de sociólogo, a empresa improvisou chamando o padre...

Valor: Alguns movimentos recentes, como os "riots" de Londres (2011), as manifestações em Ferguson, nos EUA (2014), e as marchas de junho (2013) no Brasil, parecem apontar para sentimentos de insatisfação e frustração maiores e mais difusos do que as reivindicações inicialmente formuladas. Outro ponto comum curioso é a ausência de lideranças expressivas. O que esses movimentos indicariam?

Martins: No meu modo de ver, houve um retorno das ações sociais ao âmbito do chamado comportamento coletivo, o comportamento de multidão, estudado por Gustave LeBon [1841-1931] no século XIX. Essa modalidade de ação havia evoluído para os movimentos sociais após a Segunda Guerra e durante cerca de 50 anos foi o modo como as sociedades se manifestaram em relação a suas carências e reivindicações. A própria sociologia, mesmo sem pretendê-lo, contribuiu para que os movimentos sociais, ao explicá-los, fossem institucionalizados. Governos, partidos, igrejas incorporaram essas tensões e definiram-lhes caminhos. Estamos vendo isso aqui no Brasil: os movimentos sociais deram origem ao Partido dos Trabalhadores. No poder, o PT os capturou e instrumentalizou. Os movimentos sociais foram domesticados e esvaziados. É compreensível que aqui e em outras sociedades as tensões sociais explodam na forma de ações coletivas diretas, o chamado comportamento coletivo, imprevisível. Essas ações também serão capturadas e domesticadas, o que desencadeará novas modalidades de protesto e de reivindicação. É o que propriamente define a sociedade pós-moderna.

Valor: A questão do tempo no capitalismo aparece em diversos pensadores da modernidade, como David Harvey, Wolfgang Streeck ou Zygmunt Bauman. Em sua obra, o senhor aborda especificamente a respeito da "abreviação do tempo social". A aceleração de seu ritmo teria levado à crise das utopias, ao esvaziamento dos movimentos sociais, ao declínio da representação política e até à religiosidade de uso materialista. Como esse processo avassalador se consolidou em tão pouco tempo?

Martins: Quem levantou a temática da nova temporalidade da sociedade contemporânea foi Henri Lefebvre, filósofo e sociólogo, nos três volumes de sua monumental "Critique de la Vie Quotidienne", logo depois da Segunda Guerra, seguido por Ágnes Heller, que foi assistente de Georg Lukács [1885-1928], tema que este também havia tratado no primeiro tomo da "Estética". A temporalidade do agora, do dia, dos minutos sobrepôs-se ao tempo histórico e criou a "sociedade do atual" e sua dominância, como de certo modo pensa o francês Michel Maffesoli. Atualidade reduzida ao provisório e descartável. Surgiu, assim, uma sociedade dominada pelo desapreço à dimensão histórica da vida e, também, uma sociedade pobre de esperança, o que se expressa no egoísmo e na mesquinharia, na apologia do "tirar vantagem". Uma sociedade adversa para os jovens e as crianças. No lugar da utopia, apenas o "viver o instante", o meramente repetitivo ou, na perspectiva lefebvriana, a práxis mimética, em que o repetitivo fica mascarado pelo fingimento da inovação e da revolução.

Valor: É curiosa a análise que o senhor faz das transformações da religiosidade no interior da sociedade brasileira.

Martins: A religiosidade, isto é, o modo de praticar as religiões, tem tido peculiaridades que, justamente, nos remetem para o que se poderia chamar de "refabricação" das crenças no cenário de "liquefação" das grandes estruturas sociais de referência, sendo a das religiões uma das mais poderosas. Entre nós desenvolve-se uma religiosidade "ad hoc", de ocasião, não raro remendo e colcha de retalhos de crenças que em outras partes têm demarcações precisas e até limites que não podem ser transgredidos.

Valor: O senhor afirma que há um mimetismo político, em que as forças conservadoras não se propõem a representar o seu lugar histórico, enquanto os portadores ideológicos do discurso da mudança foram capturados pelo conformismo da institucionalização. Na prática, como isso tem funcionado?

Martins: A dominância da práxis mimética se manifesta na teatralização da política, no fingimento e no autoengano como máscaras constitutivas da ação política e das relações sociais. A esperança política foi traduzida no mero faz de conta: o importante é o que se vê e o que se deixa ver e não o que se faz nem o que resulta das ações e dos relacionamentos sociais. A mentira se tornou uma instituição, que atravessa desde nosso cotidiano até o cotidiano do rei - ou da rainha!

Valor: O senhor afirma que a consciência social tem sido substituída pelo imaginário manipulável. Essa é uma situação especificamente brasileira?

Martins: Não é uma situação especificamente brasileira, que em diferentes lugares se propõe segundo condições e possibilidades locais. Nossa sociedade tem sido historicamente uma sociedade de poucas possibilidades de inovações e transformação. Tudo aqui é mais lento do que em algumas das sociedades dominantes. Entre nós, o desenvolvimento desigual se dá por grande descompasso entre o real e o possível, coisa que nas sociedades dominantes é muito menos grave. Nelas o possível está muito perto. Aqui o possível, como na história de Alice, de Lewis Carroll, quanto mais se anda, mais longe se fica.
Por: Márcio Sampaio de Castro – Valor Econômico / Eu & Fim de Semana.

Teorias em tempos de barbárie (Fernando Gabeira)






Num balanço de 2014 acentuei a presença da barbárie como um traço decisivo. Mal começa o ano, de volta ao trabalho na rua, surge o atentado contra a revista Charlie Hebdo. Ainda bem que o trabalho estava concluído. Sabia que ia mergulhar no mundo dos debates, interpretações, e precisava do máximo de esforço para entender o que se passa, para além da indignação.

É um desses momentos de grande intensidade. Você vai à sala, ruminando argumentos, e quando volta ao quarto da TV já se deixa levar por outro tema.

Autoridades e os âncoras de TV acentuavam a cada instante que era preciso dissociar a violência do islamismo. Lembrei-me do tempo de menino: cuidado com o bicho-papão. O bicho-papão nesta aventura associativa é parecer racista ou islamofóbico. Minha intuição, no entanto, caminha no sentido contrário do politicamente correto.

Quando critiquei Estados islâmicos num encontro de escritores, um colega da Etiópia disse que estava sendo injusto com o Islã. Mas uma religião, quando se funde com o Estado, resulta, fatalmente, em repressão.

Prometi estudar o Islã, mas naquele momento o sufismo tinha mais apelo para mim. Mantive a intuição para um dia transformá-la em argumento, com base na análise do texto.

No auge de minhas incertezas, diante dos conselhos na TV, encontrei no noticiário uma voz mais preparada que eu: o presidente do Egito, Abdel Fattah el-Sisi. Ele fala de dentro do islamismo e reconhece que a religião está infestada de interpretações que semeiam a violência. E propõe uma revolução religiosa para conciliar o islamismo e a pluralidade democrática. Observo que, na História secular, houve debate semelhante sobre o marxismo. O texto é correto, o equívoco está nas interpretações.
Mas textos que se abrem a interpretações autoritárias e sanguinolentas não deveriam ser examinados criticamente?

Aí entra um novo debate, em que o politicamente correto fortalece o radicalismo islâmico. Numa democracia ocidental não há textos proibidos para a crítica. Ou seja, a blasfêmia não é um crime, mas o exercício do direito de expressão.

