Uma das maiores autoridades do País em segurança pública, o professor diz que a transição democrática precisa chegar à polícia
Wilson Aquino e Michel Alecrim
Doutor em antropologia, filosofia e ciências políticas, além de
professor e autor de 20 livros, Luiz Eduardo Soares é conhecido, mesmo,
por duas obras: "A Elite da Tropa 1 e 2", que inspiraram dois dos
maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional: "Tropa de Elite 1 e
2". Considerado um dos maiores especialistas brasileiros em segurança,
Soares, 59 anos, travou polêmicas em suas experiências na administração
pública. Foi coordenador estadual de Segurança, Justiça e Cidadania do
Rio de Janeiro entre 1999 e 2000, no governo Antony Garotinho, e
Secretário Nacional de Segurança do governo Lula, em 2003. Bateu de
frente com os dois e foi demitido. Nos últimos 15 anos, dedicou-se,
junto com outros cientistas sociais, à elaboração de um projeto para
modificar a arquitetura institucional da segurança pública brasileira,
que, no entender do professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj), passa necessariamente pela desmilitarização das polícias e o
fim da PM – como gritam manifestantes em passeatas. O trabalho virou a
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51, apresentada no Congresso
Nacional pelo senador Lindbergh Faria (PT-RJ).
Istoé -Por que o sr. defende a desmilitarização da polícia?
Luiz Eduardo Soares - Porque já passou da hora de estender a
transição democrática à segurança pública. A Polícia Militar é mais do
que uma herança da ditadura, é a pata da ditadura plantada com suas
garras no coração da democracia. A polícia é uma instituição central
para a democracia. E é preciso que haja um projeto democrático de
reforma das polícias comprometido com o novo Brasil, com a nova etapa
que a sociedade está vivendo. O Brasil tem que acabar com as PMs.
Istoé -Deixar de ser militar torna a polícia mais democrática?
Luiz Eduardo Soares - A cultura militar é muito problemática para
a democracia porque ela traz consigo a ideia da guerra e do inimigo. A
polícia, por definição, não faz a guerra e não defende a soberania
nacional. O novo modelo de polícia tem que defender a cidadania e
garantir direitos, impedindo que haja violações às leis. Ao atender à
cidadania, a polícia se torna democrática.
Istoé -Mas o comportamento da polícia seria diferente nas manifestações se a polícia não fosse militar?
Luiz Eduardo Soares - Se a concepção policial não fosse a guerra,
teríamos mais chances. Assim como a PM vê o manifestante como inimigo, a
população vê o braço policial do Estado que lhe é mais próximo, porque
está na esquina da sua casa, como grande fonte de ameaça. Então, esse
colapso da representação política nas ruas não tem a ver apenas com
corrupção política nem com incompetência política ou falta de
compromisso dos políticos e autoridades com as grandes causas sociais.
Tem a ver também com o cinismo que impera lá na base da relação do
Estado com a sociedade, que se dá pelo policial uniformizado na esquina.
É a face mais tangível do Estado para a grande massa da população e, em
geral, tem um comportamento abusivo, violador, racista, preconceituoso,
brutal.
Istoé -Mas no confronto com traficantes, por exemplo, o policial se vê no meio de uma guerra, não é?
Luiz Eduardo Soares - Correto. Mas esses combates bélicos
correspondem a 1% das ações policiais no Brasil. Não se pode organizar
99% de atividades para atender a 1% das ações.
Istoé -Como desmilitarizar uma instituição de 200 anos, como a PM do Rio?
Luiz Eduardo Soares - Setenta por cento dos soldados, cabos,
sargentos e subtenentes querem a desmilitarização e a mudança de modelo.
Entre os oficiais, o placar é mais apertado: 54%. Mas a
desmilitarização não é instantânea. Precisa de um prazo que vai de cinco
a seis anos e que depois pode se estender. É um processo muito longo,
que exige muita cautela, evitando precipitações e preservando direitos.
Istoé -Como poderia ser organizada uma nova polícia?
Luiz Eduardo Soares - Os Estados é que vão decidir que tipos de
polícia vão formar. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51 define
dois critérios de organização: territorial e de tipo criminal. Isso
porque a realidade do Brasil é muito diversa. O melhor modelo policial
para o Amazonas não precisa ser o do Rio. São realidades demográficas,
sociológicas, topográficas e geográficas distintas.
Istoé -Como funcionaria o modelo territorial?
Luiz Eduardo Soares - Seriam corporações com circunscrição dentro
dos municípios, regiões metropolitanas, distritos e o próprio Estado.
Poderíamos ter polícia municipal ou na capital, o Estado é que definirá.
São Paulo, por exemplo, tem tantas regiões distintas, com
características diversas, que poderia ter várias polícias. Essa seria
uma possibilidade. Muitos países têm polícias pequenas a partir de
certas circunscrições. Então poderíamos ter desde uma polícia só, porque
a unificação das polícias é possível, até várias dentro do mesmo
Estado.
Istoé -E o tipo criminal?
Luiz Eduardo Soares - Teríamos uma polícia só para crime
organizado, outra só para delitos de pequeno potencial ofensivo. Mas
todas são polícias de ciclo completo, fazem investigação e trabalho
ostensivo. Poderia ter polícia esta-dual unificada para delitos mais
graves, que não envolvam crime organizado. E pode ter uma polícia
pequena só para crime organizado, como se fosse uma Polícia Federal do
Estado. São muitas possibilidades.
