Neopopulismo dá espaço a uma opção 'sonhática' mais razoável
Mônica Manir
Indeferida, Marina Silva enganchou sua rede no PSB. E agora estão todos a
especular se Eduardo Campos continua no topo da chapa ou se entregará a
vaga de presidenciável à nova parceira. Na cabeceira da mesa da sala,
Carlos Guilherme Mota sorve o café feito por ele. Diz que parece um café
turco, porque consegue ver o pó no fundo. Mas não parece preocupado em
ler a sina de uma aliança que chacoalhou o cenário político brasileiro.
Está mais ansioso por perfilar os personagens em cena e levantar uniões
que pouco contribuíram para modernizar a sociedade brasileira. "Vivemos
um clima de barbárie, com as categorias sociais embrulhadas num vazio
mental."
No verso de uma folha, o historiador tica o que deseja pontuar:
grã-burguesia deseducada, partidos sem ideologia,
nacional-desenvolvimentismo precário, crise do regime democrático. Traça
setas, liga uma coisa a outra, num raciocínio enciclopédico sapecado de
referências. No verso do papel, ele circula um trecho da quarta edição
de História do Brasil - Uma Interpretação, que assina com a mulher,
Adriana Lopez. A nova versão, atualizada, sai em julho pela Editora 34.
Carlos Guilherme quase entrega o unhappy end. Tem a ver com o fim de um
ciclo histórico após a visita de Lula a Maluf durante a campanha de
Fernando Haddad para a Prefeitura de São Paulo, algo envolvendo
"república de coalizões estapafúrdias". Depois daquele encontro, escreve
ele, ficaram para trás as esperanças de efetiva e sólida renovação
político-social. Já sobre o enlace Marina-Campos, o historiador quer
abrir um capítulo. Na entrevista a seguir, feita no seu apartamento na
Oscar Freire, "nossa 5ª Avenida com casa grande e senzala", ele arrisca
os primeiros parágrafos.
A aliança de Marina Silva com Eduardo Campos foi chamada de ‘golpe de mestre’. O senhor concorda com essa avaliação?
CARLOS GUILHERME MOTA - Marina não me parece ter uma biografia
ligada a golpes. Não faz parte do perfil e da trajetória dela. E não
estou seguro se caberia na de Eduardo Campos, porque ele tem uma
genealogia respeitável. Ninguém é neto de Miguel Arraes impunemente,
assim como ninguém é neto de Tancredo Neves impunemente. Então
respeite-se a visão avoenga da história. No caso da Marina, ela foi
braço direito, cria, amiga e interlocutora de Chico Mendes. Ou seja,
descarto essa hipótese do golpe.
Como chamaríamos então essa aproximação surpreendente?
CARLOS GUILHERME MOTA - Vivemos e assistimos à crise de um regime
em que as parcerias fazem parte do jogo político. Elas se dão num
patamar inesperado, mas são, do ponto de vista histórico, bastante
apreciáveis. Marina tem a tradição de movimentar e pensar as classes
populares. Campos esboça contornos de projeto nacional - e que não vem
dele apenas. Ele está num Estado importante, fala da principal capital
do Nordeste, cuja tradição histórica vem de 1817, 1818, 1824, 1848,
depois a Revolução de 30, depois todo o movimento das ligas camponesas.
Vem de um clima histórico-cultural que, além de Jarbas Vasconcelos,
contou com seu avô, mas também com Gregório Bezerra. Enfim, ele sabe que
tem história embaixo dele, com a qual não precisa concordar nem a ela
aderir. E ele também tem interlocutores, alguns deles pernambucanos de
muito valor, como Roberto Freire, afora sua circulação bem razoável no
meio empresarial, inclusive em São Paulo.
Mas quem vai encabeçar a chapa para presidente no ano que vem? Um aceitaria o outro encabeçando?
CARLOS GUILHERME MOTA - Falar em rixa nessa altura, uma semana
depois do anúncio da aliança, acho que fica um pouco absurdo. Eles estão
numa aposta. O que vai acontecer, nenhum dos dois sabe, nem nós. Eu
poderia ter imaginado dificuldades no relacionamento entre Collor e
Itamar, por exemplo. Ou entre Serra e Índio da Costa. Quando falamos de
junções, acho que o Serra fez um programa de índio de fato, e depois
fica perguntando por que não deu certo. O Tancredo com o Sarney, outra
junção estranha. O Lula procurando o Maluf na casa de Maluf, não o Maluf
na casa de Lula. E Fernando Henrique com o Marco Maciel, um professor
de direito civil com certa compostura, que não se exporia a ser vaiado
em Frankfurt, como o foi o grande poeta Michel Temer. Mas Marco Maciel
tinha como contrapeso o ACM. Então, do que estamos falando exatamente?