O Charlie Hebdo foi criticado por alguns por ser provocador da ira religiosa. O que, no fundo, querem dizer os críticos é tirar a religião do raio de alcance da liberdade de crítica.

Os radicais islâmicos aproveitam a atmosfera de debate para mostrar que os muçulmanos, lá, não estão em casa. Mas o que querem, afinal? Que a França abra mão de algumas de suas liberdades para que se sintam em casa? Nesse caso, os franceses é que sairão da própria casa, construída com valores inegociáveis.

É inegável que os muçulmanos se arriscam para combater o extremismo islâmico e perdem muito mais vidas que o Ocidente nos ataques terroristas. Muitas comunidades muçulmanas colaboram com os EUA no combate ao terrorismo. E pode estar nessa colaboração a forma mais eloquente de dissociar o Islã da violência. Mas quando se trata de liberdade de expressão no sentido que envolve também a crítica religiosa, a resposta costuma ser a pena de morte.
A fatwa decretada contra Salman Rushdie por autoridades religiosas iranianas é uma prova disso. Agora mesmo, na Arábia Saudita, o blogueiro Ralf Badawi foi condenado a mil chibatadas.

Na França vive-se um momento singular. A presença muçulmana não é discutida apenas no Charlie Hebdo, mas tema de romances e ensaios que de alguma forma refletem o dilema central: integrar a comunidade muçulmana no pluralismo ocidental ou islamizar o país?

A imprensa americana (New York Times, CNN) opta por não divulgar material ofensivo às religiões. Mas a verdade é que, à sua maneira, o Charlie Hebdo vai no sentido de buscar no texto as raízes do violência desvairada. Chérif Kouachi disse que queria morrer como mártir porque o martírio era uma glória. O Charlie Hebdo compreende bem a conexão do texto religioso com a sucessão de atentados. Um dos desenhos publicados mostrava Maomé na porta do paraíso e a frase: parem de lançar bombas porque estamos em falta de virgens.

Ouvi muitos analistas falando em tratar o tema com oportunidades econômicas. Não vejo como Said e Chérif, e pessoas como eles, se ajustariam à sociedade com um emprego de caixa de supermercado.
O movimento de jovens que se envolvem numa aventura político-religiosa tem crescido e transcende a própria comunidade muçulmana. É uma batalha cultural que se desenrola e o politicamente correto pode ser um embaraço se não compreender que é preciso desenvolver cada vez mais a cooperação dos serviços de inteligência, usar os melhores recursos humanos e tecnológicos para prender e neutralizar os terroristas.

É difícil prender quem vê o martírio como uma glória. A tendência é que morra resistindo, como morreram os irmãos Kouachi.

Estamos num jogo mais pesado ainda do que viveu a geração pós-guerra às voltas com a luta contra o colonialismo. Sartre e a esquerda, na qual me incluo, na época viam com compreensão benevolente os ataques terroristas da FLN na Argélia.

Camus resistiu e se isolou na condenação do terrorismo. Na Suécia, chegou até a simplificar seu argumento: minha mãe mora na Argélia e pode ser morta num atentado.

Ao debater a peça Os Justos, após o 11 de Setembro, usei o exemplo dos personagens desse texto de Camus para enfatizar a singularidade de nossa época. Os terroristas adiaram a execução do arquiduque Francisco Ferdinando porque havia crianças na carruagem. Os terroristas de hoje afirmam que matam crianças sem hesitar porque as crianças muçulmanas são mortas também. Mais do que no tempo de Camus, as mães estão ameaçadas, por esse mesmo argumento.

Dilma propôs diálogo com o Exército Islâmico, na ONU. É a mais radical no campo do politicamente correto. Envolto em seus fantasmas ideológicos, o governo está pra lá de Marrakesh. Lembra um personagem de Glauber Rocha que dizia mais ou menos assim: estou tão perdido que não sei mais quem é o inimigo.

Fonte: O Estado de S. Paulo (16/01/15)

domingo, 11 de janeiro de 2015

"Não deixaremos de criticar religiões" (entrevista a Isabelle Hanne - "Libération")






Os jornalistas que sobreviveram ao atentado voltaram ao trabalho na sexta-feira. Com os mortos e os feridos no pensamento, para levar um jornal às bancas na próxima quarta-feira.

A reunião de pauta do "Charlie Hebdo" durou mais de três horas ao todo. É que na manhã de sexta, além do trem, das pautas, dos prazos, foi preciso falar dos mortos, dos feridos, das homenagens, dos funerais. A sala da escotilha, onde o "Libé" [o jornal francês "Libération"] geralmente realiza sua reunião de pauta diária, foi ocupada dessa vez pelos profissionais sobreviventes do semanário satírico. Iluminada de um lado por uma grande janela redonda, a sala está ao mesmo tempo aquecida demais e aberta aos quatro ventos, para deixar escalar a fumaça dos cigarros.

Sobre a grande mesa redonda, computadores emprestados pelo grupo "Le Monde". Sentados em volta dela, Willem, Luz, Coco, Babouse, Sigolène Vinson, Antonio Fischetti, Zineb El Rhazoui, Laurent Léger Ao todo mais de 25 pessoas, com a aparência abatida e os olhos inchados. O núcleo central do "Charlie Hebdo", os colaboradores habituais e os ocasionais estão ali para preparar o próximo número do jornal. O semanário deve sair na próxima quarta e terá tiragem de 1 milhão de exemplares, ou seja, mais ou menos 20 vezes a tiragem habitual.

"Pude ver todo o mundo no hospital", começa dizendo Gérard Biard, o editor-chefe do "Charlie". "Riss está com o ombro direito ferido, mas o nervo não foi afetado. Ele está com muita dor. A primeira coisa que falou é que não tem certeza se vamos poder continuar a fazer o jornal."

Fabrice Nicolino, atingido várias vezes no atentado, "está melhor", se bem que "é evidente que está sofrendo muito mesmo".

Patrick Pelloux, médico de urgências e colunista do "Charlie", explica o ferimento no maxilar sofrido por outra vítima, Philippe Lançon, que também é jornalista do "Libé".

Simon Fieschi, o webmaster deles, "foi posto em coma artificial". Uma jovem desaba em lágrimas. "Você não tem que se sentir culpada", Gérard Biard a consola. Todo o mundo concorda com gestos de cabeça. Quem está chorando é a jornalista Sigolène Vinson, que estava presente na redação na hora do drama, na quarta-feira, mas foi poupada pelos atiradores.

Biard repassa os nomes dos mortos. Como organizar os funerais? E a homenagem nacional? Com que música? Nada de bandeiras, certo? "Não é caso de fazer uma coisa simbólica que eles próprios teriam detestado", observa alguém em volta da mesa.

"Mataram pessoas que desenhavam hominhos. Nada de bandeiras. Temos que lembrar a simplicidade desse pessoal, o trabalho deles. Nossos amigos morreram, mas não vamos expô-los em praça pública." Todo o mundo concorda.

Assinatura em massa
Uma jornalista explica que uma "caixinha" criada espontaneamente na internet por desconhecidos já recebeu 98 mil euros em menos de 24 horas. Os sobreviventes do "Charlie Hebdo" estão recebendo uma enxurrada de pedidos de assinatura que ainda não estão conseguindo processar. Mas dentro em breve eles vão receber ajuda do grupo Lagardère para lidar com isso.

