quinta-feira, 29 de maio de 2014

O movimento sindical e os partidos. Longe das frustrações diárias, desafiados pelo 'enxameamento'. (Rudá Ricci)


ENTREVISTA/IHU
IHU -  O senhor aponta o surgimento de uma outra política, que nasceu das ruas a partir das manifestações de junho. Em que consiste essa nova política e em que aspectos ela se diferencia do que vinha sendo feito até então? 
   Rudá Ricci - Ela leva a marca de uma nova geração de protagonistas, entre 20 e 30 anos de idade, que já manifestaram suas peculiaridades em muitas outras manifestações ao redor do mundo, como os confrontos ocorridos em Seattle, quando do encontro da Organização Mundial do Comércio, em 1999. A ela se seguiram outras, como as de Bolonha, Gênova, Praga e muitos confrontos em Londres. Mas em Seattle já havia uma articulação de forças e organizações (locais, nacionais e internacionais) que se repetirá várias vezes, incluindo ONGs ambientalistas e voltadas para o direito do consumidor e questões trabalhistas, sindicatos, grupos de estudantes, organizações religiosas (Jubileu 2000) e anarquistas. O que há de novo neste conjunto de manifestações que incluem as de junho de 2013 no Brasil?

Uma geração que desenvolveu valores entre seus "pares de idade", que se forjaram à sombra da diminuição gradativa do tempo de convívio familiar. Com a desmontagem da socialização primária que a partir do século XVII, segundo Ariès, passa a ser de responsabilidade das famílias, as tribos urbanas se constituíram em redes de proteção social de jovens, com fortíssimo caráter comunitário. As comunidades, vale destacar, não são afetas ao mundo público, já que desenvolvem identidade grupal, fechada e, não raro, se contrapõem ou ignoram outros grupos comunitários. As redes sociais reforçaram a lógica comunitária juvenil. 

A cultura que emerge daí é, portanto, grupal, afetiva, agressiva em relação à diferença, refratária às instituições e valores do mundo adulto, apoiada numa lógica de relação direta e horizontal, que nega hierarquias e vanguardas. O que vimos em junho de 2013 foi a somatória de muitos agrupamentos com suas inúmeras prioridades e demandas. Sem lideranças coletivas, sem vanguardas, anti-institucionalistas, autonomistas. Evidentemente, se confrontam com todas organizações de representação social e política que se consolidaram no século XX.

“O problema do lulismo é que ele avança em termos sociais e até econômicos, mas retrocede na dimensão política”

IHU On-Line - Quais são os discursos presentes nas manifestações?
Rudá Ricci - Inúmeros, marcados pela polifonia. Cheguei a pontuar que teriam como mote a "utopia no presente", absolutamente provisórias, de momento, realizando o que poderia ser a alternativa no momento da manifestação. Algo que existe até hoje no Occupy ou M15.

Foi um carnaval político (ou, uma transgressão dentro da ordem). Por este motivo que os partidos ficaram atônitos (não sabiam a quem se dirigir) e a grande imprensa procurou desesperadamente adiantar qual era a demanda mais importante. Utilizar o olhar do século XX, hierarquizado e organizado racionalmente, numa manifestação juvenil deste tipo é usar óculos escuros para enxergar na escuridão. Temos que alterar o paradigma das ações sociais para entender o que há de novo. Alguns autores espanhóis, que foram seguidos por norte-americanos, estão, inclusive, sugerindo desta nova prática o que denominam de "enxameamento": uma ação que lembra os enxames de abelhas, que surgem do nada e somem sem aviso prévio.

IHU On-Line - O que essas manifestações e, de modo geral as greves que estão ocorrendo, demonstram sobre a esquerda ou o que viria a ser um projeto de esquerda no Brasil?

Rudá Ricci – Que, nos últimos dez anos, várias das organizações que nasceram nos anos 1980, durante o processo de redemocratização do país, esqueceram a sua origem, muitas vezes anti-institucionalista e “basista”, valorizando mecanismos de democracia direta e utilizando a violência no confronto com a PM (como o uso de bolinhas de gude para derrubar os cavalos utilizados pelas polícias estaduais ou, ainda, utilizando mitsubishi para furar pneu de ônibus durante os piquetes). As ONGs, sindicatos e muitas pastorais sociais se voltaram para o Estado e se afastaram das ruas. Muitas dessas entidades assumiram serviços sociais terceirizados pelo Estado. É o caso da Pastoral do Menor, que assumiu a administração da FEBEM (hoje, Fundação Casa) em São Paulo. Ou tantas ONGs que assinaram convênios com governos para assumir atendimento a famílias em risco. Os sindicatos ingressaram nas arenas de tomada de decisão de políticas de governo e indicam, hoje, quem assumirá as secretarias do trabalho nos Estados. Abriu um hiato de representação, o que é grave num país onde a desigualdade ainda é a marca no cotidiano da maioria da população. O que significa dizer que as frustrações diárias não têm mais por onde se expressar. Os canais de escuta que forjavam pautas de demandas sociais, que facilitavam a vida dos governantes comprometidos com a superação das dificuldades das populações mais carentes foram interditados.


“Temo que um governo de origem de esquerda acabe ensinando como a direita brasileira deve governar na democracia”

Qual a resultante desta situação? A frustração diária, em algum momento, explode como um mosaico, sem lideranças, marcada pelo ressentimento em relação a quem deveria representá-los ou ouvi-los. É isto que estamos vendo desde junho de 2013 e que, agora, também envolve rupturas das bases sindicais com suas diretorias e movimentos sociais que demandam reforma urbana. Em suma: a esquerda brasileira cometeu os mesmos erros que a europeia. Só espero que a tragédia das eleições para o parlamento europeu — em que vários partidos de extrema direita saíram vitoriosos das urnas — não se repita por aqui.

IHU On-Line - Quais as implicações dessa outra política nos movimentos sociais?

Rudá Ricci - O retorno à desconfiança em relação ao plano institucional, como havia nos anos 1980. Naquele período, a desconfiança partia da arrogância e violência do regime militar.

Agora, volta-se contra a arrogância, inoperância, tutela e ausência de diálogo dos governantes, sindicatos e partidos. Presenciamos a pior geração de gestores públicos da nossa república. São governantes que não valorizam a prática política, da escuta, da habilidade e da negociação. Não nos lideram e não nos empolgam. Estamos às vésperas da Copa da FIFA e não há sinal de verde e amarelo nas ruas, o que é uma novidade na nossa história. Mas, aí, olhamos para os governantes e vemos que eles também não estão empolgados. O discurso deles é tecnocrático, se assustam com o imponderável, não criam fatos políticos, são omissos. Enfim, o discurso do Estado Mínimo e adoção de práticas empresariais para gestão do Estado chegou forte pelas mãos desses governantes sem alma, que não se forjaram na luta social. Esta tragédia tem este lado positivo: nos ensina que experimentação na política não dá bons frutos. A política é para líderes, para pessoas forjadas nesta prática da negociação, da antecipação que cola, ainda, corações e mentes. Competências que não encontramos em empresas.

IHU On-Line - Desde o ano passado aumentou o número de categorias profissionais fazendo greves sem o consentimento dos sindicatos, ou seja, literalmente passando por cima dessa organização. O que isso significa e como senhor avalia tais greves? Trata-se de manifestações pontuais por conta da atual conjuntura ou há sinais de mudanças em relação a algumas categorias, a exemplo da greve dos garis, no Rio de Janeiro, e a greve dos motoristas de ônibus em vários estados, especialmente em São Paulo?

Rudá Ricci - Acho que é uma conjunção de fatores. Sem dúvida, o cenário de euforia de 2010 está se diluindo a cada mês e isto cria uma situação de insegurança em relação ao futuro. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE revela que as greves aumentam ano a ano, mas os resultados são gradativamente menos auspiciosos.

Também é fato que a aristocratização de muitos dirigentes sindicais, que adotam uma carreira política cujo início é o sindicato, impacta fortemente a base sindical, aumentando o ressentimento. Esta fissura abre a temporada de disputa entre correntes sindicais. A CUT está acuada porque adotou certo padrão governista, mais focado nos acordos de cúpula com o Estado e menos afeto ao conflito trabalhista. A Copa da FIFA apenas cria o ambiente ou oportunidade para que as diferenças e insatisfações se apresentem publicamente. A situação é ainda pior nos setores de serviços públicos, onde o governismo gera insatisfação ainda maior na base sindical.


“Presenciamos a pior geração de gestores públicos da nossa república”

IHU On-Line - A que atribui essa distância dos sindicatos de suas bases?

Rudá Ricci - Ao que Philippe Schmitter denomina de neocorporativismo, ou seja, quando as estruturas de representação corporativa se inserem na lógica de Estado, participando de fóruns e arenas de elaboração e tomada de decisão governamental. Já vimos o resultado em vários países europeus, como a Itália. Lá, as comissões de fábrica foram se autonomizando em relação às centrais e sindicatos. O fenômeno do neocorporativismo partidariza o sindicalismo e também o corrompe, tornando o dirigente sindical não um representante, mas um segmento social profissionalizado.

IHU On-Line - Quais são as razões das greves recentes e o que elas sinalizam em relação ao trabalho no Brasil, especialmente após um período em que houve aumento gradativo do salário mínimo e, por outro lado, um acesso maior à universidade?

Rudá Ricci - A pergunta parece sugerir o que alguns autores denominam de demandas pós-materialistas, tal como sugere Ronald Inglehart. Não me parece que tenhamos chegado a este ponto. Acredito, antes, que se trata de um clima de insegurança em relação ao futuro (não necessariamente ao presente). Como se a base sindical percebesse que há sinais de insustentabilidade dos ganhos dos últimos anos: inflação em alta, endividamento perturbador das famílias de renda baixa e média, diminuição da oferta de crédito, aumento da taxa de juros. Lembremos que em maio de 2013 um simples boato do fim do Bolsa Família deu o alerta para 920 mil beneficiários sacarem de suas contas na CEF. Justamente o público mais cativo do governo federal.

IHU On-Line - Como avalia a adesão da Central Única dos Trabalhadores – CUT à defesa da Copa do Mundo e declarações de que os protestos contra a Copa são eleitoreiros?

Rudá Ricci - Uma partidarização excessiva, que supera o limite da prudência num momento de aumento da disputa sindical na base. Reforça, ainda, a imagem governista, que a aproxima do sindicalismo peronista. Um alto risco que coloca por terra a origem da CUT, que nasceu valorizando as oposições sindicais como representantes legítimos da base, defendendo o fim do imposto sindical e a necessária organização no local do trabalho.

Lembremos, inclusive, que a CUT chegou a criar uma estrutura paralela à estrutura oficial do sindicalismo brasileiro, com os departamentos de categoria. O caso mais evidente foi o do Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais - DNTR/CUT que tentou criar um comando paralelo à CONTAG até meados dos anos 1990.

IHU On-Line - A CSP Conlutas, hegemonizada pelo PSTU e também com participação do PSOL vem crescendo? Ela pode ameaçar a hegemonia da CUT junto aos servidores?

