Há quem condene o personalismo na política - o fato de que certos
líderes são tão fortes, alguns até carismáticos, que ofuscam seus
partidos. A grande agremiação brasileira que já nasceu declarando guerra
ao personalismo é o PSDB. Dos partidos atuais, foi também o mais
preocupado com as instituições, proclamando apoiar o parlamentarismo -
embora nada tenha feito por este quando ocupou a Presidência da
República. Toda teoria tem dificuldades na prática. Mas faz parte da
lógica política, mesmo parlamentarista, ter líderes poderosos. Um
partido não disputa a hegemonia se não tiver grandes nomes. Isso, todos
requerem. Só que isso não significa personalizar a política, coisa que o
PSDB não faz nem fez.
Desde a democratização de 1985, destacaram-se quatro líderes
personalistas entre nós. Um deles foi um problema, Fernando Collor: seu
apelo pessoal ao eleitorado não tinha sustentação partidária ou social.
Ganhou a Presidência graças ao vazio de alternativas. Logo depois de seu
impeachment, uma emenda constitucional extinguiu a eleição solteira
para presidente da República, praticamente eliminando os riscos de
elegermos um candidato sem bases sólidas.
Mas também tivemos Leonel Brizola, Lula e Marina. Dos grandes líderes
pré-1964, foi Brizola o que mais se destacou e mais tempo durou após o
longo interlúdio ditatorial. Seus desafetos o chamavam, injustamente, de
caudilho. Tinha carisma. Mas sempre fortaleceu o partido em que
estivesse. Liderou a ala esquerda do Partido Trabalhista Brasileiro,
legenda que teria retomado na década de 1980, não fossem as manipulações
do Palácio do Planalto. Fundou, então, o Partido Democrático
Trabalhista, que dirigiu até morrer.
Marina está mais ligada a valores do que a partidos
A mesma lealdade a valores marca Lula e Marina. Ele sempre foi do PT e o
PT sempre foi ele. Mas Lula e o partido se estressaram, entre 1998 e
2002 - sua última derrota e sua primeira vitória. A esquerda do PT
aprovava propostas radicais, que, na prática, barravam sua rota para a
Presidência. Pois votos, quem tinha era Lula. Assim, para concorrer em
2002, exigiu uma guinada pragmática. Não queria mais marcar posição.
Queria vencer, mudar o País, mesmo que menos do que o ideal.
Mas ficou uma marca no PT, que um dia ele terá de enfrentar. O partido
que surgiu em 1982, como o mais moderno de todos, nunca se emancipou de
seu líder. Lula não é autoritário. Mas é quem escolhe os candidatos
petistas aos principais cargos em disputa. Indicou Dilma para a
Presidência, Haddad para a prefeitura mais rica do país, Padilha para o
Estado mais populoso. Tem dado certo, mas à custa de não haver escolha
dentro do partido. O PT ganha a eleição, mas não por um processo interno
e sim por uma decisão externa à militância. A vantagem é que Lula
acerta. A desvantagem é que quem acerta é Lula.
Cedo ou tarde, o PT precisará amadurecer. Muito se tem dito que o PSDB
precisa renovar suas lideranças, que está na hora de ter nomes novos,
que essa é uma transição difícil. É verdade. Mas o PT pode estar fadado a
viver um momento pior. Perdeu a cultura do debate interno. Terceirizou
em Lula suas decisões. Isso constitui um risco. Basta que perca uma
eleição decisiva. Sua travessia do deserto pode ser penosa.
Mas, para completar o percurso pelos líderes personalistas, Marina Silva
é a mais recente. Sem dúvida, ela é modesta; não tem nenhum traço de
arrogância; mas seus votos e decisões, criando o Rede ou se aliando ao
PSB, são dela e não do grupo. Também aqui, há uma vantagem a curto prazo
e um problema a médio. Marina traz votos, porém não os consolida. Não é
óbvio que consiga transferi-los. Mas o sinal preocupante é que aparenta
ter menos compromisso, do que Lula e Brizola, com os partidos por onde
passa. É a menos institucional dos três. Depois que deixou o PT, onde se
formou, esteve no PV, criou o Rede e foi dar no PSB. Defendo com unhas e
dentes seu direito de concorrer no ano que vem ao cargo que quiser e
puder. Mas me inquieta um percurso que vai da esquerda para a ecologia,
da ecologia para a sustentabilidade, tema hoje querido dos economistas
ex-tucanos e que não é a mesma coisa que a defesa do verde, da
sustentabilidade para um partido que tem socialismo hoje apenas no nome,
salvo se for para homenagear Roberto Amaral e Luiza Erundina. Cristian
Klein sugeriu aqui que Marina seria mais popular entre os que têm
aversão à política; chamemos as coisas por seu nome, analfabetismo
político; cidadania não é só pleitear direitos, protestar contra uma
categoria política desprestigiada, é sobretudo traduzir suas
reivindicações na linguagem da política.
Por circunstâncias que escaparam a sua vontade, dos três bons líderes
personalistas que analisei, Marina é a única a ter mudado tanto de
partido. Leva a extraordinária bagagem de seu apelo pessoal. Mas isso,
que na conjuntura dá votos, na estrutura gera rachaduras. Lula e Brizola
temperavam seu apelo pessoal, seu carisma, identificando-se a seus
respectivos partidos. Era este o "check and balance" do risco que
representa, para as instituições, o personalismo. O paradoxo da situação
é que o Rede - como o PT, em seu tempo heroico - inclui gente muito
qualificada. O apelo pessoal de Marina é inegável e constitui o maior
trunfo do Rede e, hoje, do PSB. Mas esse trunfo exige cautela. O
personalismo não é fácil para a democracia. Ele existe, não deve ser
extirpado, mas precisa de contrapesos. Vejamos se e como Marina consegue
institucionalizar seu inegável êxito pessoal. Porque ela é leal a seus
valores, mas não tem um vínculo tão forte com as organizações
partidárias.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: O Valor Econômico
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