O advogado do "Charlie Hebdo", Richard Malka, toma a palavra. "Há dinheiro chegando de todos os lados. Ajudas de vários tipos, locais, pessoal para cuidar do que precisa ser feito." "Recebemos o apoio de muitos veículos de mídia", confirma Christope Thévenet, outro advogado do jornal. "Estão chegando doações, já recebemos 250 mil euros através da Associação Imprensa e Pluralismo, há o milhão de euros prometidos por Fleur Pellerin. Vocês aqui no 'Charlie' terão mais verbas do que jamais tiveram!".

O advogado sabe do que está falando: foi ele quem redigiu os estatutos do jornal e comanda suas assembleias gerais. Nos últimos meses o "Charlie" tinha lançado um apelo por doações para tentar sair do vermelho.

"E aí, vamos fazer o jornal?" pergunta Gérard Biard, visivelmente querendo fazer a reunião decolar. "O que vamos colocar nas páginas?" "Sei lá, o que há em matéria de últimas notícias?" responde Patrick Pelloux. Risos nervosos.

Biard prossegue: "Para mim, devemos fazer um número normal, entre aspas. Para que os leitores reconheçam o 'Charlie'. Que não seja uma edição excepcional." "Não seria má ideia", comenta alguém em volta da mesa.

Algumas pessoas aventam a ideia de deixar espaços brancos nos lugares onde os mortos da quarta-feira teriam escrito ou desenhado. Mas a equipe acaba decidindo que não o fará. "Não quero que haja um vazio material", argumenta Gérard Biard. "Todas as páginas precisam estar lá. E Mustapha, também." Mustapha Ourrad, o revisor, faz parte da longa lista dos mortos no atentado da quarta-feira. "Então deixe meus erros ficar!", dizem Patrick Pelloux e os outros, brincando.

"Opa, Fidel Castro morreu!" anuncia Luz, fazendo um gesto obsceno com o dedo médio ao descobrir a informação (desmentida logo depois) em seu telefone. O repórter Laurent Léger tenta centrar a discussão sobre o jornal outra vez: "Acho que a gente não deve fazer obituários. Não vamos fazer uma edição de homenagem."

A redação discute o conteúdo do jornal. Gérard Biard: "Espero que parem de nos tratar como leigos fundamentalistas, que as pessoas parem de dizer 'sim, mas...' à liberdade de expressão." Laurent Léger: "A edição também precisa falar do que vem depois." Corinne Rey: "Vamos transmitir a mensagem de que estamos vivos." Richard Malka: "E que não vamos deixar de criticar as religiões."

O "Charlie Hebdo" é um jornal curioso: não tem seções propriamente ditas, mas "espaços" atribuídos a esse ou aquele autor ou desenhista. Para os espaços dos mortos, a equipe decide procurar materiais inéditos deles para publicar. Assim, Charb, Cabu, Wolinski e Honoré estarão na edição que chegará às bancas na quarta-feira. Durante as discussões ouvem-se choros ocasionais, como incêndios rápidos que começam e então se apagam nos braços da pessoa ao lado. Há pessoas que se dão as mãos e olhares molhados de lágrimas.

Richard Malka pigarreia: "Manuel Valls acaba de chegar na redação". A equipe suspira, se espalha, faz brincadeiras. Acompanhado da ministra da Cultura e da Comunicação, Fleur Pellerin, que ostenta um adesivo de "Je suis Charlie" sobre o peito, e de todo um grupo de jornalistas de fora, assistentes e comunicadores, o primeiro-ministro vem cumprimentar os presentes com apertos de mão, soltando algumas informações sobre a intervenção em curso em Dammartin-en-Goële -"os dois assassinos caíram na ratoeira"-e então fazendo votos de "muita coragem" a todos.

Biard pergunta: "Não vamos ter mais jornalistas? E mais ministros? E para a página 16, o que fazemos?" A pergunta se perde no barulho das latinhas de Coca sendo abertas, dos pães de chocolate mastigados, das lágrimas sufocadas, das sirenes de polícia do lado de fora. Em seu canto, Patrick Pelloux dá risada: "Isto sim é uma verdadeira reunião de pauta. É uma zona! Recomeçamos bem."

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Tradução de Clara Allain - Folha de de S. Paulo

'Há décadas, faz-se vista grossa com o extremismo islâmico na França', (Jean-Pierre Le Goff/entrevista)





Para o sociólogo francês Jean-Pierre Le Goff, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e autor de diversos livros, desde a década de 80 correntes da esquerda francesa têm sido condescendentes com o avanço do islamismo extremista pelo medo de ser acusada de racista. Movimento que ganhou força com o medo incutido pela extrema direita. Para Le Goff, após uma trégua de união nacional que deve ser curta, a extrema-direita receberá impulso e deverá chegar até ao segundo turno das eleições presidenciais.

Quais são os efeitos imediatos do atentado?

A unidade do país é incontornável. Não vejo quem possa ser contra, num primeiro momento, ao ataque, que foi feito pelo terrorismo islâmico. Não foi a maioria dos muçulmanos que vivem no país e que condenaram o atentado. Uma minoria, mas há um medo de se atacar o problema dos extremistas para não ser tachado como islamofóbico. Perdemos um certo bom senso. O espírito francês foi atingido no seu âmago que é o humor, a liberdade de expressão, a democracia. Seja de direita ou de esquerda, sabe-se que houve um ataque contra o pensamento. É altamente simbólico porque atacaram a caricatura, que é uma paixão nacional.

Não era esperado um atentado de maior porte depois de uma série de ataques recentes?

É verdade que há uma série de ataques desde 2012, quando em Toulouse (sudoeste da França), um atirador matou três crianças franco-israelenses e um rabino numa escola judaica. Como conseguir combater isso é um desafio porque a França recebe muitos muçulmanos. Ao se negar esse problema, é o extremismo que vence.

Onde será preciso atuar?

Nesse primeiro momento, é preciso atuar com a polícia, contraespionagem na França. Precisa-se de uma repressão porque a democracia foi atacada. Ainda há um medo de falar em islamofobia, de se estigmatizar. [Michel] Houellebecq teve dificuldades ao lançar um romance [“Soumission”, que mostra a França dirigida por um muçulmano em 2022 depois do fim do segundo mandato de Hollande e numa coalizão republicana que bate Marine le Pen] em que mostra um presidente muçulmano que não é um terrorista, mas um moderado. Ele foi criticado como se não pudesse falar nisso. Desde que o livro saiu, foi visto como islamofóbico por muitos.

O presidente François Hollande experimenta níveis baixíssimos de popularidade. Quais os efeitos políticos desse atentado?

Em um primeiro momento, haverá a união de todos, e isso favorece Hollande. Mesmo Sarkozy e Marine le Pen disseram que foi o atentado foi obra do movimento jihadista e não muçulmano, mas isso não vai durar muito. Se os problemas não forem atacados, mesquitas vão ser incendiadas. Nas próximas eleições, o Front Nacional [extrema direita] vai ter um ótimo desempenho, com certeza vai chegar ao segundo turno das eleições presidenciais. Depois, se não houver uma resposta clara sobre a situação do islamismo e a laicidade, a extrema direita será mais favorecida.

O extremismo muçulmano é um problema francês ou europeu?