Rudá Ricci - Cresce lentamente. Mas em alguns setores em que o conflito com o sindicalismo governista é mais agudo, em especial nas categorias do serviço público e em alguns conflitos da área da construção civil. É importante notar que a elite do movimento sindical vem se alterando. Os bancários perderam seu posto de liderança, que desde os anos 1990 esteve emparelhado com os metalúrgicos. Categorias do serviço público aumentam seu poder no mundo sindical. O caso ilustrativo é o da CUT Minas Gerais, onde a presidente é a coordenadora do sindicato estadual de professores, SindUTE. Não é um caso isolado. No campo do sindicalismo privado, cresce o poder dos comerciários. Perceba que há relação direta com o novo Brasil da agenda lulista-rooseveltiana: maior poder orientador do Estado e aumento do consumo popular.

IHU On-Line - Pode-se esperar uma nova etapa para o movimento sindical brasileiro? Em que sentido? Ou os sindicatos já fazem parte do passado?

Rudá Ricci - Ainda é muito cedo para vislumbrar impactos reais, tanto no mundo sindical como no mundo político. Acredito que a tendência será a luta pela recuperação da liderança perdida. E isto significará radicalização do discurso sindical, como medida de antecipação às oposições. Não há dúvidas de que as greves deste mês criaram um grande alerta nas cúpulas sindicais do país. Na mesma medida em que as manifestações de junho impactaram os partidos políticos e governantes. Dois fenômenos de quebra de legitimidade das representações formais. Mas que não apontam alternativas.

IHU On-Line - Recentemente o senhor declarou que estamos a um ponto de ter manifestação dos beneficiários do Bolsa Família. O que isso significa, considerando que o programa é bastante popular entre os que recebem?

Rudá Ricci - Esta declaração teve relação com duas percepções. A primeira, em função dos "novos brasileiros" estarem se projetando publicamente. Os brasileiros que se forjaram como novas comunidades a partir das mudanças sociais que ocorreram nos últimos dez anos, fruto das políticas lulistas. Os "meninos de junho" revelaram uma nova juventude, com valores realmente peculiares e novos. Os meninos do rolezinho revelaram o consumismo dos filhos dos emergentes, que alguns autores apressadamente denominaram de nova classe média. Agora, vemos se projetar uma nova base sindical. Todos se contrapondo à lógica das elites ou procurando ocupar um espaço que antes só era definido pelas elites (econômicas, políticas ou sindicais). Dos "novos brasileiros", só os beneficiários do Programa Bolsa Família - PBF não se apresentaram coletivamente.

“A CUT está acuada porque adotou certo padrão governista, mais focado nos acordos de cúpula com o Estado e menos afeto ao conflito trabalhista”
Mas a segunda percepção nasceu da leitura do livro de Walquiria Rego, "Vozes do Bolsa Família", um trabalho muito importante desta professora da Unicamp. O livro revela que as mulheres beneficiárias deste programa não são, nem de longe, clientela do Estado, como se lê na grande imprensa. Inclusive, afirmam que se trata de um direito e criticam o valor que recebem. Fico imaginando se não poderia ocorrer, numa versão mais politizada do que ocorreu quando do boato do fim do Bolsa Família em maio do ano passado, de essas beneficiárias articularem uma demanda coletiva por benefícios mais amplos, por uma rede de promoção que vá além da proteção à sua reprodução social. Porque o PBF não promove, apenas garante a reprodução daquele segmento como tal. Trata-se, portanto, de uma política liberal que, num país de cultura política conservadora como o nosso, é taxada de esquerda. Era uma mera especulação de minha parte.

IHU On-Line - Muitas das análises feitas ao governo Lula e Dilma nesses 12 anos destacam medidas importantes, como o aumento na distribuição de renda, aumento do salário mínimo, acesso a crédito, programas sociais de ingresso à universidade, etc. Diante desse quadro, como explicar as manifestações? Concorda com as análises de que há um mal-estar na sociedade? Esse mal-estar está associado a quê? Trata-se apenas a conjuntura da Copa?

Rudá Ricci - O problema do lulismo é que ele avança em termos sociais e até econômicos, mas retrocede na dimensão política. O lulismo parece refratário à gestão participativa e a qualquer mecanismo de cogestão ou educação para a cidadania ativa. Veja que não houve nenhuma novidade em termos curriculares, tanto no ensino básico quanto no universitário. O Programa Mais Médicos existe porque o projeto curricular para a medicina brasileira é conservador e elitista. Ouvi de um amigo médico que o padrão brasileiro é o norte-americano, em que embaixo do jaleco se usa terno e gravata. O lulismo não confrontou com a cultura fundamentalista e conservadora do país porque necessitava criar um ambiente de investimentos a partir do pacto desenvolvimentista de inspiração rooseveltiana. O problema é que este modelo foi implantado numa conjuntura de crise econômica internacional. Em suma, Lula implantou um fordismo tardio ou modelo rooseveltiano fora do seu tempo. As oscilações econômicas são inevitáveis. E somente um líder carismático pode domar o mar revolto. O que Lula fez magistralmente, quando, num gesto de ousadia, disse que a crise de 2008 era uma mera marolinha. Os brasileiros ouviram e confiaram, gastando naquele final de ano o que a prudência diria para não fazerem. E o país conseguiu tempo para fazer ajustes que acabaram por enfrentar o impacto da crise internacional.

Mas, desde 2011, a crise externa se agravou e não temos mais uma liderança carismática liderando o país. Enfim, o problema do lulismo é o campo político. Centrado na tutela estatal, dependemos do sinal do líder a cada percalço. E a população beneficiada por políticas de transferência de renda e incentivo ao consumo popular aguarda o sinal seguro do governo para lhe garantir estabilidade e até mesmo ascensão social constante. Quando isto não ocorre, o medo de voltar à pobreza se instala. E não há como se manifestar porque não foram criados mecanismos de organização ou canais institucionais de participação popular. Só resta uma saída: as ruas.

IHU On-Line - O que, especificamente, os protestos contra a Copa significam?

Rudá Ricci - Um constrangimento aos governos. Nada mais que isso. E os governos parecem que morderam a isca. Estão se armando desproporcionalmente. O que infla os manifestantes mais engajados. Aliás, algo que ocorreu na juventude da Presidente da República, já que o AI-5 não a fez retornar à sua casa. Muito pelo contrário. Temo que um governo de origem de esquerda acabe ensinando como a direita brasileira deve governar na democracia.

IHU On-Line - O que é possível vislumbrar para o mês da Copa? Mais protestos?

Rudá Ricci - Sim. Protestos diários, em cada localidade onde ocorrer um jogo da Copa, com poucos manifestantes e alta intensidade. Se os manifestantes adotarem o padrão dos grandes eventos internacionais que citei no início desta entrevista, cercarão hotéis onde as delegações e jornalistas internacionais estarão hospedados, imediações dos aeroportos e estádios. Mas não deverão envolver muita gente, já que estamos no país do futebol.

Contudo, se a seleção brasileira fracassar precocemente, a humilhação nacional poderá ter um lugar para se manifestar, já que os protestos estarão lá, todos os dias. Se isto ocorrer, poderemos ver novamente as multidões tomando as ruas das capitais brasileiras.

IHU On-Line - E em relação às eleições, que resultados e atitudes são possíveis vislumbrar tendo em vista esse cenário de protestos? Algum dos candidatos saberá dialogar com o público que está nas ruas?

Rudá Ricci - Se a seleção brasileira vencer o torneio da FIFA, o evento agraciará a reeleição de Dilma. Não haverá muito clima para críticas ácidas num momento em que o país estará de bem consigo mesmo. Estaremos nos redimindo de 1950, inclusive. Mas, se a seleção fracassar, a humilhação será quase insuportável, abrindo caminho para o ressentimento que já citei anteriormente. O problema é mais grave porque nenhum dos candidatos de outubro possui histórico que lhes dê condições para explorar esta insatisfação possível. Qualquer um parecerá oportunista. Mas dois personagens da política possuem tal histórico e legitimidade. Justamente os dois que não serão titulares do jogo, o que demonstra o quanto nosso sistema político-partidário está desorientado: Lula e Marina, os dois Silva.

(Por Patricia Fachin)

Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto) e coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp), entre outros.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

À espera de uma surpresa (Renato Janine Ribeiro)




A campanha parece estar chegando a uma certa estabilidade na instabilidade, que dificilmente sofrerá mudanças sensíveis antes de começar - depois da Copa - o período que os pernambucanos chamam de "guia eleitoral", isto é, a propaganda na TV e no rádio. A não ser que haja um imprevisto enorme - e o problema é que estamos vulneráveis a surpresas.

O que sabemos: que Dilma Rousseff está perto de ser reeleita no primeiro turno ou de ficar para o segundo - isto é: tudo é possível, tudo está por um fio. Aécio Neves pode ganhar, se chegar ao segundo turno e conseguir a transferência dos votos de Eduardo Campos. Ou seja, o quadro só se definirá perto das eleições. Mas há um dado difícil de mudar: Eduardo não se diferenciou de Aécio. Ele se portará como um coadjuvante na eleição, salvo uma reação enérgica, que está tentando mas até agora sem êxito. PT e PSDB conseguiram marcá-lo na oposição. Os petistas o atacam, os tucanos o acolhem, mas o efeito é o mesmo: ele aparece como um sócio menor do projeto tucano. Essa situação é letal para a "terceira via". Marina Silva não teria deixado as coisas chegarem a esse ponto. Essa situação da terceira via ficar em terceiro lugar não parece fácil de alterar.

Nosso eleitorado se divide em três grupos, de tamanho próximo: um terço gordo (algo acima de 33%), que é o eleitorado seguro do PT, outro, que prefere os dois candidatos de oposição, e um "terceiro terço", que por ora não se decidiu. Esses números sobem e descem com as pesquisas, mas, descontando o impacto efêmero das circunstâncias, a realidade é essa disputa entre PT e anti-PT, a ser decidida pelos que mudam de opinião. Quem resolve nossas eleições mais disputadas não são os petistas roxos ou tucanos até embaixo d'água: são os menos animados, indecisos, inconfiáveis. Isso é bom, porque servem de termômetro para as políticas, punindo as desastradas e recompensando as felizes. Uma democracia precisa de indecisos.

O melhor cenário para Dilma é a vitória no primeiro turno. Não só pela razão óbvia (quanto mais cedo, melhor), mas porque seu pesadelo é perder no segundo turno, se não conseguir votos a seu favor entre os eleitores dos candidatos descartados. O melhor cenário para Aécio e Eduardo é a soma deles superar a votação dela: um deles a enfrentaria no final de outubro e o outro acumularia méritos para ter participação em seu governo.

O melhor discurso para Dilma é a ênfase nos êxitos petistas em matéria social, para Aécio é a insistência tucana nas falhas que vê na política econômica. Mas aqui a coisa se complica.

Os oposicionistas têm preferido falar a empresários - o que mereceu a crítica desse agudo observador da cena política que é Cesar Maia, lembrando que o capital não dá votos e até gera antipatia no povo; melhor fariam os dois se subissem os morros, se falassem a quem vota. (É só na eleição que todos somos iguais).

