Teve quem se confundiu, ao assistir à propaganda televisiva do PT que, em tom sombrio, invocou os “fantasmas do passado” para passar um recado eleitoral. Não fosse a coreografia subliminar e a estrela vermelha ao final, a impressão é que se tratava de uma reencarnação do “eu estou com medo” protagonizado por Regina Duarte em 2002.
Foi, no entanto, algo diferente, ainda que da mesma espécie. Em 2002, o alerta era contra o desconhecido. Explorava-se o fato de que não eram nítidas as pretensões do PT. Agora, teme-se o ontem, aquilo que se supõe ser bem conhecido: o tempo do PSDB no governo, o do “neoliberalismo”, com seu cortejo de desgraças: desemprego, miséria, fome, doença, falta de oportunidades. Como “a esperança venceu o medo”e o PT chegou ao governo, não há como pensar em retroceder. É hora de amaldiçoar as “falsas promessas”. A população precisa temer a perda do que conquistou para que, amedrontada, decida defender o governo que a teria beneficiado.
São dois tipos de medo. Pouco realistas, acabam por se equivaler: medo do futuro e medo do passado. Objetivamente falando, não há como retornar aos tempos neoliberais, seja lá o que se entenda por isso. O mundo mudou, as exigências e possibilidades são outras. Não se entra duas vezes no mesmo rio. Assim como não dava, em 2002, para temer um futuro que, como todo futuro, dependia de variáveis que não se podiam prever. Governos são sempre operadores racionais, que modificam as circunstâncias e são modificados por elas. Não são senhores da vida, da história ou do destino das pessoas.
Como em ano de disputa política acirrada o importante é derrotar os adversários, o recurso ao voto defensivo pode ajudar a que se vença uma eleição. Mas não fará com que se governe bem depois, nem transferirá apoios ao vencedor.
Ao realçar o risco que poderia vir com uma volta aos tempos da miséria e da “desesperança”, a tática do medo oculta o que virá pela frente. Pretende “tirar sua poesia do passado” (Marx), aprisionando-se a ele. Combina-se com o silêncio sobre o que se pretende fazer. No lugar da esperança, entra a resistência.
Que garantia o discurso do medo pode nos dar, por exemplo, de que o presente não está grávido de possibilidades nefastas, postergando medidas amargas que terão de ser tomadas à frente? Administrado com vistas ao sucesso eleitoral, o presente é um espaço estagnado: exclui tudo aquilo que possa ter impacto negativo nas urnas.
Isso vale para o PT e para os demais partidos. Se comprimo artificialmente o preço das tarifas de energia e do combustível para não desagradar ao eleitorado, em algum momento do ano seguinte terei de promover reajustes, sob pena de inviabilizar as finanças governamentais e de quebrar as empresas fornecedoras.
A hipótese de um “tarifaço” futuro não é terrorismo eleitoral, mas algo perfeitamente razoável, quem sabe até mesmo provável, vença quem vencer. Pode-se utilizar todo o volume morto do sistema Cantareira para não ter de racionar água em São Paulo no ano das eleições, mas a conta de tal operação será cobrada em algum ponto futuro. Poderá não ser em dinheiro, mas em qualidade da água e, portanto, em saúde.
O discurso do medo é um expediente de baixa política. Um subterfúgio. Traz consigo a exacerbação dos espíritos, a caça a bruxas e fantasmas, algo estranho em partidos progressistas. Bloqueia entendimentos democráticos, como se só houvesse um caminho para o céu. Implica uma vitimização: nunca se teria “batido tanto” num presidente da República, pontificou Lula, acrescentando que isso se deve ao fato de Dilma ser mulher, ser “uma de nós” e, por isso, desagradar às elites. Esqueceu-se de observar que parte ponderável das elites está no mesmo barco do governo, o apoia e defende. Dizer que as “elites” conspiram (incentivadas pela “mídia golpista”) para acabar com as conquistas sociais do governo é fazer vistas grossas para o que há de insuficiência política e de frouxidão reformadora no governo. A culpa seria dos outros. A insatisfação social não passaria de ficção.
Este padrão de discurso impõe ao eleitor um cenário de incerteza e angústia, convidando-o a decidir com base numa reação emotiva e não na deliberação racional, a fugir do experimento democrático, a demonizar a mudança a partir de uma apologia da continuidade.
Não é razoável que se façam ameaças quando se sabe que problemas e tensões haverá pela frente, seja quem for o governo. Fechadas as urnas, algo terá de ser feito com a inflação, a irritação das ruas, a saúde e a educação. Nada disso poderá ocorrer sem sofrimento, sem uma“transição dolorosa” (Guido Mantega). Ao dizer que uma vitória das oposições anunciará o apocalipse, o PT quer sugerir que o segundo governo Dilma será o paraíso na terra.
O discurso petista do medo poderá ser entendido como reação a um discurso semelhante das oposições. Dado o baixo nível reinante, não é uma explicação imprecisa. Empregado no estilo olho por olho, porém, convida o eleitor ao retrocesso mental: leva-o de volta ao obscurantismo, tratando-o como se ele não fosse capaz de avaliar o quadro e fazer escolhas por si só.
Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Publicas e Relações Internacionais de Unesp. Alias / O Estado de S. Paulo, 18 de maio de 2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário