quinta-feira, 31 de outubro de 2013
Uma aliança crimino-estudantil? (Eugênio Bucci)
Em 1917 os bolcheviques forjaram o pacto entre operários e camponeses. Nascia ali a aliança que mudou a face do mundo e inaugurou o comunismo. Uma aliança cujo símbolo - o martelo e a foice, dispostos em forma de cruz - percorreu o século 20 como o selo maior da causa revolucionária. Em 1968 Paris foi o epicentro de outra aliança, esta entre os estudantes e os operários, numa vaga que fez a delícia dos intelectuais e ergueu barricadas de puro desejo. Agora, nas cidades brasileiras, vai se desenhando uma terceira aliança, esta um tanto estabanada, entre jovens estudantes em euforia voluntarista - que se veem como anarquistas e herdeiros do legado teórico das duas alianças anteriores - e serviçais do crime organizado, uns com um pé na banda podre da polícia, outros com as mãos na franja do tráfico, sem falar dos que dizem amém para as milícias, para botar fogo em ônibus na estrada, amedrontar os bairros pobres e, no fim das contas, esvaziar de vez as manifestações de rua, transformando-as em arruaça em que cidadãos de cara limpa não têm mais lugar.
Da aliança operário-camponesa de 1971 não sobrou quase nada além de um logotipo, ora empunhado por aposentados em Moscou, ora patrocinado por autoridades em Havana ou Pequim para atos oficiais e enfadonhos. Da aliança entre universitários e operários de Paris ficaram apenas fragmentos de narrativas mais ou menos filosóficas, além de uma nostalgia romântica e quase charmosa na fala de sobreviventes saudosos. Quanto à recente aliança crimino-estudantil, que promove festivais de pernadas em agências bancárias e em agentes da lei, dessa aí não se conhece bem o saldo. O que já se sabe é que, seja qual for, será um saldo completamente melancólico. A terceira aliança prestou seus serviços não às pessoas que protestavam nas ruas, mas à repressão, que queria bater nelas e não conseguia. Realizou a tarefa que a Polícia Militar, com seu despreparo bruto e chucro, jamais foi capaz de realizar: acabar com o sentido cívico e transformador dos protestos de rua, arrancando-lhes a graça, a criatividade e a força social.
Pôr fogo em viatura não muda nada em lugar nenhum, apenas reforça o apego à ordem (daí as especulações, fundamentadas, de que o quebra-quebra generalizado serve para angariar apoio para a tropa de choque). Espatifar vitrines a esmo não promove nenhuma boa causa, apenas desperta a antipatia popular. A estultice estratégica embutida na tática supostamente anarquista de partir para a ignorância beira o inacreditável. Parece ação de inimigo infiltrado. Aliás, em parte, é isso mesmo. A máscara, essa fantasia de Durango Kid, de Zorro, de Tartaruga Ninja de esquerda, virou um passe livre não para andar de graça no circular, mas para qualquer um que queira instaurar a violência no meio da rua. Era tudo o que a criminalidade queria. A propósito, as notícias de que existem entre os mascarados dos quebra-quebras delinquentes já conhecidos nas delegacias não deveriam surpreender ninguém. Fantasiado de black bloc, o assaltante pode roubar o que bem quiser e disseminar o pânico. Foi assim que o crime sequestrou os protestos da cidadania.
A aliança crimino-estudantil não nasceu de um programa revolucionário, de uma inteligência, mas de uma política sem programa e sem pensamento, que resultou na antipolítica. Ela surgiu como um efeito colateral provocado pela pancadaria festiva, que fugiu ao controle dos que, dizendo não acreditar em controle, se imaginavam no controle da confusão. Alguns deles gostavam de falar que a tal da "mídia" promovia a "criminalização dos movimentos sociais". Pois bem, agora eles criminalizaram estupidamente um dos mais significativos movimentos de inconformismo que tivemos no Brasil. Criminalização dos movimentos sociais é isso aí, o resto é teoria da conspiração (que tem 0,1% de teoria e 99,9% de conspiração).