Aécio e Eduardo buscam os patrões para arrecadar fundos, mas assim expõem o flanco à crítica de descuidarem do social e de prepararem uma política, usemos o que na América Latina é um palavrão, "neoliberal". Uma eleição tem vários turnos, dos quais só o primeiro e o segundo estão na lei e têm data; durante o mandato, haverá um terceiro turno durando mais de três anos, em que capital e movimentos sociais pressionarão o eleito para atender a suas reivindicações; mas, antes disso tudo, há um "turno zero", quando as forças se reúnem, se montam as coligações, se consegue dinheiro. A chance de Aécio e Eduardo está em fecharem logo o turno zero, obtendo apoios empresariais, e aí partirem para o povão. Frequentar as elites tem "deadline" e seus rastros devem sumir antes da hora decisiva, de disputar o um-homem-um-voto.

Neste quadro, o que esperar? Não deve haver grandes mudanças nos próximos meses, salvo um incidente sério, uma surpresa na Copa ou fora dela. Mas a verdade é que estamos à mercê de surpresas. O clima político e social está tão carregado que uma fagulha pode ter efeitos devastadores - ou não. E o Brasil é um país que muda de repente. Somos mais sujeitos ao aleatório do que sociedades de perfil social e político mais rígido. Faz um ano, a violência de alguns manifestantes do Passe Livre ia voltando a população contra eles, até que a violência - em escala industrial - da polícia paulista provocou um repúdio generalizado e, em reação, o apoio às manifestações. Não fosse a sangrenta ação policial, tudo seria diferente. A truculência policial mudou o país.

Por que chegamos a um equilíbrio social e político tão vulnerável? O Brasil mudou muito em 20 anos. As privatizações de FHC transferiram a propriedade de 30% do PIB, segundo Chico de Oliveira. A inclusão social promovida pelo PT fez um quarto da população sair da grande pobreza, além de beneficiar outras classes. Nem as medidas econômicas de FHC, nem as sociais dos governos petistas, agradaram a todos. Nossa sociedade se rachou em torno não de duas interpretações dos mesmos fatos, mas do próprio relato que direita e esquerda fazem do que julgam ser a realidade factual. Perdemos a ideia de um conjunto de fatos que todos reconhecem como reais. Estamos perdendo a noção de realidade. Vivemos só com interpretações, que se expandiram a ponto de engolir o mundo real. A direita não quer nem escutar os dados sobre a inclusão social, a esquerda não quer nem ouvir a perda do apelo político do PT à sociedade. Nesta situação, ficamos à mercê de qualquer coisa. Daí que vivamos estes momentos de protestos como perigo, como ameaça, que pode queimar até aqueles que os promovem.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Valor Econômico (26/05/14)

terça-feira, 27 de maio de 2014

O variável humor das ruas (José de Souza Martins)



As manifestações deste maio de 2014 não repetem as de junho de 2013. São outra coisa, ainda que variantes do mesmo estado de inquietação social. Junho de 2013 indicou que a paz do pacto político de 2002 chegava ao fim na brecha que se abria no conformismo dele decorrente. Em maio de 2014 a brecha continua aberta, ocupada por outros personagens. Agora são os sindicalizados, até então submissos aliados do poder, que puxam o cordão do protesto. A ruptura de 2014 mudou a chave dos significados das ocorrências. O cenário é outro, pois inclui dois eventos habitualmente de conciliação, as eleições e a Copa, planejada apoteose de um partido e seu governo, que, no entanto, se realizarão num cenário invadido por novos e hostis coadjuvantes.

Em junho de 2013, o sujeito das manifestações era um sujeito difuso e não institucionalizado. Um sujeito que fazia questão de dizer-se não partidário e recusava bandeiras ideológicas. Sua identidade era a do sem rosto, nas máscaras que participantes usavam. Todos os indícios são de que, apesar das aparências, esse sujeito continua atuando, ainda que nos interstícios das manifestações dos outros. Foi o que se viu na quinta feira, em São Paulo: a manifestação conjunta dos anti-Copa com os sem teto, enquanto ocorria a tumultuada greve dos ônibus e a marcha dos professores municipais. É o primeiro sinal do que Henri Lefebvre chama de coalização dos resíduos, a dos insubmissos que não foram cooptados, os que falam em nome de outra ordenação social.

O sujeito coletivo que aí se manifesta o faz não só quando menos se espera, mas também para reivindicar o que os enquadrados da ordem dominante não esperam nem reivindicam. Fazem-no em nome do que menos tem sentido nas análises políticas convencionais: 20 centavos de aumento na tarifa de ônibus entornaram o caldo das interpretações viciadas nos grandes números e nos grandes acontecimentos. As miudezas próprias da vida cotidiana não se explicam pelo convencionalmente explicável. Elas se propõem como enigma.

Neste maio de 2014, o sujeito dominante das manifestações coletivas tem cara, nome e até endereço. Não usa máscara porque ele próprio é a máscara. São entidades sindicais e corporativas, as das reivindicações previsíveis e compreensíveis. Não raro são cúmplices do que questionam, como os desmandos que culminam na inflação alta, na corrosão dos salários, nas carências que não são as do catálogo do Fome Zero. Em 2013, o povo supostamente manso, diluído no sistema de cooptações que enquadrou a sociedade inteira nas conveniências do poder e do partido que governa, deu o primeiro aviso de que mansidão tem limite. A surpresa é que, em 2014, a forma é outra, mas o recado é o mesmo: a cumplicidade tem o seu dia de basta.

Se há essa convergência entre 2013 e 2014, há uma divergência que dá bem a medida da gravidade do que está ocorrendo: em 2013, a rua falou em favor do povo, de algo que tinha sentido para a maioria do povo; em 2014, a rua fala contra o povo, em nome de grupos restritos e de seus interesses corporativos. A Polícia Militar de Pernambuco abriu as portas da cidade do Recife à baderna e ao saque ao cruzar os braços. Em São Paulo, os trabalhadores dos transportes coletivos puniram quem trabalha e vive nas condições adversas da periferia, da jornada de trabalho duplicada pela agonia do transporte insuficiente. A informação oficial de uma reunião entre gente de uma cooperativa de ônibus e gente do crime organizado, em março, mostra grave mudança no eixo das reivindicações. Esta greve de 2014 deixou de ser greve para se tornar anárquica manifestação de rua, para punir e indiretamente agredir o usuário do transporte. Usaram a reivindicação trabalhista para aterrorizar a população e colocá-la a serviço dos impasses laborais. É um modo de por a sociedade de joelhos, coisa de feitor de senzala, de quem não sabe negociar e até acha que não precisa.

É nesse cenário que caminhamos para os eventos que nos esperam: um deles a Copa do Mundo. As Copas tem sido aqui um momento litúrgico de reafirmação da identidade nacional. Acompanhei nas ruas as Copas do Mundo desde a de 1994. Naquele ano, no centro de São Paulo, onde uma multidão acompanhava os jogos num telão do Anhangabaú, não houve um único crime durante todo o mês do evento. Questionar os absurdos gastos do governo com a Copa é mais do que compreensível num país que alega ter uma multidão de famélicos e resolve os problemas sociais com o suborno do Bolsa Família. Mas questionar, por tabela, o sentido de comunhão que o espírito da Copa encerra é opor-se a um povo que historicamente prefere o encontro ao conflito.

Já em relação às eleições, a coisa é mais complicada. O País para elas se encaminha sem uma proposta de novo pacto político, que as próprias manifestações sugerem, sem um projeto de nação, de que carece. À vista dos acontecimentos destes últimos doze meses ninguém sabe o que vai sair das urnas e, menos ainda, o que nelas vai entrar.

José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, é autor de 'A política do Brasil Lúmpen e místico' (Contexto)
O Estado de S. Paulo

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O jogo entre futebol e eleição (Alberto Almeida)



• O que tem impacto no voto é a avaliação do governo; o resultado da Copa não interfere

• Em pesquisa do Instituto Análise, quase metade dos brasileiros diz que a Copa é boa para o Brasil


Em 1994, o Brasil foi campeão na Copa do Mundo, e o governo venceu as eleições. Só nesse ano os resultado de Copa e eleição foram nessa direção: o governo teria sido beneficiado pela vitória no futebol. Em todas as copas subsequentes, 1998, 2002, 2006 e 2010, quando o Brasil ganhou, o governo perdeu; ou quando o Brasil perdeu; o governo ganhou. A conclusão é simples: o resultado da Copa não influencia o resultado da eleição. Pelo menos quando a Copa não é no Brasil.

A diferença entre sediar o torneio ou não é bem clara e simples: o país-sede precisa gastar recursos públicos para que o evento ocorra, gastar muito com reforma e construção de estádios. Uma parte significativa do eleitorado não apoia este gasto. Pode-se dizer que metade acha que a transferência de recursos públicos de Saúde e Educação para os estádios não deveria ter acontecido.

Em pesquisa nacional do Instituto Análise, 49% dos brasileiros afirmam que a Copa é boa para o Brasil porque traz investimentos e gera empregos, enquanto 46% consideram que ela é ruim para o Brasil porque o dinheiro gasto com os estádios deveria ser usado em Saúde e Educação.

A maioria das pessoas pode vir a pensar que os que acham a Copa ruim para o Brasil votam mais na oposição, enquanto os que acham a Copa boa para o Brasil votam no governo. Não é verdade; isso não acontece: a divisão do eleitorado entre esses dois grupos não tem impacto algum sobre o voto no governo ou na oposição. Na realidade, o que tem impacto no voto é a avaliação do governo: quem avalia ótimo e bom tem alta probabilidade de votar no governo, ao passo que quem avalia ruim e péssimo muito provavelmente votará na oposição.

O resultado da Copa não tem impacto algum sobre a avaliação do governo. O que tem impacto é a situação da economia, a sensação que o eleitor tem acerca de seu poder de compra. Se a inflação de alimentos aumenta, o eleitor sente no bolso e passa a avaliar o governo de uma maneira mais negativa. Se a inflação cai, ocorre o oposto. Se o desemprego cresce, aumenta o medo de perder o emprego, e o eleitor passa a ver o governo de uma maneira mais negativa. Porém, se a oferta de empregos aumenta, o eleitor passa a avaliar o governo de uma forma mais positiva. Diante disso, resultados de jogos de futebol não têm relevância.

Há, porém, um risco para o governo. Uma eliminação precoce da Seleção Brasileira numa Copa em casa, onde metade do eleitorado acha que o gasto com os estádios deveria ter privilegiado Saúde e Segurança Pública, por exemplo, pode servir de combustível para protestos, porque a sensação será a de que gastamos muito para realizar uma festa para os estrangeiros. Isto poderá resultar em protestos, e, a exemplo do que ocorreu em 2013, a avaliação do governo pode vir a piorar e afetar as intenções de voto em Dilma.