Da Europa como um todo e da França, em particular. Aqui na França, vimos uma clara escalada da influência extremista muçulmana em alguns subúrbios de Paris. Muitas pessoas dizem que não querem se integrar. Houve recentes manifestações contra judeus. Há uma inquietude na sociedade francesa e na Europa. Existem hoje cerca de mil franceses que foram arregimentados e partiram para a Síria para serem treinados como jihadistas. Relaxamos em vários aspectos. Nos anos 80, correntes dentro do Partido Socialista hesitaram sobre se deviam permitir que as meninas usassem véus em escolas [polêmica conhecida como caso de Creil]. Na década de 90, vimos pregadores de um Islã fundamentalista virem para a França e instalarem mesquitas sem que nada fosse feito. Há cerca de dez anos, quando Martine Aubry era prefeita de Lille-Sud, houve uma grande polêmica porque grupos extremistas passaram a controlar a hora de homens e de mulheres entrarem em uma piscina pública e houve demora das autoridades de pôr fim ao caso.O Front Nacional (extrema direita) explorou esse medo que já existia, mas não o criou. Ou o Islã se integra à França, à Europa, com uma islamização republicana europeizante, ou islamiza-se a Europa.
(Clarice Spitz – O Globo)

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A primeira vítima é o humor (Eugênio Bucci)




O atentado contra a redação da revista Charlie Hebdo, ontem, em Paris, deixou para trás 12 cadáveres, 10 feridos e uma perplexidade do tamanho do mundo. O alvo dos terroristas foi a piada, o deboche. A vítima foi o humor. Dez dos 12 mortos trabalhavam na publicação, entre elas o diretor, Stephane Charbonier, que também era chargista (os outros dois mortos eram policiais, que não conseguiram deter os assassinos em fuga). A Charlie Hebdo fazia humor sobre o Islã e vinha sofrendo ameaças e agressões. Ontem foi finalmente dizimada.

Testemunhas contaram que os atiradores teriam dito que "vingavam o Profeta" enquanto disparavam contra os cartunistas. Movidos por uma verdade absoluta qualquer, eles pretendiam silenciar e exterminar a ironia.

O sinal que mora dentro disso vem carregado de trevas. Muitos apontaram aí um crime contra a liberdade de imprensa e, portanto, um atentado contra os direitos humanos (embora muitos se esqueçam, a liberdade, que aparece no primeiro artigo da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, é parte integrante e inseparável de qualquer entendimento que se possa ter das garantias fundamentais que cimentam a ideia que acalentamos de civilização). Mas é pior do que isso. Nessa tragédia concentrada, a vítima não é a imprensa em geral, não é a imprensa genérica. Estamos falando aqui da imprensa que faz rir, que falta com o respeito, que destroça a impostura de seriedade tão comum nos demagogos. Estamos falando de uma imprensa ainda mais arredia, que zomba da circunspecção dos circunstantes e rechaça a impostação e os salamaleques das autoridades, sejam elas religiosas, civis, militares ou simplesmente imbecis. Desta vez a vítima é a sátira. A vítima é a ironia.

Nada pode ser mais expressivo e mais aterrorizante. Matando a ironia, cortando-a pela raiz (e pelo pescoço), os autores da carnificina pretendiam matar o próprio espírito da modernidade. Se existe um traço distintivo da modernidade, é a ironia, essa sofisticação cética do espírito humano que passa pela recusa do argumento da autoridade - e pela ridicularização, mais ou menos ostensiva, da figura empolada da autoridade. A ironia duvida do poder porque sabe que o sujeito, em público e em privado, não governa todos os seus atos e todas as suas palavras. Enquanto uns batem continência e outros se ajoelham, a ironia ri. Não leva o ego tão a sério assim. Não dá crédito ao superego. Quando argumentam que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, a ironia gargalha: se inventou esse tal de homem, Deus só pode ser mesmo um pastel. O melhor da ironia é rir de si mesma. Ela se sabe vã, embora se saiba também onipresente (mais onipresente do que Deus). Sabe-se presente, ainda que de forma involuntária, em tudo o que se move e em tudo o que fica parado na paisagem social e nas profundezas do psiquismo de cada um. Sem ironia o que é moderno fenece. Não há mundo moderno sem o arejamento da ironia e, no fundo, é exatamente esse arejamento que nos pode vacinar contra as catedrais do fundamentalismo e da intolerância, as forças malignas que nos tracionam para o passado.

Quem disparou contra os desenhistas corrosivos da revista francesa alimenta, sim, a fantasia tanática de aniquilar a democracia, a liberdade, a modernidade e, principalmente, a nossa ideia profana e fugidia de felicidade. Quem quer que tenha cometido tamanha brutalidade quer castrar a imaginação e o prazer, nos semelhantes e em si mesmo.

Além de monstruoso em todas as suas faces, o ataque terrorista à revista Charlie Hebdo é também um alerta sobre o lugar da liberdade de imprensa em tempos em que a imprensa parece não ter lugar no mercado. Os jornalistas acostumaram-se a pensar que ser independente se resume a não depender econômica e politicamente do governo, do Estado, de um grupo particular de anunciantes, das igrejas e do lobby cada vez mais poderoso das ONGs aparentemente boazinhas. Bem sabemos que, no Brasil, muita gente não assimilou metade dessa lição elementar, mas, de todo modo, ela continua sendo boa e necessária. Só tem um detalhe: ela não é mais suficiente.

As agressões à liberdade de imprensa não partem mais apenas de juízes desavisados que impõem censura prévia em sentenças mal fundamentadas ou de governantes maliciosos que cooptam veículos fragilizados com o dinheiro ilimitado da publicidade oficial. A violência contra o direito à informação e a liberdade de expressão já não vem somente da cobiça dos endinheirados ou da ganância dos donos do poder. Agora quem se lança contra o espírito livre da crítica são gigantescas estruturas paraestatais e abertamente criminosas. Para não irmos longe, em comunidades da Colômbia e do México são grupos paramilitares, a mando de traficantes ou de milícias, que assassinam profissionais de imprensa e impõem às redações o pior dos regimes de terror. Quanto à polícia e quanto à Justiça, estas, muitas vezes compradas, se limitam a ser morosas ou aéreas. É o seu modo de ser cúmplice.

Hoje, em suma, o Estado não é deletério apenas quando move ataques contra a imprensa livre. Ele é ainda mais deletério quando não sabe (ou não quer) defendê-la.

Em Paris, o presidente François Hollande acertou ao ir prontamente a público para liderar a indignação da sociedade contra o gesto inominável. Mas a reação ainda é tímida. Na França, como no Brasil, ainda são numerosos os políticos que não perceberam que não poderiam existir sem a imprensa que zomba deles. Mais, muito mais do que antes o Estado é chamado a defender não apenas o instituto da reportagem investigativa e das críticas mais ácidas, mas também a irreverência, a sátira e a caçoada. Se a democracia não despertar para esse compromisso, será sucedida por um mundo em que o riso, a ironia e o gozo transgressor serão proibidos. E a política também.

(Eugênio Bucci foi presidente da EBC no 1º mandato de Lula. É professor da ECA-USP)  
Fonte: O Estado de São Paulo

O ex-Partido dos Trabalhadores (Cristian Klein)




O segundo mandato de Dilma Rousseff começou marcado pela inflexão na política econômica, coroada pelo simbolismo do primeiro ministro da Fazenda não petista em 12 anos. Mas há outro dado, despercebido nos resultados da eleição de outubro, que reflete a transformação progressiva do PT. Pela primeira vez, o Partido dos Trabalhadores não terá trabalhadores em sua bancada de deputados federais, que toma posse em fevereiro.

