terça-feira, 20 de maio de 2014

As eleições menos importantes do país (Renato Janine Ribeiro)




Nas eleições deste ano, um cargo chama, se posso assim dizer, nossa desatenção - porque é o menos importante em jogo: o de deputado estadual. Eles são mais de mil, incluindo os distritais de Brasília. Mas têm menos poder do que deputados federais, senadores ou mesmo vereadores. Todos os governadores, ou quase, controlam as Assembleias Legislativas sem dificuldades. A oposição, nessas Casas, é fraca; em alguns casos, nem existe. Fala-se que o legislativo federal é controlado pelo poder executivo; mas o controle é mais forte no nível estadual.

Uma razão para isso pode estar na menor competência dos Estados para legislar. Nossa Constituição confere à União competência legislativa sobre praticamente qualquer assunto, enquanto cabe aos municípios decidir assuntos de interesse local, como o zoneamento, que afetam diretamente a vida dos moradores. Já os Estados têm sobretudo uma competência concorrente à da União e dos municípios. Como aos legislativos cabe, é óbvio, votar leis, resulta disso que os estaduais produzam pouco. E como os governadores são personagens de destaque em nossa política, efetuando um poderoso meio de campo entre prefeitos e presidência, bem como influenciando bancadas no Congresso, cresce o fosso entre um Executivo estadual forte e um Legislativo fraco.

Só para comparar Estados e União: a Presidência da República tem muito poder, mas a cada votação relevante tem de renegociar sua maioria em duas Casas legislativas distintas, nas quais há mais partidos relevantes do que nos Estados. Porque, se em cada Estado há poucos partidos que contam, na escala nacional eles se tornam numerosos. O legislativo federal é mais complexo que os estaduais.

Pode haver razões históricas para o menor peso das assembleias. No Brasil colonial, o que importava, em termos sociais e políticos, eram os municípios. (Ulisses Guimarães, na época da Constituinte, certamente lembrava esta tradição, ao dizer que "as pessoas vivem nos municípios, não na União"). As capitanias, antecessoras das províncias do tempo imperial e dos Estados da era republicana, na prática contavam pouco. Nas cidades, estava o que tínhamos mais perto de uma política representativa. Não tivemos assembleias provinciais, como as colônias inglesas da América, mas câmaras municipais, atuantes, ainda que esses órgãos em que pobres e escravos não tinham vez não fossem, propriamente, democráticos.

Mas a autonomia local, numa época de comunicações difíceis e lentas, foi um traço importante de nossos primeiros séculos. Prova disso é que, quando Pedro I outorgou a Constituição de 1824, depois de dissolver a Constituinte, ordenou que fosse submetida à apreciação das Câmaras Municipais - que, sensata ainda que não democraticamente, a aprovaram. As assembleias provinciais só nasceram com o Ato Adicional de 1834, durante o que Paulo Pereira de Castro chamou nossa "experiência republicana", a Regência.

A República rompeu o modelo centralizador que vigia desde os tempos portugueses, conferindo autonomia aos Estados. Na República Velha, houve verdadeiras guerras civis no plano estadual, sem que a União interviesse. Érico Verissimo relata, no "Lenço encarnado", a revolução gaúcha de 1923, em que chimangos e maragatos se matavam ante a neutralidade das tropas federais. A Força Pública paulista dispôs até mesmo de uma aviação militar. Desde 1930, porém, essa autonomia recuou. Nunca nossos Estados, ao contrário dos norte-americanos ou mexicanos, puderam legislar sobre o crime. Mas tiveram, nos primeiros quarenta anos do regime republicano, códigos próprios de processo. A partir da Revolução de 30, reforçada pela ditadura militar, a centralização caminhou a largos passos. Reduziu, nesse processo, a competência de legislar dos Estados.

Isso é bom, é ruim? Não sei. Hoje o poder político reside, em larga medida, na orientação da atividade econômica. Essa é uma tarefa, em qualquer lugar do mundo, do poder soberano. Unidades subnacionais podem gastar o que arrecadam em impostos, mas não têm meios fortes para definir como se produz a riqueza - da qual vêm os tributos. Na própria Europa, a unificação em curso reduz o poder dos Estados nacionais, o que fica evidente na atual, longa e talvez insolúvel crise do euro. Era inevitável diminuir a competência legislativa de nossos Estados - até porque a enorme autonomia deles, vigente na República Velha, não resultava de demandas populares, mas de um acordo entre oligarquias.

Mas fica o problema. A competência de legislar dos Estados é limitada; suas assembleias não causam muito impacto; um vereador de capital pode ser mais influente do que um deputado estadual; salvo desconhecimento meu, a única assembleia do País a ser forte no imaginário dos cidadãos é a fluminense, para onde se voltam protestos de toda ordem. Não por acaso, dentre as assembleias só a ALERJ é popularmente reconhecida por sua sigla. Governadores são personagens políticos relevantes, deputados estaduais não. Queremos isso?

Essa situação é boa para nossa política, nossa sociedade? Há meios de mudá-la? O quadro me faz pensar na Assembleia de Representantes criada, em 1891, por Júlio de Castilhos, no Rio Grande do Sul. Ele fez adotar uma constituição positivista, que deixava aos deputados gaúchos só o papel de votar o orçamento. Todas as outras leis eram baixadas pelo Executivo. É claro que tudo mudou, de lá para cá. Mas deveríamos discutir o que queremos de um órgão legislativo que, em que pesem as intenções dos seus membros e os votos que legitimam seus mandatos, é o menos significativo de nosso sistema político.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.


- Valor Econômico ( 19 de maio de 2014)

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