Alberto Almeida é cientista político

(O Globo)

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Como as Batalhas do Jogo da Sucessão e as questões da Agenda Pública modificam o “Jeito Capixaba de fazer Política” - Parte II - (José Roberto Bonifácio)


Cientista Político, Professor, Palestrante, Consultor e Pesquisador
Formação pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ)
Docente e Pesquisado

(Parte II)
No tocante à máxima Nº 1 do decálogo mineiro, contrastivamente, o “jeito de fazer política capixaba” a forma e o conteúdo tem pesos distintos para diferentes públicos e situações. De todo modo, o político capixaba alterna entre o comportamento “mineiro” e o comportamento “paulista” neste quesito a depender do jogo que está sendo jogado. Usualmente, nas sucessões abandona-se a delicadeza e a sutileza que caracteriza o periodo “inter-eleitoral” do exercício dos mandatos – aqui prevalece o que os especialistas em Teoria dos Jogos chamam “jogo de segurança mutua”. Aqui somos mais mineiros do que paulistas, nas fases sucessórias tendemos a ser mais paulistas do que mineiros – ainda que este traço tenha prevalecido na historia política do ES durante a Nova República ao menos, haja vista os sucessivos “golpes de convenção partidária” que a pontuam. 

Ao contrário do paulista (máxima Nº 5 do decálogo de Ricci), o capixaba é maquiaveliano. Ainda que a sociedade seja marcadamente machista, o jeito de fazer política capixaba não é masculinizado e os políticos capixabas explicitam – intencionalmente ou não – suas fraquezas ou debilidades, hesitações e vacilações. Hartung foi um mestre neste quesito e Casagrande não faz diferente. Ao menos até agora, momento em que busca escamotear sua propria agressividade e colocar-se como vítima das maquinações do PT e do PSDB. “A arte de governar é a da humildade!” pontifica o próprio governador justificando o apoio recebido. O jeito de fazer política, com a atual sucessão estadual, se masculinizou e assumiu caracteres “paulistas“. Porém tal se deu mais como decorrência de estratégias mal-selecionadas pelos contendores, do que por decisões certeiras e bem-pensadas neste sentido. Como dito em outro artigo, as consequências de tais escolhas esperam logo ali…

Quanto à máxima Nº 6 do decálogo paulista, temos que o jeito político capixaba é pautado não pelo estresse ou ansiedade mas por aquilo que poderíamos chamar de um estado de calmaria calculada, dissimulando o estresse. Mesmo na ausência de todos os traços que caracterizam seu congênere paulista, o político capixaba experimenta uma taxa de estresse, ainda que moderada. Casagrande tem se notabilizado muito neste aspecto, assim como alguns dos seus antecessores. No circulo dos seus  atribui-se lhe uma frase que sintetiza bem esta máxima: “Na politica não ha espaço para mágoas, apenas para indicadores de gestão!” Políticos capixabas habitualmente não exibem olheiras, mas a calva fica bem à mostra na medida em que os anos do mandato (sobretudo o segundo) se passam.

Como visto pelos sucessivos golpes de convenção partidária na historia política estadual, o capixaba não tem a disponibilidade total para a guerra que caracteriza o político paulista (Máxima 4 do decálogo paulista). Pode-se dizer que, enquanto este pode ter seu padrão de interação política tipificado num jogo da galinha, o primeiro caracteriza o seu como um jogo de segurança mútua. Ambos por certo temem a derrota, mas o capixaba teme mais ainda a  humilhação de ser excluído ou marginalizado do poder e suas benesses. Todos querem fazer parte do time vencedor e não tem incentivos para mudá-lo a menos que realidades exógenas (crise internacional, crise nacional etc) interfiram.

Tal circunstancia nos remete à máxima Nº 6 do decálogo mineiro: quanto à política concreta, de certo modo, no ES se dá frequentemente o uso de “operadores políticos“. Contudo, a especificidade com respeito ao jeito mineiro é que o recurso à terceirização dos ataques e das batalhas políticas de um modo ubíquo e persistente. “O governador foi traído!” brada um dos prefeitos que juraram lealdade ao Palácio Anchieta, racionalizando o discurso do governador no sentido de deixar de ser “neutro” em face do projeto presidencial de seu próprio partido. Isto não é um tema inédito na política capixaba. Algo similar ocorreu com partidários de Hartung no limiar da década passada quando execraram o ex-governador José Ignácio Ferreira (PSDB), os ex-prefeitos e vereadores que participaram do golpe que lhe foi aplicado na famosa convenção tucana de 1998. Se nesta semana o numero de apoiadores atingiu 70 prefeitos e uma centena de vereadores aquelas lições históricas longevas continuam vivas no presente. Ou, como bem analisa o jornalista Mauricio Reis de Souza o que se soma à candidatura Casagrande não é apenas o prestigio dos gestores locais mas também seu eventual descrédito ou impopularidade.

No entanto, diferentemente do paulista (máxima Nº 7) o político capixaba é habitualmente afável e polido – salvo raras exceções – mas combina isto com doses variáveis de racionalidade que são atribuíveis às diversas situações e públicos enfrentados. Por motivos que analisaremos mais adiante ansiedade parece ter predominado sobre a racionalidade nas decisões mais recentes de Casagrande de suspender o pedágio da Terceira Ponte e depois de propor emenda constitucional que concede a gratuidade a idosos no transporte coletivo, dentre outras medidas intensivas em benefícios distributivos.

Assim como no jeito mineiro, no jeito capixaba se sabe claramente que “partido político é um detalhe”. Mas na política capixaba nem todos são “amigos”. Ademais, ao contrario do jeito mineiro, no ES a vocalidade é que predomina sobre o silencio. Mas a eloquência do silencio se faz sentir sobretudo nos momentos em que as forças políticas se acham em uma circunstancia de estratégia dominada, ou ainda se joga um jogo de segurança mutua. Costuma-se, ao contrário do jeito mineiro, responder automaticamente aos críticos e detratores, mas apenas sob condições favoráveis.

Ainda comparativamente ao paulista (máxima Nº 8) o político capixaba não é impessoal como ele. Muito pelo contrário: usa com frequência do humor, das piadas e tiradas futebolísticas até. Usa de delicadeza em boa parte dos episódios. Casagrande, ao contrário de Hartung (de estilo mais “paulista”) identifica-se pessoalmente e afetivamente com as populações rurais e direciona boa parte dos seus discursos a este público-alvo (por vezes até exageradamente). Nem sempre a racionalidade opera adequadamente, a memória falha ao passo em que a capacidade de previsão e o uso do tempo nem sempre são otimizados. Este aspecto ficou inalterado no atual jogo sucessório, ainda que nem todos tenham motivos para sorrir neste momento e alguns talvez não tenham no futuro que se avizinha.

Isto nos leva a tecer comparações em termos de representatividade política (máxima Nº 7 do decálogo mineiro). No jeito de fazer política capixaba cultivam-se boas relações com o Catolicismo mas isto mudou drasticamente com o crescimento dos evangélicos (Magno Malta à frente). Maçons são valorizados mas pouco visíveis. Ampliando este quesito de Ricci temos que judeus não tem a significância que tem em São Paulo ou Rio de Janeiro, assim como espíritas. Comparativamente aos congêneres paulista e mineiro o futebol tem apelo muito escasso no jeito de fazer política capixaba pois quase todos torcem para times do RJ, MG ou SP. Não há entre os capixabas ou paulistas quem diga “Eu sou Flamengo na cabeça, Vasco no coração, Botafogo na ponta da língua e Fluminense na ponta dos pés”, na expressão do ex-prefeito carioca Luiz Paulo Conde. Em contrapartida aqui valorizam-se boas relações com a classe empresarial e com órgãos de assessoramento técnico federal e internacional.

 Neste último aspecto, se o político mineiro valoriza a “tradição da cultura do planejamento” enquanto um dos pilares de sua cultura política, também o seu congênere capixaba o faz. Se os mineiros tiveram o governo Milton Campos (1946-1950) , os capixabas tiveram o de Jones dos Santos Neves, inaugurando uma longa era de intervenção governamental na economia regional. A até hoje tal agenda desenvolvimentista é perseguida, com diferentes vetores e ênfases, pelos principais aspirantes ao poder político regional, seja Paulo Hartung (com a “Agenda ES 2035″) ou Renato Casagrande (com os programas de “interiorização do desenvolvimento”). Contudo, a tradição parece bipartida ou polarizada entre os que revalorizam a vocação agrária (como Casagrande e a esquerda) e os que se mostram “industrialistas” convictos (como Hartung e a centro-direita). As campanhas publicitárias e o marketing político-eleitoral exalam estes temas, como ficou bem evidenciado na famosa carta enviada pelo ex-governador a seu partido algumas semanas atrás, a qual incendiou o universo político.

Finalizando o quesito da representatividade tem-se que a mesma alegação de distanciamento dos “grupos organizados” que fez com que Casagrande decidisse suspender o pedágio da Terceira Ponte agora vitima as categorias do funcionalismo público, especialmente o docente. Neste aspecto, pode-se dizer que Paulo Hartung se afigura mais “mineiro” e Casagrande – outrora um engenheiro florestal formado pela Universidade Federal de Viçosa (MG) – se torna mais “paulista”, dada a contundência e a rispidez de suas declarações contra os protestos.

Entretanto, em decorrência do crescimento dos evangélicos o apoio dos católicos voltou a ser valorizado e slogans do tipo “católico vota em católico” se tornaram audíveis.

 Aliás, o quesito “relação entre tradição e modernidades“, o “capixabismo” enquanto equivalente da baianidade, da mineiridade e outras personalidades-tipo do processo político brasileiro, somente começa a ganhar espaço lentamente e como decorrência dos sentimentos de alienação e exclusão anteriormente discorridos. O capixabismo não tem, contudo, a bipartição ou hibridismo que Ricci atribui à mineiridade-mineirice. É amorfo, low profile por opção deliberada.

 Comparativamente à máxima Nº 9 do decálogo político paulista, o político capixaba não corre contra o tempo. Assim como a “compressão de espaço e tempo” não nos afetou inteiramente também  não nos afeta a meta do sucesso, e correspondentemente a pressão da ansiedade de status. O episódio das tarifas de ônibus assim como a do pedágio da Terceira Ponte são reveladoras acerca disto. Casagrande buscou ganhar tempo e a evitar o estresse decorrente de tais situações. Quando decidiu teve sucesso variável nas consequências das duas crises, ainda que as consequências das mesmas não tenham ainda explicitado a relação custo-beneficio claramente. O mesmo fez Hartung a seu turno nas principais questões que enfrentou como demonstrado pelas manifestações estudantis do primeiro e segundo mandatos, o jogo sucessório que redundou no chamado “Abril sangrento” de 2010.

