O estado de coisas da política no País desafia o entendimento, tudo está
fora dos eixos e sob o império da imprevisibilidade. São três as
candidaturas principais à sucessão presidencial, de certo, mesmo, apenas
as legendas - PT, PSDB e PSB-Rede -, uma vez que cada qual tem seu
duplo: Dilma, o Lula; Aécio Neves, José Serra; e Eduardo Campos, Marina
Silva. As manifestações e os protestos de rua, que se sucedem numa
interminável parada cívica, iniciaram-se sob o figurino de Chapeuzinho
Vermelho para a horas tantas, imprevistamente, se travestirem com as
roupagens do Lobo Mau.
A política, arredia até os idos das jornadas de junho, a partir daí
tomou conta do cenário, com intensa movimentação dos partidos, inclusive
com a criação de mais duas legendas, e dos movimentos sociais,
particularmente daqueles vinculados às novas camadas médias -categoria
social que, entre nós, é de compreensão fugidia -, embora esses dois
grupos mal se toquem, salvo nos pontos mais doloridos. Mas, como se viu,
essa movimentação girou no vazio, uma vez que, com a distância que
partidos e movimentos sociais mantêm entre si, nem aqueles têm sua
legitimidade reforçada, nem estes refinam suas agendas, a fim de
conduzi-las à concretização, as quais são, no melhor dos casos, tangidas
em estado bruto para uma ação legislativa de emergência. Nessa lógica,
os movimentos exaurem-se em suas atividades episódicas, não deixando
rastro institucional.
Num certo momento, a fúria legislativa, orientada para sanar o imenso
vazio entre os órgãos de representação e os representados, foi de tal
monta que poderia sugerir estarmos a viver um processo constituinte
permanente. A propria Constituição, justo no ano em que completa 25 anos
de bons serviços prestados ao País, foi posta sob ameaça com a
tentativa da Presidência da República de convocar uma dita Assembleia
Constituinte para o fim exclusivo de realizar uma reforma política, que
certamente ultrapassaria esses limites. Felizmente, tal risco foi
exorcizado e ninguém fala mais dela. Na retórica, flertou-se com o tempo
das revoluções, não faltando os devaneios barrocos sobre os poderes
constituintes da multidão.
Mas o fosso a separar os partidos e os políticos das ruas, da juventude e
dos movimentos sociais, longe de diminuir no curso desses longos meses
que já nos separam dos idos de junho, agrava-se. Trata-se de uma
combinação que alia a descrença generalizada nas instituições políticas
e, em geral, nas republicanas à adesão a um fervor quase místico na ação
espontânea do social. O colunista Arnaldo Bloch, no artigo Sobre
nazismo e descrença na política (O Globo, 12/10), não importa que
hiperbolicamente, fixou um registro que não pode mais passar
despercebido: "No Brasil, um caldo de cultura ruim está se formando".
Por toda parte, larva a síndrome do ressentimento, especialmente nos
jovens e em todos os que não se sentem reconhecidos em seus direitos e
identidades, a sensação de uma exclusão injusta porque, embora se sintam
formalmente convidados pelas nossas instituições e pelo discurso
oficial a participar do festim dos êxitos da modernização econômica do
País, esbarram na estreiteza das portas que dão acesso a ele. No SUS,
nas escolas, por toda parte. Ressentimento, desconfiança, anonimato, nas
ruas e na internet, orgulhosa recusa dos caminhos do diálogo com o
outro e desdém, quando não desprezo, pela esfera pública instituída.
Nada medra nesse terreno sáfaro e tudo definha ao seu redor.
Duas décadas de uma política que hipotecou a sorte do moderno à
modernização, em suas opções pelas alianças com o que há de recessivo e
anacronicamente tradicionalista, sob o império dessa forma de
presidencialismo de coalizão sem princípios triunfante entre nós, obstou
o acesso à participação política dos filhos dos seus próprios sucessos
econômicos-, recomendando-lhes que usufruíssem as delícias do consumo. A
recomendação valia para todos, mas o desfrute, é claro, teria de ser
duramente diferencial.
Não à toa, quando esses setores emergentes despertaram! para a política,
processo disparado pelo tema da mobilidade; urbana, tinham diante de si
uma sociedade civil apática, envolvida nas malhas das agências
estatais, com suas ONGs cooptadas e uma atividade partidária que mais
lembrava um mercado em que se tomava cá para entregar algo acolá. A
reação à sua presença foi quase caricata, legislando-se de afogadilho em
obediência à pauta que as tabuletas portadas pelos manifestantes
estampavam, fazendo morrer à míngua uma reforma democrática da política
que lhe devolvesse vida.
A política, contudo, não conhece vácuo e, fechados os novos caminhos que
pareceram abertos para ela, está aí, trilhando com pachorra os que lhe
são velhos conhecidos. Aí, o retorno da Ação Penal 470, já esquecida
dos "crimes contra a República" - qualificação dada pelos votos da
maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal no seu julgamento -,
para a satisfação do nosso cediço bacharelismo, com esses embargos
infringentes que aí estão e as piruetas hermenêuticas que os justificam.
E para atestar que tudo está como dantes no quartel de Abrantes,
também aí os lances rocambolescos deste início de sucessão presidencial,
testemunhando que os nossos políticos "não aprenderam nada, nem
esqueceram nada" com as jornadas de junho, tal como na frase conhecida
de um estadista da França do período da Restauração sobre os
aristocratas do Antigo Regime que, banidos pela Revolução Francesa, se
recusavam a reconhecer que não havia volta para o seu mundo de antanho.
Não há dúvida, em 2014, dentro e fora dos estádios, devemo-nos preparar para emoções de tipo padrão Fifa.
Professor-pesquisador da PUC-RIO.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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