Istoé -Como fica a União?
Luiz Eduardo Soares - Poderia ter atuação destacada na educação
policial. No Rio, para ingressar na UPP o policial é treinado em um mês.
Em outros Estados, são oito meses. O Brasil é uma babel. Tem algo
errado. Tem que ter regras básicas universais. Na polícia, a bagunça, a
desordem e a irresponsabilidade nacional, consagradas nesse modelo, são
de tal ordem que formamos policiais em um mês, que têm o mesmo título de
outro profissional formado em um ano. É necessário que haja um Conselho
Federal de Educação Policial, como existe Conselho Federal de Educação.
E o Conselho tinha que estar subordinado ao Ministério da Educação, não
no da Justiça.
Istoé -Os policiais foram consultados sobre esses novos modelos?
Luiz Eduardo Soares - Fiz uma pesquisa sobre opinião policial,
junto com os cientistas sociais Silvia Ramos e Marcos Rolim. Ouvimos
64.120 profissionais da segurança pública no Brasil todo. Policiais,
guardas municipais, agentes penitenciários. A massa policial está
insatisfeita, se sente alvo de discriminação, de preconceito, recebe
salários indignos, se sente abusada, sente os direitos humanos
desrespeitados. Mais de 70% de todas as polícias consideram esse modelo
policial completamente equivocado, um obstáculo à eficiência. E os
militares se sentem agredidos, humilhados, maltratados pelos oficiais.
Acham que os regimentos disciplinares são inconstitucionais. Pode-se
prender sem que haja direito à defesa, até por um coturno sujo!
Istoé -Mas isso não ajuda a manter a disciplina?
Luiz Eduardo Soares - De jeito nenhum. Mesmo com toda essa
arbitrariedade não se evita a corrupção e a brutalidade. Estamos no pior
dos mundos: policiais maltratados, mal pagos, se sentindo
desrespeitados, não funcionando bem. E a população se sentindo mal com
essa problemática toda. E os números são absurdos: 50 mil homicídios
dolosos por ano e, desses, em média, apenas 8% de casos desvendados com
sucesso. Ou seja: 92% dos crimes mais graves não são nem sequer
investigados.
Istoé -É o país da impunidade?
Luiz Eduardo Soares - Somente em relação ao homicídio doloso.
Estamos longe de ser o país da impunidade. O Brasil tem a quarta
população carcerária do mundo. Temos 550 mil presos, eram 140 mil em
1995.
Istoé -O que mais é necessário para democratizar a segurança pública?
Luiz Eduardo Soares - Precisamos de uma polícia de ciclo
completo, que faça o patrulhamento ostensivo e o trabalho investigativo.
Hoje temos duas polícias (civil e militar), e cada uma faz metade do
serviço. Nosso modelo policial é uma invenção brasileira que não deu
certo. Até porque quando você vai à rua só para prender no flagrante,
talvez esteja perdendo o mais importante. Pega o peixe pequeno e perde o
tubarão. Tem que ter integração. O policiamento ostensivo e a
investigação se complementam.
Istoé -O que mais é importante?
Luiz Eduardo Soares - É fundamental o estabelecimento de carreira
única. Em qualquer polícia do mundo, se você entra na porteira pode vir
a comandar a instituição, menos no Brasil. Hoje temos nas instituições
estaduais quatro polícias de verdade. Na PM são os praças e oficiais. Na
civil, delegados e agentes. São mundos à parte. Você nunca vai
ascender, mesmo que faça o melhor trabalho do mundo, sendo praça. Mas
para quem entra na Escola de Oficiais, o céu é o limite. Isso gera
animosidades internas. Isso separa, gera hostilidade. E esse modelo tem
que acabar na polícia. Isso é o pleito da massa policial.
Istoé -O sr. foi secretário de Segurança e não fez as reformas. Por quê?
Luiz Eduardo Soares - Por causa da camisa de força
constitucional. Não podíamos mudar as polícias. Mas dentro dos arranjos
possíveis fizemos o projeto das Delegacias Legais, que é uma das únicas
políticas públicas do Brasil a atravessar governos de adversários
políticos. São 15 anos desse projeto, apesar da resistência monstruosa
que enfrentei. Fui demitido pelo (Anthony) Garotinho porque entrei em
confronto com a banda podre da polícia. Após minha queda, policiais
festejavam e o novo chefe de polícia dizia: agora estamos livres para
trabalhar. Foi uma explosão de autos de resistência.
Istoé -O crescimento do PCC se deve ao modelo policial vigente?
Luiz Eduardo Soares - Acho que a resistência do governador
Geraldo Alckmin (PSDB-SP) em enfrentar a brutalidade letal da polícia,
sua dificuldade em enfrentar a banda podre, de confrontar a máquina de
morte, com a bênção de setores da Justiça e do Ministério Público, está
no coração da dinâmica terrível de ascensão do PCC. Durante os primeiros
anos, o PCC foi um instrumento de defesa dos presos, de organização que
falava em nome da legalidade que era desrespeitada pelo Estado. Depois
se dissociou das finalidades iniciais. Como já existia como máquina,
poderia servir a outros propósitos, inclusive criminais. E foi o que
começou a acontecer. O PCC deixou de ser instrumento de defesa para ser
de ataque. Aí eles começaram a funcionar como uma organização criminosa.
Fonte: Revista Istoé
Nenhum comentário:
Postar um comentário