 Por fim, o político capixaba é performático porém num sentido diverso do paulista (máxima Nº 10). Somente faz ou diz em público aquilo que o interessa e esconde todo o restante. O politico capixaba contém seus instintos agressivos e, por mais que goste da vitória mais teme a derrota. E esta ambiguidade de sentimentos o faz ser pouco competitivo ou medíocre, quando deveria ter sido arrojado. Casagrande rompe com este traço paradigmático, ao transformar o anterior jogo de segurança mutua num jogo do galinha, a partir do momento em que Hartung e Coser buscavam operar num dilema do prisioneiro, desmantelando o sistema de garantias mútuas decorrentes do “chapão” vitorioso de 2010. Comparativamente à máxima Nº 2 do decálogo político mineiro de Ricci, no “jeito capixaba de fazer política” o denuncismo é público e o político capixaba não desconfia do denunciante mesmo quando são explícitos seus interesses pessoais. Mas ainda assim o denuncismo somente é selecionado como estratégia em momentos onde se acham presentes incentivos à deserção do campo situacionista. Somos menos “mineiros” e mais “paulistas” neste quesito, ainda que este traço não seja necessariamente perene.

 Voltemos agora ao processo eleitoral deste ano.

Na verdade, neste momento  o que está sendo derrotado cabalmente não é um agente mas um estrutura. Em outras palavras, não é o ex-governador Paulo Hartung quem está sendo vencido mas certos aspectos de um modo de fazer politica, um “jeito capixaba de fazer política” se assim se pode dizer. E este tem as características acima elencadas e discutidas. Contudo, por outro lado, não é Casagrande quem está vencendo, mas um outro tipo de vontade política, com o qual nem sempre suas atitudes e escolhas serão compatíveis ou adaptadas.

Sabe-se que o atual governador tem tendência também a fazer politica de camarilha e isto é um calcanhar de Aquiles. O estilo de  governar do PSB, da chamada “Republica de Castelo”, tem impresso esta marca no governo, é centralizador e hierárquico. Com isto pode-se ir do inferno ao céu e do céu ao inferno em tempo muito curto e sob circunstâncias muito fortuitas.

 Remetendo aos modos de fazer política prevalecentes no país, a aura misteriosa de PH teve no passado a vantagem de fazer as preferências de outros se manifestarem enquanto as dele ficam secretas. Já a aura de Casagrande tem o dom de silenciar e intimidar produzindo uma colisão de opiniões que nem sempre é construtiva para a tomada de decisões coletivas, como se observa pela leitura das manifestações de 2011 e 2013.

 Do enredo narrado até aqui, depreende-se que ambos os métodos de liderança pessoal nem sempre contribuem adequadamente para o bem público, exceto acidentalmente na maioria dos casos. Mas estas observações preliminares e superficiais ainda não nos disseram muito acerca do que se acha realmente em disputa e nem do contexto em que tais candidatos se movem. Esperemos que a descrição e ilustração do que se poderia chamar de decálogo político capixaba e suas mutações recentes o tenha feito.

 Notas:

¹”Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais”.
[...]
Inciso VIII – fazer, na circunscrição do pleito, revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição, a partir do início do prazo estabelecido no art. 7º desta Lei e até a posse dos eleitos”

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm

Foto: capa do blog de José Roberto Bonifácio.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Como as Batalhas do Jogo da Sucessão e as questões da Agenda Pública modificam o “Jeito Capixaba de fazer Política”/Parte I (José Roberto Bonifácio)






Nas últimas semanas, com a batalha da mobilização e da agregação de apoios (inicialmente prefeitos e agora vereadores apoiam maciçamente Casagrande) generaliza-se a sensação de que o ex-governador Paulo Hartung (PMDB) está visivelmente (mas não irremediavelmente) perdendo mas não necessariamente a batalha informacional. No front da articulação com as outras esferas, altas esferas, também ficou indecidida ou incerta a situação de muitas candidaturas. Visando compreender as nuances do discurso político do jogo sucessório e as atitudes prevalecentes em seu curso dialogamos aqui com as tipologias dos modos de fazer política nos estados brasileiros, formuladas tentativamente anos atrás pelo sociólogo Rudá Ricci. O objetivo é confrontarmos os modos e práticas assumidas pela política no Espírito Santo com O jeito paulista de fazer política e O jeito mineiro de fazer política, buscando assim extrair os caracteres que singularizam os principais candidatos à sucessão capixaba em relação aos que se observam em outros estados. Estas observações preliminares e superficiais ainda não nos disseram muito acerca do que se acha realmente em disputa e nem do contexto em que tais candidatos se movem. Esperemos que a descrição e ilustração do que se poderia chamar de decálogo político capixaba e suas mutações recentes o tenha feito.

Como as Batalhas do Jogo da Sucessão e as questões da Agenda Pública modificam o “Jeito Capixaba de fazer Política“. 

Depois do retrospecto de greves e paralisações civis e militares com conteúdo politicamente motivado desta semana nossa mentalidade conspirológica nos faz crer que, pelo teor da charge do jornal A Gazeta, de ontem, estão “plantando” uma ideia no inconsciente da população com vistas a sedimentar uma espécie de pré-campanha para a sucessão estadual.

 Na charge eles querem por algo na conta do governador que não é da agenda e das competências legais dele, como o caso da concessão da BR 101. Contudo, isto tem efeito limitado ou inócuo, o que desautoriza a hipótese de orquestração. Não funciona se o esclarecimento é imediato. Como se alguma homologia houvesse (alem do aspecto institucional, legal) entre este empreendimento e aquele da Rodovia do Sol e Terceira Ponte – esta uma concessão estadual de facto e de direito. Não há o que falar pois são associações mentais distintas e o eleitor mediano sabe disto.

 O episodio se liga a outro aspecto que pode ser interpretado como equivoco seríssimo que Renato Casagrande (PSB) comete:  com a educação.

Neste setor o governador aprofundou um foco gravíssimo de oponentes, tendo em vista a repercussão desta questão dentre formadores de opinião e da sociedade civil e, ao que saibamos da influencia da assessoria sobre suas decisões, ninguém o alerta (ou o mesmo não dá ouvidos. É amplamente sabido que ainda há tempo para reajustes salariais dado que o prazo da LRF começa em junho ainda e a interpretação da lei eleitoral não é unívoca sobre este ponto.¹

Uma oportunidade foi perdida pois mesmo que não concedesse o aumento salarial, que não cortasse o ponto e atendesse as demais reivindicações, Casagrande poderia explicar-se claramente porque não o fez, como Luiz Fernando Pezão (PMDB), sucessor de Cabral no governo do RJ, o fez. Mas isto são jeitos diferentes de governar e de fazer política, mais do que nuances de marketing e estratégia de campanha política. Isto é o que, para responder à questão do titulo, virá a ser analisado aqui.

Nas ultimas semanas, com a batalha da mobilização e da agregação de apoios (inicialmente prefeitos e agora vereadores apoiam maciçamente Casagrande) generaliza-se a sensação de que o ex-governador Paulo Hartung (PMDB) está visivelmente (mas não irremediavelmente) perdendo mas não necessariamente a batalha informacional.  No front da articulação com as outras esferas, altas esferas, também ficou indecidida ou incerta a situação de muitas candidaturas, sejam as eventuais do PSDB (Balestrassi como suporte regional de Aécio Neves) e do PR (Magno Malta, também cogitado como presidenciável, mas cujo partido negocia com o Planalto e clama pela volta de Lula), mas também a do próprio PSB (cujo presidenciável, Eduardo Campos, estagnou nas pesquisas eleitorais). Contudo tais evidências são apenas preliminares e temporárias, nada nos dizendo sobre o que se acha em jogo, sobre a adequação das estratégias e agendas no processo eleitoral em curso.

 Agora precisamos delinear o andamento da batalha das imagens e dos estilos de governança, bem como as agendas dos candidatos e a maneira como constroem suas candidaturas e bases de apoio. Visando compreender as nuances do discurso político do jogo sucessório e as atitudes prevalecentes em seu curso dialogamos aqui com as tipologias dos modos de fazer política nos estados brasileiros, formuladas tentativamente anos atrás pelo sociólogo Rudá Ricci. O objetivo é confrontarmos os modos e práticas assumidas pela política no Espírito Santo com O jeito paulista de fazer política e O jeito mineiro de fazer política, buscando assim extrair os caracteres que singularizam os principais candidatos  à sucessão capixaba em relação aos que se observam em outros estados. E assim caracterizando sua especificidade, detectar mudanças em seu funcionamento e em sua forma ao longo do tempo.

 Utilizando-nos da moderna linguagem da Ciência Política contemporânea (sobretudo a Teoria dos Jogos), visando melhorar o rigor, a exatidão e a amplitude da formula original do autor, vamos então ao que poderíamos considerar como decálogo político capixaba:

Contrastando gravemente com  a máxima Nº 1 do decálogo paulista, o “jeito capixaba de fazer política” tem na palavra “Dependência” a sua palavra central. O capixaba tem auto-estima baixa ou reduzida, dada a reputação dos seus vizinhos baianos (ao norte), mineiros (a oeste) e fluminenses (a sul). População escassa e economia diminuta, herança rural forte e persistente, atraso e desigualdades socioeconomicas gritantes, elevadíssimos índices de violência urbana e criminalidade organizada (quando não gangsterismo puro e simples) são alguns dos fatores que conspiram contra a imagem do capixaba. Este usualmente se comporta de um modo “low profile” onde quer que vá. Ainda assim tem uma fé no futuro como denota o “Trabalha e Confia” no lema de sua bandeira, e o “Em busca de um futuro esperançoso” constante do refrão do hino estadual. E todos, no ambiente da classe política, formadores de opinião, classe média e comunidade empresarial incorporam este otimismo mas o veem frustrar-se reiteradamente pela realidade objetiva da pequenez do estado. Isto se exterioriza em manifestações de ressentimento contra outros estados e contra a União.

Como desdobramento disto  (máxima Nº 2), ao contrário do paulista o político capixaba pratica uma humildade, mais ou menos dissimuladora de suas realidades subjetivas inspiradas pelo otimismo de seus símbolos, suas memórias e biografias. O capixaba é hesitante, ainda que não expresse dubiedade em todos os aspectos e suas falas tem o viés da provisoriedade. Há no discurso político capixaba um paradigma de linearidade que é diverso do paulista e mais se aproxima do praticado nos estados sulistas (RS, SC, mas sem compartilhar da altivez e assertividade destes, já os paranaenses tendem para o jeito paulista), no sentido de alienar-se do restante do Brasil, de vivenciar sentimentos desconfortáveis de não-pertencimento ou não-integração ao restante do país.

Isto nos conduz à máxima Nº 3 do decálogo mineiro, pois no jeito capixaba a política se faz em banquetes, almoços ou jantares, ou seja, em espaços públicos. Mas também em gabinetes e escritórios. Os primeiros são valorizados em momentos onde se clama por grandes mudanças, como o foi no antigo Fórum das Oposições contra o governo José Ignácio Ferreira e mais recentemente no apoio dos prefeitos a Casagrande. Os segundos em momentos onde se  quer congelar o status-quo e repartir espaços ou nichos políticos, como foi o período da chamada “geopolítica”, que durou aproximadamente uma década, até as eleições municipais de 2012. Estamos aqui diante de algo bem próximo da “feudalização territorial e as reservas políticas” e da “territorialização” que caracterizam a experiência cultural mineira no dizer de Ricci, mas em verdade são praticamente universais em qualquer sistema político, assim como o arranjo da “geopolítica” capixaba. Como governador, Paulo Hartung não teve muitas  diferenças em relação a Aécio Neves quanto ao gerenciamento da sua rede de apoiadores regionais e partidários.