O fato inédito é um dos achados de um levantamento feito pelo cientista político da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Luiz Domingos Costa. No estudo, trabalhadores são considerados os candidatos que declararam ao TSE exercer 111 ocupações: de motoristas a carpinteiros, de petroleiros a auxiliares de escritório. De torneiro mecânico - origem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - a bancário - como o atual ministro das Comunicações Ricardo Berzoini. Foram analisadas as profissões dos 23.220 candidatos que concorreram nas últimas cinco eleições à Câmara dos Deputados.

A principal conclusão, afirma Costa, é que o PT "abandonou", "largou a mão" de recrutar trabalhadores para suas fileiras. É um processo de aburguesamento de seus filiados, semelhante ao descrito pelo sociólogo Robert Michels, há cem anos, na análise do SPD alemão, e expresso em sua "lei de ferro da oligarquia".

E que inclui casos como o de Vicentinho, que se reelegeu, mas pela primeira vez se declarou como político, e não metalúrgico.

Em 1998, entre os candidatos petistas a deputado federal, 21% eram trabalhadores, índice que caiu a menos da metade, 9,8%, na disputa do ano passado. No mesmo período, a presença de trabalhadores na eleição à Câmara teve um crescimento moderado. Passou de 10,6% do total de concorrentes para 13,1%.

Para onde, então, foram os trabalhadores? Espalharam-se para a miríade de pequenas legendas que nos últimos anos levaram o Brasil a bater o recorde mundial de fragmentação partidária.

"A queda de candidatos trabalhadores no PT é muito alta, principalmente quando levamos em consideração que este é o período em que o partido cresce. O PT, quando se profissionaliza, expurga os trabalhadores", diz Luiz Costa.

Uma vez no poder, acrescenta o pesquisador, o partido passou a confiar mais em práticas eleitorais tradicionais. Por exemplo, utilizar intermediários políticos, como prefeitos e vereadores, para alcançar o eleitor. Ou confiar no poder das emendas parlamentares individuais. Deixou de botar a mão na massa e fazer o trabalho de "formiguinha", de contato direto com as bases eleitorais.

Com a retirada, os demais partidos ocuparam o espaço - embora ainda não consigam eleger trabalhadores com a mesma eficiência que o PT fazia. Apesar de uma leve recuperação desde 2006 (de 1% para 1,9%), a proporção de eleitos ainda é menor do que em 1998 (3,1%).

A mudança, porém, está em curso, e o que se vê hoje seria apenas a ponta de um iceberg. Ou de uma arena em que o PT vem "apanhando" nas periferias das regiões metropolitanas, afirma o pesquisador.

O recrutamento dos trabalhadores, antes conduzido tipicamente pelos sindicatos, deu lugar à mobilização essencialmente por meio de três canais: pelas igrejas, pelas rádios e pelas brechas aproveitadas por candidatos que "surfam" nas deficiências dos serviços públicos e constroem carreiras políticas movidas a assistencialismo.

Luiz Costa cita o caso do vereador mais votado de Curitiba, em 2012, Cristiano dos Santos (PV). O motorista conseguiu seu próprio mandato depois de trabalhar para um vereador, que tinha contatos privilegiados e oferecia atendimento médico para seus eleitores. "Ele carregava gente em sua Belina. São esses os candidatos do povão. Escoram-se num deputado, num vereador, que depois os mandam embora porque montam sua própria rede", afirma Costa.

Os métodos e a competitividade, compara o pesquisador, diferem dos utilizados pelos petistas. "No PT não tem essa. Só se é candidato depois de ter sido secretário da juventude, vereador etc. É uma escadinha, que não tem nos outros partidos", diz.

Uma das consequências é que os trabalhadores migraram para outras legendas, pequenas e mais conservadoras, favorecendo o recente fenômeno da popularização da direita - também apontado por Costa e seu colega Adriano Codato, também da UFPR.

Em 2014, "nanicos" como PHS (4,8%), PEN (4,5%) e PTdoB (4%) lançaram mais trabalhadores do que o grande PMDB (3,8%). O PT, apesar da queda, ainda é o quarto (4,9%), porém bem atrás do líder PSOL (11,7%) - o que indica que seu nome de batismo pode perder sentido, ou ser ameaçado, à direita e à esquerda.

Fonte: Valor Econômico


Deu no Jornal (08/01/15)


"'O mar não está tranquilo e há nuvens pesadas'
Greves e demissões no setor automobilístico, no berço do PT, vão enfraquecer o governo dos trabalhadores. Num momento em que todos os discursos vindos de Brasília vão na direção de cortar benefícios para o setor, a presidente Dilma Rousseff pode enfrentar resistência maior do movimento sindical, diante do acordo quebrado de manutenção de empregos em troca de isenções fiscais, afirma a cientista política Sonia Fleury, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV):
- O governo Dilma é de uma coalização bastante ampla. Não é um governo petista puro. No primeiro ministério do Lula, havia uma predominância de sindicalistas. Os governos foram se afastando da identificação com o movimento sindical, embora tivessem o apoio.
Para o professor de História Contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira, essa crise atinge as bases do partido, o que pode intensificar a oposição dentro do próprio PT, inclusive por causa da política econômica de austeridade adotada.
- A coalização é mais instável, e Dilma não tem o carisma de Lula, que falava com as partes e tinha sucesso em contornar as crises políticas. Reação de movimentos sociais e sindicatos é quase inevitável.
O professor de Ciência Política da UFF Eurico Figueiredo também tem essa percepção. Para ele, uma das armas do governo é o fato de os principais líderes sindicais, de certo modo, ainda estarem em contato com o governo.
- A base do PT é o sindicalismo, ela tem enraizamento orgânico com a sociedade. Mas, com o agravamento da crise, as próprias lideranças são obrigadas a ceder às bases e podem radicalizar.
Figueiredo cita os movimentos sindicais organizados e as manifestações espontâneas que tomaram as ruas em junho do ano retrasado.
- O mar não está tranquilo e há sinais de nuvens pesadas.
Para Sonia Fleury, se os sindicalistas tiveram a ilusão de que poderiam influenciar as decisões dentro do governo, descobriram agora, com as demissões no setor automobilístico, que não.
- O que conta é a influência na sociedade. Mostra que governo é governo, sindicato é sindicato. Há possibilidade de diálogo, mas cada um no seu quadrado. Eles voltam ao papel de defesa dos trabalhadores. A política de benefícios não funcionou. Aprendemos todos. Uma política que não melhorou o desempenho da indústria, que não investiu em inovação e se acomodou. E sobrou para o mais fraco: o trabalhador que vai perder o emprego" (Cássia Almeida – O Globo).
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"Frente de oposição quer disputar SP com Marta
A Frente de Oposição, bloco formado pelo PSB, Solidariedade (SD), PPS e PV na Câmara, tenta atrair a senadora Marta Suplicy (PT) para disputar a Prefeitura de São Paulo em 2016. À frente das negociações, o presidente nacional do SD, deputado Paulo Pereira de Silva (SP), o Paulinho, teve duas conversas com Marta no fim do ano passado e deve retomar as negociações ainda este mês.
Paulinho disse a Marta que a senadora poderá ter tempo de televisão semelhante ao do PT e do PMDB. "A candidatura pelo bloco pode ser uma alternativa viável. Ela poderá ter as mesmas condições para disputar que teria nos partidos grandes", afirmou.
.... Desgastada com a presidente Dilma Rousseff e com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Marta perdeu espaço no PT e deve deixar em breve o partido. A senadora saiu do ministério da Cultura no fim de 2014 em meio a críticas ao governo e atacou a escolha de Juca Ferreira para sucedê-la" (Cristiane Agostine – Valor Econômico).
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"Lava Jato atinge obra da Mendes Júnior
• Com dificuldades de crédito, construtora deixa cerca de 500 operários da Transposição do São Francisco sem receber 2ª parcela do 13º salário
Os funcionários da construtora Mendes Júnior, nas obras de Transposição do Rio São Francisco, já começaram a sentir os efeitos da operação Lava Jato, da Polícia Federal, que investiga esquema de corrupção nos contratos da Petrobrás. Sem crédito na praça e sem receber da estatal, a construtora não fez o pagamento da segunda parcela do 13.º salário, previsto para 20 de dezembro, para os cerca de 500 empregados que continuam na obra.
De férias coletivas desde o dia 18, os funcionários voltaram ao trabalho na segunda-feira e continuam parados. "No escritório da empresa (em Salgueiro-PE), dizem que não há dinheiro nem para comprar combustível para colocar nos veículos e equipamentos da obra. Por isso, os funcionários ficam de braços cruzados sem saber o que fazer", afirma o coordenador do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Construção de Estradas, Pavimentação e Obras de Terraplenagem em Geral no Estado de Pernambuco (Sintepav), Luciano Silva....(Renée Pereira - O Estado de S. Paulo)

