As decisões do TSE, negando registro ao Rede e concedendo-o a dois
partidos desconhecidos, suscitam uma pergunta radical: partidos são
mesmo necessários? Ainda mais porque o Rede, embora seja partido,
defende candidaturas avulsas, como há em vários países do mundo. O
assunto merece debate.
Uma forma de democracia - a democracia dos partidos - triunfou após a II
Guerra Mundial. A democracia é o poder do povo, mas há vários modos de
implantá-lo. A democracia dos partidos é típica só de nossa época, tão
diferente da Atenas antiga, mas tem o grande mérito de ser o modo pelo
qual ela, finalmente, se globalizou. Só que isso traz problemas sérios.
Convém apontá-los, até porque um lugar comum brasileiro sobre o
aprimoramento da democracia passa pelo mantra de que a democracia
depende de partidos fortes, ponto esse que foi contestado nas ruas em
junho.
Essa forma de democracia é criação anglo-saxônica. Consolida-se no Reino
Unido, Estados Unidos, Canadá. Espraia-se pela Europa ocidental. Ganha o
mundo ao se difundir pela Ásia (Índia, Japão), América Latina e Europa
oriental. Só que exige uma sociedade constituída por indivíduos livres,
mas individualistas. Supõe que cada um de nós tome decisões rompendo com
seus vínculos de grupo. Essa liberdade do indivíduo em face dos outros e
de sua história é sua maior condição. Mas não é óbvio que isso sempre
seja bom. E essa não é a única forma boa de democracia.
O Ubuntu e a política sem partidos
Porque esse experimento histórico é problemático. Primeiro, exclui do
poder quem não pertence ao partido (ou à coligação) que vença as
eleições. Quem perde a eleição não pode cooperar com o poder. Isso é
desnecessário e mesquinho. A divisão em facções faz que o vencedor não
só assuma a liderança política, mas aparelhe o Estado. Disso é acusado o
PT, mas o PSDB não faz por menos - basta ver a preferência da TV
Cultura por entrevistados tucanos numa área, o jornalismo, que deveria
ser imune a injunções partidárias. Assim é a democracia dos partidos.
Isso decorre de um segundo defeito. A frase do catolicismo triunfante -
"Não há salvação fora da Igreja" - cabe aqui: não há política fora dos
partidos competitivos. Temos poucas opções de participação política. Há
partidos para vários gostos. Mas quem não se encaixar nos poucos com
chances de êxito eleitoral só haverá de falar, sem agir: "Verba, non
acta".
Terceiro, cai a pluralidade de opiniões. Quando o PDT se constituiu, fez
um debate para tomar posição sobre a condição feminina. O tema é
crucial, mas não é óbvio que um partido deva ter posição única a
respeito. Recordo uma reunião da revista "Teoria e Debate", do PT, de
cujo conselho eu era membro, na qual um militante defendeu que o
periódico discutisse o que seria o modo petista de amar. Ora, petistas
amariam de forma diferente de peemedebistas? Entendo a preocupação
generosa de democratizar o mundo afetivo. Mas me choca ver até onde vai a
partidarização de um mundo complexo.
Partidos evocam o verbo partir: cindir, rachar, dividir. Nascem da ideia
de que a sociedade não precisa ver o mundo de uma só forma, de que o
conflito é legítimo e até mesmo a norma em nosso mundo - uma tese
positiva, aberta, com a qual concordo. Mas o máximo que conseguimos é,
em vez do pensamento único, dois ou três pensamentos.
Essa política não serve em sociedades de forte teor grupal. Para nós,
ocidentais, soa absurdo que em eleições democráticas tribos votem de
forma unida, tribalizando a política, rachando a sociedade segundo
linhas étnicas, negando a liberdade individual de cada um escolher
livremente o seu caminho. Mas, se para mim o principal for o laço com
meus próximos, por que não? Se na Bolívia, hoje um Estado plurinacional,
uma aldeia discutir o que lhe convém mais nas políticas públicas e seus
moradores votarem coesos nas eleições, por que não? Mas, aí, a
liberdade individual não faz sentido. O indivíduo faz pouco sentido.
Uma expressão resume essa visão que contrasta com a democracia vitoriosa
de nosso tempo. É a palavra Ubuntu, a grande contribuição da África do
Sul ao pensamento mundial. Quer dizer algo como "Somos, logo sou" - uma
alternativa ao "Penso, logo existo", que desde Descartes molda a
experiência ocidental com base no indivíduo racional. Ubuntu é "eu
existo a partir de minha rede de relações sociais". Nada sou, sozinho. É
uma ideia que faz sucesso, mundo afora, na área da educação. Vejam na
internet o "Vamos ubuntar", que Lia Diskin escreveu para a Unesco.
Devemos levar essa ideia para a organização política - porque pode criar
uma sociedade na qual se dispute, sim, a hegemonia, mas não com base em
indivíduos e sim em redes, e na qual não mais se promova a exclusão do
derrotado.
Não estranha que o partido que não conseguiu registro de partido se
chame "rede". Uma rede é horizontal, não vertical. Procura juntar o
maior mundo de pessoas, em vez de excluir. Sequer deveria estabelecer
lideranças - embora seja difícil fazer política sem elas, e Marina seja a
líder mais inconteste que o Brasil viu desde Brizola e Lula. Não
acredito que uma política funcione sem hegemonias atribuídas pelo voto.
Mas dá para fazer política sem impor, a todos, que para participar do
poder se encaixem numa das poucas identidades disponíveis (no Brasil, o
duelo petistas/tucanos), e sem que o derrotado na disputa perca tudo.
Abrir mais as identidades e admitir a participação no poder mesmo dos
vencidos já bastaria para um avanço político notável. Mas isso supõe uma
redução significativa do poder dos partidos, e que se aposente o mantra
de que não há salvação fora deles.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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