 Em termos culturais comparativos com o jeito mineiro, a culpa católica lusitana sabidamente não forja a moral capixaba, ao menos não nas ultimas décadas. A variedade do catolicismo neste aspecto reflete mais a alma italiana ou alemã, haja vista o histórico de migrações ocorrido neste estado. Desta maneira os locais públicos no ES não são motivo de sofrimento e não há nesta cultura o componente introspectivo, incerto ou intimista português na mesma intensidade. O protestantismo, (em sentido mais literal e menos figurado, como quer Ricci para o caso paulista) veio a insinuar-se em nosso ambiente social nos fins do sec. XX e inicio do XXI, mas permanece um tanto quanto marginal com respeito à cultura prevalecente.

 Ainda que a mulher não tenha tido a mesma proeminência na estrutura familiar capixaba que na mineira, compartilhamos com o jeito mineiro de “fazer política” o mesmo traço segundo o qual “A ação predominante é particular, privada, com conversas e acordos reservados e ausência de violência ou agressão direta e pública entre adversários.” A violência ou agressão em nosso caso, cabe ressaltar, somente se tornam públicas e diretas quando não mais há meios ou motivos de mante-la encoberta ou “terceirizada”, como veremos.

 Ainda em termos culturais (máxima Nº 5) o traço familístico faz do político capixaba muito próximo do mineiro: o espirito familiar ou clânico é forte mas não determinante. A lembrar que a primeira campanha eleitoral de Casagrande ao governo estadual, em 1998, explorava traços de sua descendência étnica e familiar. O mesmo se verificou, numa intensidade diversa para Hartung, em 2002. Neste contexto as mulheres apitam pouco, mesmo no âmbito privado. No âmbito público, os laços se desfazem com o tempo e as lutas. Este traço parece permanecer infenso às mudanças dos últimos anos.

 Por fim, ainda tecendo comparações pelo prisma cultural (máxima Nº 3 do decálogo paulista) temos a circunstancia de que o político capixaba cultiva a ética do sucesso em um sentido não ambíguo como o do paulista. Não se vê a si mesmo como seu próprio inimigo mas ainda assim não se pode discernir se está perfeitamente em paz interior. Experimenta a “zona de conforto” tranquilamente, sem auto-recriminações ou vergonha (haja vista o fardo que carregam os herdeiros de oligarquias tradicionais como o senador Ricardo Ferraço, o ex-prefeito Max Mauro Filho e o ex-deputado Luiz Paulo Vellozo Lucas), mas de modo não necessariamente passiva durante todo o tempo. O capixaba gerencia seu tempo da maneira como lhe convém e não se importa com a memória ou a capacidade preditiva no aspecto de sua vida privada – embora se esforce por isto no aspecto da sua vida pública em boa parte das vezes, mas não em todas. Ele não tem o sucesso no seu encalço, como o tem o paulista. É usualmente medíocre, mas busca de todas as formas disfarçar esta persistente debilidade. Em suma, aquilo que os cientistas políticos chamam “ambições progressivas” não parametriza sua carreira política.

 Isto equivale à máxima Nº 4 do decálogo mineiro, pois ao contrário deste, para o politico capixaba tem-se no lazer um ponto muito valorizado, sobretudo pelo binômio turístico-recreativo “praia e montanha“, que faz a fama (e a auto-estima) do estado. Ainda assim não isento de riscos. Mas também os roteiros nacionais e internacionais fazem sucesso. Neste ultimo caso, Rodney Miranda – um recém chegado – lamentou descobrir nas férias passadas.
(* Dado a extensão do artigo de José Roberto Bonifácio, tomei a liberdade de publicá-lo em duas partes. O corte é não chega a ser arbitrário, pois busca o equilíbrio do número de caracteres do texto. Amanhã, sexta, 23/05, estarei publicando o restante do artigo, identificada como Parte II - Roberto Beling).
Fonte: Blog do José Roberto Bonifácio.

O medo como subterfúgio (Marco Aurélio Nogueira)



Teve quem se confundiu, ao assistir à propaganda televisiva do PT que, em tom sombrio, invocou os “fantasmas do passado” para passar um recado eleitoral. Não fosse a coreografia subliminar e a estrela vermelha ao final, a impressão é que se tratava de uma reencarnação do “eu estou com medo” protagonizado por Regina Duarte em 2002.

Foi, no entanto, algo diferente, ainda que da mesma espécie. Em 2002, o alerta era contra o desconhecido. Explorava-se o fato de que não eram nítidas as pretensões do PT. Agora, teme-se o ontem, aquilo que se supõe ser bem conhecido: o tempo do PSDB no governo, o do “neoliberalismo”, com seu cortejo de desgraças: desemprego, miséria, fome, doença, falta de oportunidades. Como “a esperança venceu o medo”e o PT chegou ao governo, não há como pensar em retroceder. É hora de amaldiçoar as “falsas promessas”. A população precisa temer a perda do que conquistou para que, amedrontada, decida defender o governo que a teria beneficiado.

São dois tipos de medo. Pouco realistas, acabam por se equivaler: medo do futuro e medo do passado. Objetivamente falando, não há como retornar aos tempos neoliberais, seja lá o que se entenda por isso. O mundo mudou, as exigências e possibilidades são outras. Não se entra duas vezes no mesmo rio. Assim como não dava, em 2002, para temer um futuro que, como todo futuro, dependia de variáveis que não se podiam prever. Governos são sempre operadores racionais, que modificam as circunstâncias e são modificados por elas. Não são senhores da vida, da história ou do destino das pessoas.

Como em ano de disputa política acirrada o importante é derrotar os adversários, o recurso ao voto defensivo pode ajudar a que se vença uma eleição. Mas não fará com que se governe bem depois, nem transferirá apoios ao vencedor.

Ao realçar o risco que poderia vir com uma volta aos tempos da miséria e da “desesperança”, a tática do medo oculta o que virá pela frente. Pretende “tirar sua poesia do passado” (Marx), aprisionando-se a ele. Combina-se com o silêncio sobre o que se pretende fazer. No lugar da esperança, entra a resistência.

Que garantia o discurso do medo pode nos dar, por exemplo, de que o presente não está grávido de possibilidades nefastas, postergando medidas amargas que terão de ser tomadas à frente? Administrado com vistas ao sucesso eleitoral, o presente é um espaço estagnado: exclui tudo aquilo que possa ter impacto negativo nas urnas.

Isso vale para o PT e para os demais partidos. Se comprimo artificialmente o preço das tarifas de energia e do combustível para não desagradar ao eleitorado, em algum momento do ano seguinte terei de promover reajustes, sob pena de inviabilizar as finanças governamentais e de quebrar as empresas fornecedoras.

A hipótese de um “tarifaço” futuro não é terrorismo eleitoral, mas algo perfeitamente razoável, quem sabe até mesmo provável, vença quem vencer. Pode-se utilizar todo o volume morto do sistema Cantareira para não ter de racionar água em São Paulo no ano das eleições, mas a conta de tal operação será cobrada em algum ponto futuro. Poderá não ser em dinheiro, mas em qualidade da água e, portanto, em saúde.

O discurso do medo é um expediente de baixa política. Um subterfúgio. Traz consigo a exacerbação dos espíritos, a caça a bruxas e fantasmas, algo estranho em partidos progressistas. Bloqueia entendimentos democráticos, como se só houvesse um caminho para o céu. Implica uma vitimização: nunca se teria “batido tanto” num presidente da República, pontificou Lula, acrescentando que isso se deve ao fato de Dilma ser mulher, ser “uma de nós” e, por isso, desagradar às elites. Esqueceu-se de observar que parte ponderável das elites está no mesmo barco do governo, o apoia e defende. Dizer que as “elites” conspiram (incentivadas pela “mídia golpista”) para acabar com as conquistas sociais do governo é fazer vistas grossas para o que há de insuficiência política e de frouxidão reformadora no governo. A culpa seria dos outros. A insatisfação social não passaria de ficção.

Este padrão de discurso impõe ao eleitor um cenário de incerteza e angústia, convidando-o a decidir com base numa reação emotiva e não na deliberação racional, a fugir do experimento democrático, a demonizar a mudança a partir de uma apologia da continuidade.

Não é razoável que se façam ameaças quando se sabe que problemas e tensões haverá pela frente, seja quem for o governo. Fechadas as urnas, algo terá de ser feito com a inflação, a irritação das ruas, a saúde e a educação. Nada disso poderá ocorrer sem sofrimento, sem uma“transição dolorosa” (Guido Mantega). Ao dizer que uma vitória das oposições anunciará o apocalipse, o PT quer sugerir que o segundo governo Dilma será o paraíso na terra.

O discurso petista do medo poderá ser entendido como reação a um discurso semelhante das oposições. Dado o baixo nível reinante, não é uma explicação imprecisa. Empregado no estilo olho por olho, porém, convida o eleitor ao retrocesso mental: leva-o de volta ao obscurantismo, tratando-o como se ele não fosse capaz de avaliar o quadro e fazer escolhas por si só.

Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Publicas e Relações Internacionais de Unesp. Alias / O Estado de S. Paulo, 18 de maio de 2014

terça-feira, 20 de maio de 2014

Pensamento em rede. Net-ativismo e lógica conectiva nas configurações da pós-política (Massimo Di Felice/entrevista)

"Como compreender uma estrutura não estruturada? Uma organização desorganizada? Um movimento que parte da virtualidade das conexões da web em direção às ruas apenas temporariamente, mas que logo se dissolve? Um grupo sem rostos ou líderes, sem propostas estruturadas e, mais do que isso, sem o desejo de participar do teatro político mundial seguindo as mesmas regras dos jogadores veteranos?”
Para Massimo Di Felice, sociólogo e professor da Universidade de São Paulo - USP, a dificuldade em compreender (ou mesmo de aceitar) estas mobilizações construídas em diálogo com tecnologias de conectividade – o chamado Net-ativismo - vem da manutenção de uma lógica da política moderna, predominantemente europeia e ocidental. Para ele, ao considerar este tipo de ação política, devemos compreender outro tipo de ação “cuja qualidade deve remeter a uma ecologia que associa atores humanos e não humanos”.

IHU On-Line – Quais os efeitos pós-políticos da emergência do Net-Ativismo?


Massimo Di Felice – Primeiramente, é importante dizer que o que chamamos de net-ativismo é o resultado de uma prática de protagonismo e ativismo – isto é, de mobilização de pessoas – construída em diálogo com tecnologias de conectividade. Isso significa o agir não só pelos indivíduos, mas por indivíduos conectados a dispositivos de conexão e banco de dados (big data). Há, portanto, a formação de outro tipo de ecologia, que reúne ao mesmo tempo indivíduos, informações, circuitos informativos, banco de dados e territórios (territorialidades).  A primeira coisa a ser sublinhada é que não estamos falando de uma ação política como podemos pensá-la, imaginá-la ou descrevê-la segundo a tradição dos estudos políticos ou das ciências sociais de outra época. Estamos falando de outro tipo de ação, cuja qualidade deve remeter a uma ecologia que associa atores humanos e não humanos.