As raízes do Brasil e a democracia (Parte II) - Brasílio Sallum Jr




(Continuação)

Individualismo e liberal-democracia
Toda a argumentação anterior mostra que, em Raízes do Brasil, a noção de democracia referia-se a uma relação política inexistente no Brasil, mas que apontava para uma aspiração cujo suporte social e político estava ainda em construção; ela se definia em contraponto aos valores do personalismo e às relações sociopolíticas oligárquicas. Estas relações oligárquicas de mando se materializavam, institucionalmente, no Estado patrimonial e se assentavam no predomínio agrário, na família patriarcal e na escravidão, excluindo do corpo político uma grande parte do indivíduos subordinados ao Estado.

Democracia, pois, em Raízes do Brasil, refere-se a uma relação sociopolítica e a uma cultura política; esta entendida como aspiração cuja realização dependia da superação da oligarquia no plano sociopolítico. Mas não é só: a liberal-democracia desacompanhada de uma base sociopolítica correspondente e de valores universalistas é entendida em Raízes como ideologia, adorno conveniente, da oligarquia; neste sentido, dizia SBH, não passa de “mal-entendido”.

Sublinhe-se, porém, que, se a democracia era, em Raízes do Brasil, dimensão utópica, que transcendia o status quo oligárquico, ela não era a única nem a mais importante das aspirações das forças políticas que disputavam a hegemonia na conjuntura política conturbada dos anos 1930. Com efeito, a democracia não era aspiração muito generalizada no Brasil e no mundo quando da primeira edição de Raízes, em 1936 [2]. Pelo contrário, a década de 1930 foi dominada pela reação ao que Karl Polanyi denominou “civilização liberal”, cujo apogeu ocorreu antes da Primeira Guerra Mundial (Polanyi, 1980). A década de 1920 já foi dominada por tentativas de preservação daquela ordem e pelas primeiras reações políticas contra ela. A crise de 1929 encerrou todas as possibilidades de preservar a “civilização liberal” e favoreceu as reações políticas a que nos referimos, em geral divergentes em relação à democracia.

As instituições centrais dessa civilização liberal, cujo epicentro fora a Inglaterra, tinham tido grande capacidade de regular as relações entre Estados, as trocas internacionais e as políticas econômicas dos estados nacionais que se incluíam no seu âmbito. Foram seus pilares a política de equilíbrio de poder na Europa, o padrão-ouro como regulador do cambio de moedas, o caráter liberal dos estados e o livre-câmbio nas trocas internacionais. Como resultado, tinha sido muito diminuto o grau de autonomia econômica dos estados, que obrigavam-se a rezar pela cartilha liberal da Inglaterra, principal potencia militar da época.

As reações à “civilização liberal“ incluíram o nazismo, na Alemanha e na Áustria, o fascismo na Itália, o New Deal nos EUA e várias formas de nacionalismo e autoritarismo. As reações antiliberais brasileiras foram a “revolução de 1930” e seus desdobramentos posteriores; tais reações, porém, não foram uniformes, incluindo e mesclando movimentos sociais, políticos e intelectuais muito distintos — que foram desde o integralismo até o comunismo. Do entrechoque entre tais movimentos e os remanescentes do poder oligárquico acabou resultando o golpe de 1937 e a instituição, pelo poder central presidido por Vargas, do Estado Novo.

Neste contexto, de reafirmação da nação e do Estado forte, ressalta o caráter invulgar da defesa feita por SBH dos valores e das relações democráticas de poder. Já quando da segunda edição, em 1948, a vitória dos aliados — embora a Rússia soviética estivesse entre eles — produziu um clima político muito favorável à democracia, reforçando a mensagem do livro. Este novo “clima político” não reduziria, porém, a originalidade das ideias de SBH sobre a democracia; mesmo como aspiração ela não deixaria de ser pensada em seus fundamentos sociais e culturais singulares.

O fundamento social mais amplo, cujo dinamismo contrariava o poder oligárquico e alimentava as esperanças de realização da utopia democrática, era a já mencionada “revolução” que transformava as relações socioeconômicas em que se assentava o poder político. Tais transformações mudaram o epicentro da vida social, destituindo o mundo agrário e a família patriarcal da proeminência que tinham nas primeiras décadas de vida política independente do Brasil. A monarquia dera forma política estável ao poder oligárquico que organizava a vida política nacional. Mas só com o fim da escravidão SBH considera terem tido as transformações socioeconômicas impulso decisivo, acelerando o ritmo de transição histórica.

A Abolição encerra uma dupla inovação, pouco explorada em Raízes do Brasil. A primeira foi ter dado impulso à liberdade de firmar contratos para os trabalhadores, ainda que isso encontrasse, de início, muitos obstáculos para se efetivar. Ampliava-se com isso a rede de troca de mercadorias, o que dava aos trabalhadores a liberdade que antes não tinham de mudar de emprego e de patrão, já não mais um “senhor”. Reciprocamente, os ramos agrícolas e industriais mais afluentes encontravam mais facilidade de contratar trabalhadores. Assim, a Abolição acabou por facilitar o desenvolvimento urbano-industrial.

A segunda inovação, complementar à primeira, dizia respeito à ampliação da cidadania — do círculo de votantes, do direito de ir e vir, etc. —, embora tais direitos sofressem múltiplas restrições, tanto produzidas pelas leis como pelo domínio dos potentados locais. A Abolição quebrou, pois, a hierarquia social anterior e abriu espaço para avanços da cidadania, embora os diretamente beneficiados por ela, os escravos, encontrassem depois outras barreiras — inclusive a da discriminação racial — para participarem vantajosamente das transformações sociais em curso.

A Abolição não foi, assim, mero acréscimo quantitativo àquilo que SBH chamava de “nossa revolução”. Ela transformou a velha ordem social e acelerou a emergência de uma sociedade que entraria aos poucos em contradição com a esfera política — ainda oligárquica — e com a cultura política — dominada pelo personalismo. O surgimento de elementos novos, gerados pela expansão mercantil e especialmente pela constituição de uma sociedade urbano-industrial, tendia a acentuar o caráter limitado e excludente do arranjo oligárquico que o Brasil experimentava desde a Independência, fosse sob instituições monárquicas ou liberal-republicanas. A utopia democrática de Raízes do Brasil não era pois fantasia intelectual, mais uma daquelas formulas mágicas com que nossos intelectuais — escrevia SBH — pretendiam “solucionar” de vez os nossos problemas; não era mero exotismo dissociado da nossa realidade, embora ajustado a sociedades que considerávamos mais avançadas. Era utopia no sentido de Karl Mannheim, ideário-aspiração que movia segmentos da sociedades no esforço de superar o status quo.