Marina e Campos são pessoas dignas. Do que se pode verificar, não
existem manchas nas respectivas biografias. Já o caso do Caiado mostra
que há choques anafiláticos, e nós vamos assistir a muitos outros assim.
Mas não entre Marina e Campos, possivelmente.
A opção de Marina foi essencialmente pragmática?
CARLOS GUILHERME MOTA - Mais que pragmática: maquiavélica. E como
fugir de um maquiavelismo tendo em vista o que tem acontecido com os
outros partidos, com exceção do PSOL, daqueles mais à esquerda,
inclusive de certos militantes do PT que querem acabar com a política de
balcão? Nesse quadro, não estamos falando de política de balcão, nem de
uma terceira via. Uma terceira via mais nítida seria ela se juntar ao
PPS. Mas seguramente ela fez essa análise com muita mais cuidado do que
imaginamos.
Acha que a aparente fragilidade dela, de alguma forma, chama votos?
CARLOS GUILHERME MOTA - O que temo na Marina é sua saúde
messiânica, sobretudo quando ela olha para o céu. Ao mesmo tempo,
durante a campanha em que obteve 20 milhões de votos, mais de uma vez
ela disse que a questão religiosa estava à parte. Marina vai ter de se
mostrar pragmática nisso e em outras questões, como as células-tronco, o
aborto, porque os marqueteiros do outro lado vão provocá-la.
Se os marqueteiros a provocarem, seus clientes também serão provocados...
CARLOS GUILHERME MOTA - Aí todos estarão no fio da navalha. Esse,
de fato, não seria um problema da Marina apenas. De qualquer forma, não
seria muito pedir afirmação de laicidade do PSB.
Falando em marqueteiros, João Santana aposta na reeleição de Dilma já
no primeiro turno devido à ‘antropofagia dos anões’. O que acha dessa
previsão?
CARLOS GUILHERME MOTA - Em primeiro lugar, o João Santana deve
entender dos anões porque esteve, ombro a ombro, com os aloprados. Em
segundo, não consigo imaginá-lo como estadista à altura para estar no
Aeroporto de Congonhas, num dia de crise, com Lula e Dilma pensando a
República. Não vejo nele título para falar em nome da República, nem
nele nem em nenhum marqueteiro. Numa sociedade em que há manipulação de
massas, em que se tira dos documentos a ideia de luta de classes, o que é
isso? É conversa de marqueteiro. Ficamos preocupados com a espionagem, e
não com essa atuação nociva? Uma cultura que vive dos marqueteiros é
uma cultura falida nas instituições principais, que são as escolas, os
hospitais, as universidades, a Justiça.
Aécio Neves se apresentou como líder da oposição no Brasil. Ele o é, de fato?
CARLOS GUILHERME MOTA - Para ter uma liderança, precisa ter uma
voz nacional bem formada, e ele tem alguma. Mas precisaria ter mais
estrada. E precisaria ter um quadro de interlocutores em várias áreas.
Não se ouve falar de equipe, senão dele sozinho, um pouco borboleteando
por aí. E mesmo o legado da herança de Tancredo não é bem usado.
Ele não tem um bom marketing?
CARLOS GUILHERME MOTA - Seguramente, não tem. Mas acho que não é
questão de marketing. Falta um interlocutor. O Juscelino, por exemplo,
tinha o Pedro Nava, o Santiago Dantas, o Eduardo Portella, o Darcy
Ribeiro, o Celso Furtado, uma constelação para pensar o Brasil. Com quem
o Aécio de fato conversa?
Aécio quer a Presidência?
CARLOS GUILHERME MOTA - É uma pergunta tão profunda que só a namorada dele, agora esposa, pode responder. Eu não sei.
A política brasileira, no geral, é mais pragmática que programática?
CARLOS GUILHERME MOTA - Alguns conceitos das revoluções liberais,
e mesmo socialistas, não atravessarão o Atlântico, já dizia Raimundo
Faoro. Elas não chegarão ao Brasil. O liberalismo sempre foi uma ideia
fora do lugar, como mostrou o Roberto Schwarz. Os socialismos que aqui
chegaram, chegaram pela via stalinista em algum canto, depois
superficialmente no pós-68 e não se adensaram em comunidades. O próprio
PT hoje é um partido sem ideologia, como diz o Lincoln Secco,
historiador petista muito competente e muito sério, militante inclusive.
O PT perdeu a ideologia ou tem outra hoje?