A partir deste primeiro esclarecimento, o net-ativismo - termo que utilizamos para descrever esse tipo de interação - está se conotando como uma nova prática de protagonismo no mundo inteiro. Não é algo específico de um país ou de outro, mas é toda uma nova forma de participação que está se dando através da interação fértil entre circuito, dispositivo e pessoa. Isso conota um novo tipo de cidadania e, também, um novo tipo de participação, cujas características podemos destacar em alguns elementos:

Primeiro, o anonimato. São movimentos que têm uma grande ênfase em um protagonismo individual. Que não têm líderes ou criadores, mas que tomam forma no decorrer das atividades e, neste interim, passam a assumir bandeiras ou, mais do que bandeiras, indicações específicas que não estavam previstas no começo. Portanto, pelas características de conectividade, são movimentos que não estão vinculados a alguma entidade.

Outro elemento importante é que eles não podem ser inscritos na lógica ideológica da modernidade. Não são de esquerda nem de direita e, portanto, não possuem nem mesmo a ambição da formação de um movimento duradouro institucional, como um partido político ou algo do gênero. São movimentos que se associam e desassociam, isto é, são temporários. Ou conforme Hakim Bey (1), são libertações temporárias de espaços e de pessoas. Expressões de uma forma orgástica, no sentido grego do termo ὄργια (orgia), de conexão de indivíduos em volta de uma temática comum momentânea.

O terceiro elemento é que os movimentos estão fora da lógica, no sentido do pós-político, da arquitetura política do ocidente. Esta, da pólis grega até a modernidade, é baseada em alguns elementos: a eleição de representantes (a democracia representativa) e a disputa pelo poder, com a alternância de governos. Esses movimentos estão fora dessa lógica. Não disputam eleições, não elegem ninguém, mas estão ligados a uma forma de interação tecnológica, que exprime um tipo de ecologia social distinta da tradicional.

Assim, me parece que há alguns elementos muito importantes que nos fazem pensar não somente a necessidade de pensar as categorias políticas, mas também a qualidade da ação e a ecologia do social.

IHU On-Line – Muito se discute sobre a questão pós nas humanidades. Quais características permitem se pensar em uma pós-política? Como ela se insere na pós-modernidade?

Massimo Di Felice – Como sempre, o termo “pós” é ainda muito moderno, não é? Ao darmos ao termo um sentido evolutivo, estaremos ainda na modernidade. Devemos dar a este “pós” um sentido não diacrônico, de superação, mas sim um sentido atópico – isto é, de deslocamento em outra direção, que não é necessariamente um processo evolutivo. Assim, o pós-moderno não é a transformação do moderno, mas outra forma de ler a pós-modernidade naquele período histórico. Da mesma forma, na minha interpretação, o pós-político não é a evolução da democracia ou da política, mas outra forma de pensar o público, a cidadania e as relações.

Esclarecido isso, há vários elementos que dialogam com a pós-modernidade. Em particular, esse desfazer da construção da linguagem moderna europeia das ciências sociais positivistas sobre o mundo. Por exemplo: a distinção sujeito–objeto; pensar a ação do sujeito como uma ação do sujeito racional direcionada ao mundo externo; a distinção entre o sujeito e a técnica; a relação entre sujeito e tecnologia. Todas essas são questões que a pós-modernidade, de certa forma, põe em discussão e obviamente a pós-política está ligada a isso. Mas, em específico, a pós-política pode ser uma forma de pensar o político em uma dimensão de hipercomplexidade. Algo parecido com o que Isabelle Stengers define como cosmopolítica.

A cosmopolítica seria esta forma de pensar o político em um contexto de hipercomplexidade, um contexto de uma rede de redes, no qual se considera o agir não só pelos humanos, mas também o agir do dispositivo, da tecnologia, do banco de dados. Isto é, a construção de uma nova arquitetura do social que inclua, além dos humanos, também os elementos não humanos - entendendo como elemento não humano toda a biosfera. Neste sentido, é a superação do conceito de política moderna que era limitado ao parlamento; um parlamento de pessoas, no qual os indivíduos elegiam alguém que os representava e administrava a cidade ou o Estado-Nação a partir da exigência dos humanos.

Hoje, com as redes e a conectividade, temos a consciência de que existem outros atores, e que nossas ações impactam também na biosfera. E nela não existe a ideia de uma ação direcionada ao externo. Na biosfera não há externalidade e, portanto, nossas ações (políticas, econômicas, de desenvolvimento, de consumo, etc.) têm impacto imediato na biosfera, que, por sua vez, vai impactar na nossa saúde. Percebemos isso em termos de qualidade do ar, aquecimento global, diminuição de biodiversidade e outros.

Esta concepção da ação nesta outra ecologia cosmopolítica e complexa constitui em pensar que o nosso parlamento deveria ser composto não só pelas pessoas, mas pela biodiversidade inteira. Pelos animais, pelas plantas, pelas florestas, pelas matérias-primas. Existe hoje uma percepção que vem desta alta conectividade que os dispositivos tecnológicos estão alcançando, nos dando a percepção clara não só do impacto da nossa ação, mas também da existência de um outro tipo de discussão no qual deve ser inserido o elemento não humano. Neste sentido, seria pensar um tipo de política que não seja a da pólis, que não esteja limitada ao debate das ideias e das opiniões entre os humanos, mas que seja uma política mais complexa, que introduza o não humano no ambiente das decisões e que passe a ter uma visão complexa do significado da ação e do fazer humano.

 IHU On-Line – Ao pensar na constituição de um novo tipo de ecologia, a partir da sinergia e da interação dos diversos actantes, como encarar a relação do ser humano com a técnica? Até que ponto realmente esta dimensão ecossistêmica não permanece sendo opositiva e separatista?
Massimo Di Felice – Esta é uma pergunta muito profunda e de fato é aquela que devemos nos pôr. O que devemos pensar, de fato, é primeiramente a redefinição do conceito do humano. A definição ou a ideia do humano criada pelo ocidente – e quando falo em ocidente, obviamente estou falando de parte do ocidente, daquela que tradicionalmente estudamos, que começa da Grécia antiga até a Modernidade madura –, seja pelo colonialismo, seja pela grande divulgação das filosofias ocidentais, acaba influenciando boa parte do mundo, se não o mundo inteiro. No interior dessa cultura, que obviamente não é homogênea, mas, digamos, na síntese que normalmente se faz sobre a cultura ocidental, a ideia do humano, desde Platão e Sócrates até Kant e a modernidade, é a ideia de uma individualidade ou de uma espécie não somente superior às demais, mas também autopoiética.

O mundo das formas, dos mitos, da narrativa europeia ocidental sobre o humano é o autopoietismo, isto é, a possibilidade de pensar que o humano se transforma no tempo e muda a si mesmo a partir de uma elaboração, seja de ideias ou atividades próprias, internas, sem dependência com o mundo externo. Assim, a tecnologia não teria um papel nesta transformação do humano, o meio ambiente também não. Este é o mito do sujeito autopoiético.

Esta concepção do humano separado, obviamente, cria uma dialética entre o sujeito e o objeto, o sujeito e o mundo, o sujeito e a natureza, o sujeito e a técnica, que são o fundamento da crise não só do pensamento, mas também da crise ecológica contemporânea que condena a espécie humana ao desaparecimento. Não é apenas o modelo econômico que determina o nosso impacto ambiental, mas um problema filosófico mais profundo, baseado nesta separação entre humano e mundo; nesta narrativa que pensa o humano como uma espécie separada do resto da realidade.

Para, portanto, pensar uma dimensão ecossistêmica ou ecológica distinta, devemos compor outras palavras. Devemos pensar o humano de outra maneira. A etimologia da palavra humano vem de húmus, que em latim significa “fertilidade”. A palavra é utilizada na biologia para descrever os resíduos do solo que o tornam fértil. Se pensarmos o humano a partir do húmus, já nos abrimos para uma perspectiva menos opositiva. Mas, de fato, a perspectiva ecológica pode ser ainda positiva se pensarmos apenas em termos agregativos, como pensa Latour, por exemplo, em que atores diferentes se agregam e formam uma ecologia, mas em que cada um continua mantendo a própria identidade separada. Os animais de um lado, vegetais de outro, bem como os minerais, o humano, a tecnologia, etc. Aí ainda estaremos em uma lógica agregativa que não supera esta distinção opositiva.

A superação desta distinção pressupõe, primeiro, uma nova etimologia, uma nova filosofia e uma nova lógica que eu defino como “lógica conectiva”. Esta é de uma complexidade em que cada elemento não existe em si, mas encontra a própria dimensão a partir da conexão com os demais. Assim, o humano se torna humano a partir de sua conexão com a tecnologia, com a biodiversidade e com o ambiente que o forma e o torna, em determinado período, uma determinada espécie ou determinada entidade. Esta entidade, obviamente, está sujeita continuamente a transformações e a novos estatutos de sua própria espécie, a partir de outros tipos de conectividade.

Nessa perspectiva, podemos começar a pensar um tipo de complexidade que não reduz o indivíduo, não dilui a especificidade em uma complexidade anônima, nem é, ao mesmo tempo, um agregador de individualidades. É uma forma que está na lógica da conectividade que encontra o surgimento de especificidades a partir da conexão de vários elementos. Algo próximo do que Heidegger define como ontologia relacional. Quando ele define a ontologia relacional, pensa o ser com a interação entre quatro elementos: o céu, a terra, os divinos e os mortais, onde cada elemento é incutido no ser e encontra nele sua própria definição.

Penso que esta é uma grande questão, fundamental para passarmos de um tipo de humanidade poluidora, antiecológica, opressora e negativa para outro tipo de humanidade, conectiva e, portanto, mais inteligente.

IHU On-Line – Ao pensar a técnica como uma ação humana, que com sua naturalização faz com que o ser humano passe a servi-la, e não o contrário, a mediação das relações humanas e políticas pela técnica esvazia ou supera estas mesmas relações?

Massimo Di Felice – Não sei se esvaziar ou superar é correto. A mediação humana sempre foi tecnológica. Isto é, a especificidade da interação do ser humano com o mundo sempre se deu através da técnica, dando a esta um significado mais amplo que o instrumental. A escrita é uma técnica, o alfabeto fonético é uma tecnologia de armazenamento e transmissão de informações.

A técnica não é nem apenas uma criação humana, nem algo externo ao humano. A concepção que devemos utilizar ao pensar a técnica deve ser conectiva. Ou seja, o humano não existe sem a técnica, e esta, ao mesmo tempo, oferece ao humano a possibilidade de exercer a sua humanidade. Neste sentido, a técnica não é externa ao humano, assim como a biodiversidade também não é. Então voltamos à necessidade de superar o conceito tanto de humano quanto de técnica. Afinal, ao pensar em “humano” e “técnica”, estamos pensando em duas realidades, duas entidades separadas. Que é como a filosofia pensou. Hoje devemos pensar em termos que associem o que a filosofia separou.