Sabemos todos que um toque de vandalismo sempre escapa a qualquer episódio em que as multidões se exaltam. É da natureza da coisa. Há brigas em estádios de futebol, assim como há socos no vizinho em shows de heavy metal e xingamento entre motoristas nos engarrafamentos. Até aí, nenhuma novidade. As manifestações de rua não são - nunca foram - celebrações de boas maneiras e de congraçamentos em câmera lenta, com as pessoas de olhos lânguidos, semicerrados, dando sorrisinhos zen umas para as outras. O problema, agora, é que o toque de vandalismo - que era absolutamente previsível e, por isso mesmo, um tanto inevitável - acabou virando a regra e tornando o todo inviável. Exatamente por isso é que podemos dizer que os entusiastas das máscaras como salvo-conduto para depredar todo o cenário acabaram fazendo o trabalho da repressão mais primitiva. Mandaram os manifestantes pacíficos de volta para casa e fizeram propaganda da polícia, da pior polícia que pode existir, aquela que se vale da força bruta para impor a ordem dos de cima contra a vontade dos de baixo.
Se fenecerem nesse esvaziamento patético, as manifestações de junho terão sido um malogro. Que grande pena. Sem gente na rua, gente de cara limpa, não será possível mudar o Brasil. Vivemos ainda num país que trata como se fosse rotina o fato de um tiro de policial, no exercício de sua função pública, matar um adolescente desarmado. Isso não escandaliza ninguém (escândalo é quando o cidadão desarmado bate no policial). Vivemos num país em que as autoridades estão aí, perdidas, atarantadas, sem saber como conter o caos das ruas. Um país em que a tropa de choque é treinada para ver no manifestante um inimigo - e onde os policiais se omitem criminosamente diante de tantos atos de vandalismo escancarado. Vivemos, enfim, num país que precisa mudar. Aí vêm os black blocs e expulsam das ruas os manifestantes pacíficos. Mesmo que involuntariamente, eles agem como os coveiros de uma esperança.
*Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM.
Fonte: O Estado de S. Paulo
segunda-feira, 28 de outubro de 2013
"O Brasil tem que acabar com as PMs" (Luiz Eduardo Soares/entrevista)
Uma das maiores autoridades do País em segurança pública, o professor diz que a transição democrática precisa chegar à polícia
Wilson Aquino e Michel Alecrim
Doutor em antropologia, filosofia e ciências políticas, além de
professor e autor de 20 livros, Luiz Eduardo Soares é conhecido, mesmo,
por duas obras: "A Elite da Tropa 1 e 2", que inspiraram dois dos
maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional: "Tropa de Elite 1 e
2". Considerado um dos maiores especialistas brasileiros em segurança,
Soares, 59 anos, travou polêmicas em suas experiências na administração
pública. Foi coordenador estadual de Segurança, Justiça e Cidadania do
Rio de Janeiro entre 1999 e 2000, no governo Antony Garotinho, e
Secretário Nacional de Segurança do governo Lula, em 2003. Bateu de
frente com os dois e foi demitido. Nos últimos 15 anos, dedicou-se,
junto com outros cientistas sociais, à elaboração de um projeto para
modificar a arquitetura institucional da segurança pública brasileira,
que, no entender do professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj), passa necessariamente pela desmilitarização das polícias e o
fim da PM – como gritam manifestantes em passeatas. O trabalho virou a
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51, apresentada no Congresso
Nacional pelo senador Lindbergh Faria (PT-RJ).
Istoé -Por que o sr. defende a desmilitarização da polícia?
Luiz Eduardo Soares - Porque já passou da hora de estender a
transição democrática à segurança pública. A Polícia Militar é mais do
que uma herança da ditadura, é a pata da ditadura plantada com suas
garras no coração da democracia. A polícia é uma instituição central
para a democracia. E é preciso que haja um projeto democrático de
reforma das polícias comprometido com o novo Brasil, com a nova etapa
que a sociedade está vivendo. O Brasil tem que acabar com as PMs.
Istoé -Deixar de ser militar torna a polícia mais democrática?
Luiz Eduardo Soares - A cultura militar é muito problemática para
a democracia porque ela traz consigo a ideia da guerra e do inimigo. A
polícia, por definição, não faz a guerra e não defende a soberania
nacional. O novo modelo de polícia tem que defender a cidadania e
garantir direitos, impedindo que haja violações às leis. Ao atender à
cidadania, a polícia se torna democrática.
Istoé -Mas o comportamento da polícia seria diferente nas manifestações se a polícia não fosse militar?