CARLOS GUILHERME MOTA - É a ideologia do neopopulismo, do
nacional-desenvolvimentismo de araque. O projeto
nacional-desenvolvimentista implica um plano em que o eixo econômico
esteja bem definido. Não me parece que esteja definido, com um projeto
histórico-cultural a ele associado e um projeto social que saia das
prebendas e do assistencialismo.
E os demais partidos?
CARLOS GUILHERME MOTA - Os partidos já foram mais ideológicos e
com melhor nível. Quando se discutia nacionalismo, havia nacionalismo de
direita e de esquerda. Ou mesmo o trabalhismo, que não foi essa água de
barrela em que se transformou o PT. Mas eu gostaria de colocar isso na
moldura maior do esgotamento, da mesmice e do oportunismo de dois
partidos: o PT e o PSDB. Eles polarizaram e polarizam para desmobilizar.
O PSDB já veio desmobilizado porque conseguiu fazer as jogadas erradas
nas horas erradas. E, com isso, o Fernando Henrique ficou falando
sozinho. Você pode encontrar um Álvaro Dias no Paraná, mais três ou
quatro que preciso fazer um esforço para lembrar, mas o esvaziamento é
algo mortal para um partido. De outro lado tem o PT, de um autoritarismo
desmobilizador, como diria o Michel Debrun, em cima dessa palavra
horrenda que é o carisma. Se Lula sair candidato, Dilma dificilmente
aguenta. E talvez o maior baque dessa aliança entre Marina e Campos
tenha sido para Lula. Eu posso imaginar, no seu ABC, como deve ter sido
descobrir que não era o grão-senhor do jogo.
Há carismas positivos?
CARLOS GUILHERME MOTA - Qualquer carisma é negativo para quem
quer montar uma sociedade civil moderna e nova. Inclusive não posso ser
simpático ao carisma da Marina, dentro da minha lógica. A sociedade
precisa de líderes civis que se imponham pela formação, pela
competência, pela capacidade de ver o conjunto, no sentido de aprofundar
as relações democráticas. O carisma infantiliza. Pode-se dizer que o
Bill Clinton tinha carisma? Não, era uma pessoa muito bem formada. O
carisma do Obama tende a zero. É só um homem bem formado, casado com uma
mulher bem formada. Merkel apenas sabe o que quer.
Que sociedade civil é a brasileira?
CARLOS GUILHERME MOTA - É uma cidadania machucada, com uma
grã-burguesia deseducada. Em outros países, com aqueles financiamentos
de universidades, de museus, de hospitais, a alta burguesia dá
referência civilizadora. Não fica andando nesses Pajeros de vidro preto
jogando latinhas de Coca na rua. Vivemos um clima de barbárie, com as
categorias sociais embrulhadas, sem projetos sociais políticos e sociais
claros. Não é uma sociedade sem terra, sem teto. É sem história e
facilmente paternalizada. Há outra coisa grave nesse quadro: o vazio
mental. Ele pode ser preenchido com qualquer coisa. Não por acaso se dá o
avanço dos pentecostais. Onde estão as universidades formando quadros
para a rede de escolas públicas? Estão no silêncio, no corporativismo,
na ascensão da classe C de certa época que virou classe B nos quadros
universitários. "Ganhei, subi, acomodei." Há uma nova classe média
satisfeita na universidade, apesar dos salários não tão confortáveis. O
ganho é em status, um statusinho.
As manifestações de rua estão mais para sonháticas ou para pragmáticas?
CARLOS GUILHERME MOTA - Eu traduziria "sonhar" por construir
novas utopias. É preciso procurar novas utopias, porque sem isso nenhuma
sociedade anda. Mas as manifestações de rua mostram que nossos
conceitos não têm dado conta de explicar o que está acontecendo. Dizer
que a água transbordou do leito do rio é precário. Tirando a espuma, o
que tem embaixo é saúde, educação, transporte, segurança e ética.
Tivemos o desfecho cambaio do mensalão e um propinoduto do PSDB não
explicado até agora. Como a opinião pública pode reagir positivamente?
Em outros países, em outros momentos, os advogados foram mobilizados
para grandes causas. Na Revolução Francesa, nas revoluções inglesas do
século 17, eles chegavam para malhar o regime antigo e construir um
novo. Na época do Roosevelt, na crise de 29, os advogados criaram uma
legislação nova. Aqui os advogados, cada vez que vêm, é para reforçar
uma visão de D. João IV no século 17: "Nós devemos aprimorar a arte de
protelar". No mundo luso-brasileiro, temos a tradição de nunca resolver a
questão. E mais, dizia ele: "Governar é nomear". Enfim, não estamos bem
na fotografia.
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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