Michel Puech fala de homo sapiens tecnologicus que, para ele, seria um novo tipo de espécie. Uma espécie distinta do homo sapiens, pois se desenvolve e se transforma em relação com a técnica, ele fala de coevolução entre humano e tecnologia. Heidegger dizia que a essência do humano é a técnica, mas também se pode dizer, de maneira não contraditória, que a essência da técnica é o humano.

Isso é muito visível em nossa relação com a tecnologia digital. Um dispositivo não produz nada a menos que nos conectemos a ele. Não somente isso, mas a qualidade da conexão depende de nós e do conjunto de disponibilidades que o dispositivo oferece. A complexidade da relação entre o humano e a técnica não pode ser manifestada de forma dualista. No ensaio sobre a técnica, Heidegger escreve isso muito bem. Diz que, se continuarmos a pensar a relação com a técnica em termos dualistas e opositivos, não teremos outra possibilidade: ou é o humano que domina a técnica ou é a técnica que domina o humano. Isto é, a relação sujeito–objeto leva a uma lógica de dominação.

Nós devemos substituir esta lógica por uma lógica conectiva, ao pensar que nem a técnica é externa ao humano e tampouco o humano é externo à técnica. Portanto, cada um encontra na interação com o “outro”, que não é outro, a sua própria essência. Devemos pensar um conceito de humano ecológico, em que o humano é composto por elementos biológicos, naturais (proteínas, células, etc.) e elementos também minerais. Se sairmos da ideia do sujeito e começarmos a pensar como uma rede, veremos que a tecnologia faz parte do nosso corpo, de nossa especificidade. E isso é o que nos torna humanos.

Falávamos da leitura. Ela é uma tecnologia, mas como poderíamos pensar nosso conhecimento sem a leitura? A leitura é um fundamento tecnológico que contribui para a criação de nossa inteligência. Então, nossa inteligência não é algo que está apenas em nosso cérebro, mas algo que deve ser exercitado e treinado através de várias funções, entre elas a leitura. O que McLuhan chamava de “homem tipográfico” é o homem que passa a conhecer e interagir com o mundo através da tecnologia – no caso, a mídia livro. Hoje estamos agregando, ao lado desta tecnologia, a criatura cognitiva, que nos dá a possibilidade de construir também outros tipos de conhecimentos inteligentes.

IHU On-Line – As manifestações do ano passado foram um marco na historiografia brasileira, articulando-se mundialmente com um espírito de insatisfação que percorre sociedades de todo o mundo e denotando uma crise geral nas instituições (governos, bancos, mídia, etc.). Pode-se entender que a nova ecologia que vem se estabelecendo, ao construir uma nova relação de proximidade e pluralidade de voz, “dessacraliza” as instituições a partir de uma ótica mais cínica e iconoclasta? Ou são outros os motivos que levam a esta visão mais crítica?

Massimo Di Felice – Com certeza dessacraliza, e isso dando ao termo “sagrado” um sentido não etimológico. Obviamente pode ser visto como uma operação mais cínica, mas também como uma operação emancipadora, ou seja, da população se livrar de instituições ineficientes, que gastam dinheiro público e oferecem serviço escasso. Nesse sentido, no caso do Estado, hoje teríamos tecnologias de administração das coisas públicas melhores que o Estado moderno, com a organização em rede, com o acesso de informações, com a possibilidade de disseminação de informações, possibilitando uma forma de administração mais aberta e colaborativa e, sobretudo, mais inteligente e eficaz. Deste ponto de vista, esses movimentos estão de fato dessacralizando essas instituições.

Por outro lado, é também uma exigência tecnológica, que faz tornar obsoleta ou inadequada a possibilidade ou a limitação que a arquitetura da democracia europeia ocidental produzia, que é a lógica da representatividade a qual limita a participação do cidadão à eleição a cada quatro anos. Nós, hoje, temos tecnologia que nos permite não somente opinar em tempo real a custo zero, mas que possibilitaria até mesmo fazer eleições todos os dias. Ou, pelo menos, debater questões de seu interesse todos os dias por meio de tecnologias de conectividade e pela possibilidade de administrar uma grande quantidade de informações, através do banco de dados e computadores, acesso a todas as informações. É o que se chama de sociedade dos amadores, nós não precisamos de especialistas para tomar as decisões por nós. A população é muito bem informada, pode se tornar ainda mais informada com a tecnologia e as redes de conhecimento.

Existem redes de cidadãos que estão há muito tempo se organizando, produzindo conhecimento para resolver problemas. Talvez, nesse sentido, a mediação política se tornou obsoleta por vários motivos. Primeiro porque cria uma forma de participação limitada, com a possibilidade de exercer sua cidadania de 4 em 4 anos. Segundo porque, como se revela na maioria dos casos, esses eleitos são incompetentes. Ou ao menos têm uma inteligência muito inferior à inteligência coletiva, que pode ser agregada à tecnologia em rede. Então, por que devemos delegar a alguém escolher para nós?

Outra grande crítica à instituição está no fato de que a inteligência coletiva é mais eficaz que a soma das inteligências individuais. O mundo não quer mais eleger alguém que escolha por ele, mas quer participar da escolha, porque agregar inteligência humana e artificial é muito mais eficiente do que um grupo eleito para decidir por nós.

IHU On-Line – Frente à iminência de um grande evento como a Copa do Mundo, que mais do que nunca vem sendo questionado devido às notícias constantes de ingerência e promiscuidade com os gastos públicos no superfaturamento de obras inconclusas, você acredita que poderemos ver uma nova articulação de grupos sociais igualmente representativos como os de junho passado?  

Massimo Di Felice – Tomara, mas agora há um elemento muito triste que deve ser destacado. Houve uma repressão violentíssima da polícia, uma barbárie que levou a torturas, espancamentos... Falo isso por experiência até como professor, tenho alunos que passaram por isso. Há um clima, de fato, ameaçador. Outro dia houve uma manifestação em São Paulo que deveria fazer um trajeto até o estádio novo do Corinthians – um estádio bastante polêmico, não apenas na questão do desvio do dinheiro público, mas para as várias mortes e acidentes de trabalhadores que perderam a vida durante a construção – e a manifestação não pôde ir adiante, pois tinham avisado a torcida do Corinthians, que estava fora do estádio esperando os manifestantes para o enfrentamento.

Estava neste nível de organização da repressão muito articulado, estruturado e que, de fato, tirou essa espontaneidade dos movimentos e transformou a atividade de rua em conflito violento. Uma verdadeira guerra. A possibilidade de ir para rua se manifestar durante o jogo da copa do mundo significa enfrentar o exército e, portanto, ir numa expectativa de guerrilha. Aí não seria uma manifestação de rua de protesto, mas uma ação de guerra, o enfrentamento ao exército. E isso foi determinado pela escolha política do governo, que decidiu enfrentar e reprimir esses movimentos. Nesse sentido, espero manifestações em rede e presenciais, mas penso, sobretudo, qual será o impacto disso para este desvio que os movimentos foram levados a ter por esta repressão brutal.

IHU On-Line – Ao pensar a “tomada coletiva da palavra”, nos termos de Vattimo, para vislumbrar a superação dos mediadores tradicionais, quais os perigos da remediação dos conteúdos para espalhar palavras de intolerância ou estímulo à violência (como as páginas e grupos de “justiceiros” no Facebook)?

Massimo Di Felice – A realidade humana é complexa e as redes exprimem essa complexidade da totalidade humana, e obviamente podem surgir mediadores que levam ou incitam a comportamentos violentos e agressivos. Isso é uma possibilidade, e, no caso que você citou, levou à morte de uma pessoa e pode levar a coisas parecidas. Mas ao mesmo tempo, como é próprio da condição humana, a rede pode oferecer formas de difusão de conhecimento, acesso às informações e, consequentemente, a possibilidade de o indivíduo se emancipar das próprias tendências negativas através do conhecimento, ter capacidade de encarar de uma forma mais inteligente as problemáticas sociais. Não é possível determinar a identidade da rede, ela se torna no que os diversos actantes conectados vão transformá-la. Não podemos culpar a tecnologia do Facebook pelo linchamento. Embora ela tenha colaborado, isso não é uma causa e efeito. Se observarmos redes de criminosos, eles a utilizarão para realizar crimes; em redes de estudantes, as utilizarão para fazer pesquisa.

A rede é conectiva e, portanto, não é a solução dos problemas da humanidade, mas é uma possibilidade a mais de criar uma inteligência coletiva, como chama Pierre Levi, ou uma inteligência complexa que integra, além dos humanos, os outros elementos que compõem a biodiversidade; portanto, possibilita uma forma de interação, escolha, decisão complexa, levando em conta muito mais variáveis que a política e a forma das escolas tradicionais que o homem moderno ocidental desenvolveu.

IHU On-Line – Deseja acrescentar alguma coisa?

Massimo Di Felice – Quero acrescentar que, ao se falar em net-ativismo e pós-político, falamos de uma outra ecologia do social e, consequentemente, de uma transformação muito profunda, não apenas da esfera do político, mas da esfera do social e da mesma esfera do humano em relação à tecnologia. Portanto, devemos ter a consciência de que as transformações que estamos enfrentando em nossa contemporaneidade são, de um lado, muito difíceis, porque pressupõem uma transformação filosófica profunda. E, por isso mesmo, são muito atrativas, porque nos colocam numa condição bastante desconfortável de um lado e bastante ambiciosa do outro, fazendo-nos repensar categorias e conceitos consolidados desde muitos séculos.

Notas:

1.- Hakim Bey: É o pseudônimo de Peter Lamborn Wilson historiador, escritor e poeta, pesquisador do Sufismo bem como da organização social dos Piratas do século XVII, teórico libertário cujos escritos causaram grande impacto no movimento anarquista das últimas décadas do século XX e início do século XXI. Seu livro T.A.Z.: Zona Autônoma Temporária escrito em 1985 foi traduzido para vários idiomas sendo lido no mundo todo. Nele, a partir de estudos históricos sobre as utopias piratas, descreve a criação e propagação de espaços autônomos temporários como tática de resistência e esvaziamento do poder. (Nota da IHU On-Line)

Massimo Di Felice é graduado em Sociologia pela Università degli Studi La Sapienza, de Roma, possui doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP e pós-doutorado em Sociologia pela Universidade Paris Descartes V, Sorbonne. Professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, coordena o Centro de Pesquisa Atopos (ECA/USP), que desenvolve estudos sobre as transformações sociais promovidas pelo advento das novas tecnologias comunicativas digitais.
É professor visitante da Libera Università di Lingue e Comunicazione (IULM) de Milão e autor de ensaios e artigos editados na Itália em revistas acadêmicas tais como La Critica Sociológica e Agalma.
No Brasil, coordena a coleção Era Digital, na qual é organizador das obras Do público para as redes (2008) e Pós-humanismo (2010), e a coleção Atopos (Editora Annablume), na qual publicou os livros Paisagens pós-urbanas: O fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (2009) e Redes digitais e sustentabilidade: As relações com o meio ambiente na época das redes (São Paulo: Annablume, 2012).

(Por Andriolli Costa)