A superação da contradição entre dinâmica social e política não seria encontrada, segundo SBH, na substituição de governos liberais por caudilhos que salvassem o Estado das tendências anárquicas surgidas naqueles. Caudilhismo autoritário e descentralização liberal nada mais seriam do que manifestações polares, opostas, do poder oligárquico e dos valores personalistas.

Só a democratização das relações de poder entre as várias camadas sociais permitiria avançar na superação almejada da contradição. Haveria que incluir na vida política as camadas sociais até então excluídas, rompendo o padrão oligárquico de mando [3]. É esta perspectiva que faz com que SBH incorpore de forma entusiástica um texto antigo do naturalista norte-americano Herbert Smith que lhe parecia enunciar em forma de aspiração o que, em sua opinião, não estava longe de transformar-se em realidade. Segundo Smith, haveria que substituir nossas “revoluções horizontais” — identificadas pelo contraponto liberalismo/caudilhismo — por “uma revolução vertical [...] que trouxesse à tona elementos mais vigorosos, destruindo para sempre os velhos e incapazes”. Uma revolução deste tipo não deveria excluir, expurgar as classes superiores mas amalgamar a elas os elementos novos, as camadas situadas na base da pirâmide social que até então estavam marginalizadas da vida política (BH, 1993, p. 135).

Sublinho que este argumento de SBH não se refere especificamente à democracia como arranjo institucional; arranjo que permitiria a inclusão na competição política das camadas dela marginalizadas. SBH prefere, ao invés, sublinhar a necessidade deste arranjo fugir aos padrões da cultura política personalista, materializando o que ele qualifica como “democracia despersonalizada”.

Claro está que aquilo que SBH denomina “democracia despersonalizada” não existia como regime efetivo; era apenas aspiração socialmente existente e, creio, forma política para a qual tendia, segundo SBH, o processo de transformação histórica subjacente de urbanização e industrialização. Sérgio não avança muito na delimitação desta “democracia despersonalizada” nem do individualismo que pudesse substituir o personalismo. E nem poderia, sob pena de desdizer-se em relação às criticas reiteradas feitas às fórmulas prontas, importadas em geral, destinadas a salvar a sociedade de seus problemas. Com efeito, como poderia inferir do movimento histórico que percebia então ocorrer, da utopia democrática que parecia estar entre as possibilidades futuras, uma ordem político-institucional específica, alicerçada estrutura sociopolítica e nos valores centrais da cultura democrática?

De qualquer modo, sua reflexão sobre as dificuldades de implantação da democracia no país, permitem dizer algo sobre a atualidade do seu pensamento no que diz respeito à vida política brasileira atual.

Para isso, porém, há que retomar algo dos argumentos presentes na primeira seção deste texto. Recorde-se que o personalismo ibérico opunha-se ao individualismo moderno exatamente porque o primeiro era aristocrático, era uma afirmação das qualidades de pessoa apenas para parte dos membros da sociedade e tinha como pressuposto a desigualdade essencial dos indivíduos. O individualismo moderno, pelo contrário, tem como pressuposto a igualdade essencial entre os homens, desiguais apenas pelas condições em que vivem e, por consequência, pelos resultados a que chegam. Daí que o reformismo democrático mais radical não propugne a equalização dos indivíduos mas apenas das suas condições sociais iniciais; seus lemas são a supressão da herança, educação universal etc.

Embora para Sérgio Buarque a “democracia despersonalizada” envolvesse, certamente, a superação do individualismo aristocrático para que se constituísse uma nova cultura política ajustada a uma sociedade democrática, ele hesitava em relação à natureza do individualismo que se poderia esperar em um país de tradição ibérica. Ele duvidava que com essa tradição viesse a imperar um individualismo do tipo utilitário, americano.

Tinha razão em hesitar, pois a cultura de raiz ibérica estava incrustada fortemente nas instituições e práticas brasileiras e, mais amplamente, na America Ibérica e afastava-se fortemente dos padrões dominantes no Ocidente. Quarenta anos depois de vir a público a edição definitiva de Raízes do Brasil [4], Richard Morse (1988) sublinhou esta distância, embora sem referir-se, surpreendentemente, ao livro de Sérgio Buarque. O quadro seguinte dispõe as características polares que os dois atores identificam nos padrões ibérico e anglo-saxão de cultura e organização social:

América Anglo-Saxônica (EUA)  / América Ibérica
Protestantismo                               Catolicismo
Razão                                             Sentimento
Individualismo e utilitarismo        Personalismo
Atomismo                                     Organicismo
Pureza racial                                Mestiçagem
Disputa                                         Conciliação
Ética do Trabalho                        Ética da Aventura
Esforço                                         Talento
Polidez                                         Cordialidade
Família nuclear                           Família patriarcal
Contrato entre indivíduos           Pacto social entre grupos
Estado burocrático moderno      Estado Patrimonial
Estado é só um meio                  Estado orgânico com finalidade

Para Sérgio Buarque a raiz da dificuldade de articular cultura ibérica e democracia estava na cordialidade contrariar o universalismo dos valores, elemento central da liberal-democracia. Diz ele: “Todo o pensamento liberal-democrático pode resumir-se na frase célebre de Bentham: ‘A maior felicidade para o maior número’. Não é difícil perceber que esta ideia está em contraste direto com qualquer forma de convívio humano baseado nos valores cordiais. Todo afeto humano baseia-se em preferências [...]. Há aqui uma unilateralidade que entra em franca oposição com o ponto de vista jurídico e neutro em que se baseia o liberalismo. A benevolência democrática é comparável com a polidez, resulta de um comportamento social que procura orientar-se pelo equilíbrio dos egoísmos” (BH, p. 139).

A dificuldade apontada seguramente existe, mas Sérgio Buarque a torna um obstáculo aparentemente intransponível porque não toma em suficiente consideração que a “nossa revolução” envolveu, com a industrialização, a imigração europeia e a absorção de um enorme contingente de trabalhadores em um proletariado industrial que restringiu o peso de alguns dos componentes da cultura ibérica [5]. A ética da aventura e a valorização exclusiva do talento, por exemplo, perderam relevância diante da ética do trabalho e da valorização do esforço. No próprio tempo em que SBH redigia o seu célebre ensaio, a cultura ibérica já se mesclava com traços culturais que eram similares mas não derivaram, como na Europa, do ethos protestante do empresariado; provinham da ética dos trabalhadores que vieram ao Brasil, sem eira nem beira, “fazer a América”; provinham também daqueles que viram no trabalho urbano um meio de afirmar-se como gente. A revolução vertical democratizante, a que se referia Sérgio Buarque, não significaria apenas a inclusão política dos homens novos surgidos do processo de transformação social. Com estes homens viriam também novas formas de pensar e sentir coletivas que desafiariam o império do legado ibérico e sua encarnação oligárquica. Isso significa que não se passou diretamente de um padrão a outro da cultura política; os processos de diferenciação social e de democratização foram gerando aos poucos uma nova cultura política, já não ibérica mas também distinta da cultura individualista e liberal predominante no mundo anglo-saxão. Se isso é verdade, há que dar sequência à reflexão de Raízes do Brasil, buscando fazer o esboço desta nova cultura política e das afinidades e tensões que apresenta em relação a processo de democratização em curso.