Luiz Eduardo Soares - Se a concepção policial não fosse a guerra,
teríamos mais chances. Assim como a PM vê o manifestante como inimigo, a
população vê o braço policial do Estado que lhe é mais próximo, porque
está na esquina da sua casa, como grande fonte de ameaça. Então, esse
colapso da representação política nas ruas não tem a ver apenas com
corrupção política nem com incompetência política ou falta de
compromisso dos políticos e autoridades com as grandes causas sociais.
Tem a ver também com o cinismo que impera lá na base da relação do
Estado com a sociedade, que se dá pelo policial uniformizado na esquina.
É a face mais tangível do Estado para a grande massa da população e, em
geral, tem um comportamento abusivo, violador, racista, preconceituoso,
brutal.
Istoé -Mas no confronto com traficantes, por exemplo, o policial se vê no meio de uma guerra, não é?
Luiz Eduardo Soares - Correto. Mas esses combates bélicos
correspondem a 1% das ações policiais no Brasil. Não se pode organizar
99% de atividades para atender a 1% das ações.
Istoé -Como desmilitarizar uma instituição de 200 anos, como a PM do Rio?
Luiz Eduardo Soares - Setenta por cento dos soldados, cabos,
sargentos e subtenentes querem a desmilitarização e a mudança de modelo.
Entre os oficiais, o placar é mais apertado: 54%. Mas a
desmilitarização não é instantânea. Precisa de um prazo que vai de cinco
a seis anos e que depois pode se estender. É um processo muito longo,
que exige muita cautela, evitando precipitações e preservando direitos.
Istoé -Como poderia ser organizada uma nova polícia?
Luiz Eduardo Soares - Os Estados é que vão decidir que tipos de
polícia vão formar. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 51 define
dois critérios de organização: territorial e de tipo criminal. Isso
porque a realidade do Brasil é muito diversa. O melhor modelo policial
para o Amazonas não precisa ser o do Rio. São realidades demográficas,
sociológicas, topográficas e geográficas distintas.
Istoé -Como funcionaria o modelo territorial?
Luiz Eduardo Soares - Seriam corporações com circunscrição dentro
dos municípios, regiões metropolitanas, distritos e o próprio Estado.
Poderíamos ter polícia municipal ou na capital, o Estado é que definirá.
São Paulo, por exemplo, tem tantas regiões distintas, com
características diversas, que poderia ter várias polícias. Essa seria
uma possibilidade. Muitos países têm polícias pequenas a partir de
certas circunscrições. Então poderíamos ter desde uma polícia só, porque
a unificação das polícias é possível, até várias dentro do mesmo
Estado.
Istoé -E o tipo criminal?
Luiz Eduardo Soares - Teríamos uma polícia só para crime
organizado, outra só para delitos de pequeno potencial ofensivo. Mas
todas são polícias de ciclo completo, fazem investigação e trabalho
ostensivo. Poderia ter polícia esta-dual unificada para delitos mais
graves, que não envolvam crime organizado. E pode ter uma polícia
pequena só para crime organizado, como se fosse uma Polícia Federal do
Estado. São muitas possibilidades.
Istoé -Como fica a União?
Luiz Eduardo Soares - Poderia ter atuação destacada na educação
policial. No Rio, para ingressar na UPP o policial é treinado em um mês.
Em outros Estados, são oito meses. O Brasil é uma babel. Tem algo
errado. Tem que ter regras básicas universais. Na polícia, a bagunça, a
desordem e a irresponsabilidade nacional, consagradas nesse modelo, são
de tal ordem que formamos policiais em um mês, que têm o mesmo título de
outro profissional formado em um ano. É necessário que haja um Conselho
Federal de Educação Policial, como existe Conselho Federal de Educação.
E o Conselho tinha que estar subordinado ao Ministério da Educação, não
no da Justiça.
Istoé -Os policiais foram consultados sobre esses novos modelos?
Luiz Eduardo Soares - Fiz uma pesquisa sobre opinião policial,
junto com os cientistas sociais Silvia Ramos e Marcos Rolim. Ouvimos
64.120 profissionais da segurança pública no Brasil todo. Policiais,
guardas municipais, agentes penitenciários. A massa policial está
insatisfeita, se sente alvo de discriminação, de preconceito, recebe
salários indignos, se sente abusada, sente os direitos humanos
desrespeitados. Mais de 70% de todas as polícias consideram esse modelo
policial completamente equivocado, um obstáculo à eficiência. E os
militares se sentem agredidos, humilhados, maltratados pelos oficiais.
Acham que os regimentos disciplinares são inconstitucionais. Pode-se
prender sem que haja direito à defesa, até por um coturno sujo!
Istoé -Mas isso não ajuda a manter a disciplina?
Luiz Eduardo Soares - De jeito nenhum. Mesmo com toda essa
arbitrariedade não se evita a corrupção e a brutalidade. Estamos no pior
dos mundos: policiais maltratados, mal pagos, se sentindo
desrespeitados, não funcionando bem. E a população se sentindo mal com
essa problemática toda. E os números são absurdos: 50 mil homicídios
dolosos por ano e, desses, em média, apenas 8% de casos desvendados com
sucesso. Ou seja: 92% dos crimes mais graves não são nem sequer
investigados.
Istoé -É o país da impunidade?
Luiz Eduardo Soares - Somente em relação ao homicídio doloso.
Estamos longe de ser o país da impunidade. O Brasil tem a quarta
população carcerária do mundo. Temos 550 mil presos, eram 140 mil em
1995.
Istoé -O que mais é necessário para democratizar a segurança pública?
Luiz Eduardo Soares - Precisamos de uma polícia de ciclo
completo, que faça o patrulhamento ostensivo e o trabalho investigativo.
Hoje temos duas polícias (civil e militar), e cada uma faz metade do
serviço. Nosso modelo policial é uma invenção brasileira que não deu
certo. Até porque quando você vai à rua só para prender no flagrante,
talvez esteja perdendo o mais importante. Pega o peixe pequeno e perde o
tubarão. Tem que ter integração. O policiamento ostensivo e a
investigação se complementam.
Istoé -O que mais é importante?
Luiz Eduardo Soares - É fundamental o estabelecimento de carreira
única. Em qualquer polícia do mundo, se você entra na porteira pode vir
a comandar a instituição, menos no Brasil. Hoje temos nas instituições
estaduais quatro polícias de verdade. Na PM são os praças e oficiais. Na
civil, delegados e agentes. São mundos à parte. Você nunca vai
ascender, mesmo que faça o melhor trabalho do mundo, sendo praça. Mas
para quem entra na Escola de Oficiais, o céu é o limite. Isso gera
animosidades internas. Isso separa, gera hostilidade. E esse modelo tem
que acabar na polícia. Isso é o pleito da massa policial.
Istoé -O sr. foi secretário de Segurança e não fez as reformas. Por quê?
Luiz Eduardo Soares - Por causa da camisa de força
constitucional. Não podíamos mudar as polícias. Mas dentro dos arranjos
possíveis fizemos o projeto das Delegacias Legais, que é uma das únicas
políticas públicas do Brasil a atravessar governos de adversários
políticos. São 15 anos desse projeto, apesar da resistência monstruosa
que enfrentei. Fui demitido pelo (Anthony) Garotinho porque entrei em
confronto com a banda podre da polícia. Após minha queda, policiais
festejavam e o novo chefe de polícia dizia: agora estamos livres para
trabalhar. Foi uma explosão de autos de resistência.
Istoé -O crescimento do PCC se deve ao modelo policial vigente?
Luiz Eduardo Soares - Acho que a resistência do governador
Geraldo Alckmin (PSDB-SP) em enfrentar a brutalidade letal da polícia,
sua dificuldade em enfrentar a banda podre, de confrontar a máquina de
morte, com a bênção de setores da Justiça e do Ministério Público, está
no coração da dinâmica terrível de ascensão do PCC. Durante os primeiros
anos, o PCC foi um instrumento de defesa dos presos, de organização que
falava em nome da legalidade que era desrespeitada pelo Estado. Depois
se dissociou das finalidades iniciais. Como já existia como máquina,
poderia servir a outros propósitos, inclusive criminais. E foi o que
começou a acontecer. O PCC deixou de ser instrumento de defesa para ser
de ataque. Aí eles começaram a funcionar como uma organização criminosa.
Fonte: Revista Istoé
domingo, 27 de outubro de 2013
Direita e esquerda (Demétrio Magnoli)
O PT é o esteio de um sistema hostil ao interesse público: a concha que protege a elite patrimonialista
Visitei Praga em 1989, às vésperas da Revolução de Veludo. Naquela cidade, "comunista" era estigma. No Brasil, a ditadura militar definiu a palavra "direita". "O cara é de direita." Impossibilitado de internar dissidentes em instituições psiquiátricas, o lulopetismo almeja isolá-los num campo de concentração virtual. No processo, devasta o sentido histórico dos termos até virá-los pelo avesso: eles é que são "de direita"; eu sou "de esquerda".