No que diz respeito a este processo mesmo de democratização, ele vem sendo extremamente lento e parcial. A “nossa revolução”, identificada nos anos 1930 por Sérgio Buarque, continuou se desenvolvendo; a industrialização incorporou e gerou camadas sociais novas que, por longo tempo, não foram incluídas plenamente na competição política. Seguramente, na experiência democrática limitada posterior à Segunda Guerra Mundial, a competição política incorporou de modo subalterno parte dessas camadas sociais mas não as mais pobres e iletradas. Esta inclusão política muito parcial, promovida por parcela da elite política, foi percebida como ameaça anárquica e, de novo, o poder se concentrou em uma ditadura, não caudilhesca mas do establishment militar.

Só o processo de liberalização política dos anos 1970 e o movimento de democratização da década dos 1980 quebrariam o ciclo polarizado do poder oligárquico, oscilante entre a descentralização liberal e o autoritarismo centralizador. A democratização plasmada na Constituição de 1988 ampliou os direitos políticos (voto para os analfabetos e para os maiores de 16 anos); garantiu os direitos de associação e a liberdade de expressão; universalizou também os direitos sociais, de educação, saúde, previdência e assistência social, incluindo camadas sociais até então excluídas desses direitos; fez do concurso público para principal via de acesso ao quadro administrativo do Estado, aumentou o controle da atividade do Estado pelo fortalecimento do ministério público e instituiu uma forma democrática de governo.

A onda democratizante foi seguida de um processo de liberalização econômica que reduziu o peso do Estado na vida material e franqueou o mercado nacional para empresas estrangeiras. Este processo acabou por reorganizar e acelerar o desenvolvimento capitalista no Brasil. Os dois processos — de democratização e de liberalização econômica — se materializaram em uma nova ordem política, estruturada, desde 1995, por uma forma de Estado moderadamente liberal e democratizante.

Este esboço sumário das inovações políticas do após 2ª Guerra Mundial mostra a lentidão com que o processo de transformação econômico-social, tornando a sociedade mais complexa, ganhou expressão política. Lentidão talvez maior do que antecipava SBH em Raízes do Brasil. Mais de meio século se passou antes que o movimento de democratização dos anos 1980 quebrasse parte da resistência oligárquica, estreitasse o espaço de controle patrimonialista do Estado e universalizasse os direitos de cidadania. Mais de meio século também se passou antes que o movimento de liberalização econômica quebrasse parte da resistência do empresariado à perda dos privilégios — proteção contra a competição e subsídios públicos aos ganhos privados — que lhe concedia o Estado varguista, vigente até os anos 80.

A ênfase dada ao caráter parcial dos resultados produzidos, seja pela liberalização econômica seja pela democratização, visa chamar a atenção para o déficit de democracia existente no país. A incorporação da base da sociedade à competição política ainda tem sido parcial. Embora políticas democratizantes do Estado — aumento real do salário-mínimo e transferências de renda — estejam provendo o mínimo de recursos econômicos necessários para a subsistência das camadas de pobres e miseráveis, estes ainda não têm condições de converter-se em cidadãos com capacidade de exercer autonomamente todos os direitos que possuem. Faltam-lhes condições econômicas — ocupação regular — e culturais para exercitar os direitos que a Constituição lhes outorga. Sua participação política tem sido heterônoma, embora já não tão dependente, como antes, de agrupamentos políticos tradicionais e clientelistas. Por outro lado, uma fração do empresariado goza ainda de privilégios concedidos pelo Estado, sem desenvolver atividades econômicas que contribuam para o poder público atingir alvos de políticas universalistas. Incluem-se entre tais privilégios a remuneração elevadíssima concedida pelo Estado aos que mantêm seus recursos econômicos aplicados de forma líquida — e não em atividades produtivas —, as transferências de recursos de fundos de reserva dos trabalhadores para empréstimos subsidiados pelo Estado e as concessões de isenções fiscais arbitradas pelos governos, sem que os beneficiados prestem contas dos resultados que produziram para o conjunto da sociedade.

Tudo isso mostra que, se o Brasil já não é uma sociedade oligárquica, como aquele em que SBH viveu, o país ainda não se tornou, no plano sociopolítico, uma sociedade democrática, em que não há — como dizia Florestan Fernandes (1975) — cidadãos “mais iguais” que a maioria.
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Brasilio Sallum Jr. é professor do Departamento de Sociologia da USP.
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Notas

[1] Refiro-me aqui à afirmação feita por Fernando Novais, em debate sobre Raízes do Brasil, de que a questão da identidade nacional é a problemática central da obra de Sérgio Buarque. Novais, porém, não avança na reconstrução de como SBH a interpreta. Ver Francisco Iglesias e outros (1992, p. 79).

[2] O fato das reações predominantes à civilização liberal terem sido conservadoras ou autoritárias permite entender o uso que se faz na 1ª edição de Raízes de certas referências e formas de expressão qualificáveis daquele modo. O fato de elas terem sido expurgadas da 2ª edição do livro pode indicar uma percepção mais clara por SBH da inconsistência que tinham em relação à mensagem democratizante do livro. Para uma interpretação contrária, consultar Waizbort ( 2011).

[3] Antônio Candido ressalta este ponto em seu conhecido “O significado de Raízes do Brasil” de 1967, incluído, a partir daí, nas várias edições do livro. Ver Raízes (BH, 1993, p. XLVIII). Este e outros artigos de Candido balizam, em grandes linhas, as interpretações da obra de Sérgio Buarque, o que inclui a contida neste artigo, exceção feita a algumas divergências (como por exemplo a enfatizada na nota 6 adiante).

[4] Refiro-me à 2ª edição, de 1948, que alterou significativamente o texto da primeira. As demais não apresentaram mudanças notáveis.

[5] Antônio Candido já chamou a atenção para a falta de referência explicita ao imigrante europeu na caracterização da “nossa revolução”. Ver Candido (1998, p. 84). De minha perspectiva, esta ausência não é de pouca relevância. Ela tem consequências analíticas negativas que são detectáveis em Raízes do Brasil. A ausência do elo analítico “imigração europeia” no processo de revolução torna algo obscuro — em Raízes — a emergência societária de aspirações igualitárias essenciais à “revolução vertical” democratizante. Sua presença não “resolveria” o problema, mas indicaria o caminho analítico que seria preciso percorrer para isso.

Referências bibliográficas
Buarque de Holanda, Sérgio. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993, 25ª edição (1ª edição: 1936).

Candido, Antônio. “O significado de “Raízes do Brasil” (1967). In: Buarque de Holanda (1993, pp. XXXIX-XLIX).

Candido, Antônio. “A visão política de Sérgio Buarque de Holanda”. In: Antonio Candido (org.). Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Perseu Abramo, 1998.

Fernandes, Florestan. A revolução burguesa no Brasil – ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

Iglesias, Francisco e outros. Sérgio Buarque de Holanda – 3º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

Morse, Richard. O espelho de Próspero – cultura e ideias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Polanyi, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Tradução de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

Waizbort, Leopoldo. “O mal-entendido da democracia” – Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, 1936”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n. 76, jun. 2011.