Eles financiaram com dinheiro público a bolha Eike Batista. Na fogueira do Império X, queimam-se US$ 5,2 bilhões do povo brasileiro. "O BNDES para os altos empresários; o mercado para os demais": eis o estandarte do capitalismo de Estado lulopetista. Anteontem, Lula elogiou o "planejamento de longo prazo" de Geisel; ontem, sentou-se no helicóptero de Eike para articular um expediente de salvamento do megaempresário de estimação. O lobista do capital espectral é "de direita"; eu, não.
Eles são fetichistas: adoram estatais de energia e telecomunicações, chaves mágicas do castelo das altas finanças. Mas não contemplam a hipótese de criar empresas públicas destinadas a prestar serviços essenciais à população. Na França, os transportes coletivos, que funcionam, são controlados pelo Estado. Eu defendo esse modelo para setores intrinsecamente não-concorrenciais. O Partido prefere reiterar a tradição política brasileira, cobrando de empresários de ônibus o pedágio das contribuições eleitorais para perpetuar concessões com lucros garantidos. "De esquerda"? Esse sou eu, não eles.
Eles são corporativistas. No governo, modernizaram a CLT varguista, um híbrido do salazarismo com o fascismo italiano, para integrar as centrais sindicais ao aparato do sindicalismo estatal. Eles são restauracionistas. Na década do lulismo, inflaram com seu sopro os cadáveres políticos de Sarney, Calheiros, Collor e Maluf, oferecendo-lhes uma segunda vida. O PT converteu-se no esteio de um sistema político hostil ao interesse público: a concha que protege uma elite patrimonialista. "De direita"? Isso são eles.
Eles são racialistas; a esquerda é universalista. O chão histórico do pensamento de esquerda está forrado pelo princípio da igualdade perante a lei, a fonte filosófica das lutas populares que universalizaram os direitos políticos e sociais no Ocidente. Na contramão dessa herança, o lulopetismo replicou no Brasil as políticas de preferências raciais introduzidas nos EUA pelo governo Nixon. Inscrevendo a raça na lei, eles desenham, todos os anos, nas inscrições para o Enem, uma fronteira racial que atravessa as classes de aula das escolas públicas. Esses plagiários são o túmulo da esquerda.
Eles são atavicamente conservadores. Os programas de transferência de renda implantados no Brasil por FHC e expandidos por Lula têm raízes intelectuais nas estratégias de combate à pobreza formuladas pelo Banco Mundial. Na concepção de FHC, eram compressas civilizatórias temporárias aplicadas sobre as feridas de um sistema econômico excludente. Nos discursos de Lula, saltaram da condição de "bolsa-esmola" à de redenção histórica dos pobres. Quando os manifestantes das "jornadas de junho" pronunciaram as palavras "saúde" e "educação", o Partido orwelliano sacou o carimbo usual, rotulando-os como "de direita". Eles destroem a linguagem política para esvaziar a praça do debate público. Mas, apesar deles, não desapareceu a diferença entre "esquerda" e "direita" --e eles são "de direita".
"Esquerda"? O lulopetismo calunia a esquerda democrática enquanto celebra a ditadura cubana. Fidel Castro colou a Ordem José Martí no peito de Leonid Brejnev, Nicolau Ceausescu, Robert Mugabe e Erich Honecker, entre outros tiranos nefastos. Da esquerda, eles conservam apenas uma renitente nostalgia do stalinismo. Sorte deles que Praga é tão longe daqui.
Fonte: Folha de S. Paulo
Repercussões, expectativas e incertezas (Marco Aurélio Nogueira)
Outubro ganhou especial significado com a filiação de Marina Silva ao PSB e o anúncio de que se estava ali a celebrar uma aliança política de novo tipo, com a qual se alteraria o rumo da política nacional. Por agregar duas personalidades crescidas no perímetro desenhado pelo PT ao longo das últimas décadas, a anunciada aliança pareceu prejudicar mais a candidatura governista que a oposicionista. Lula, com sua conhecida sagacidade, referendou a impressão ao dizer que recebia o anúncio da nova chapa como se fosse "um golpe no fígado" - frase que expressou uma decepção e uma confissão de que algo abalara o equilíbrio do lutador.
Os dias que se seguiram, porém, mostrariam que tudo ficaria desequilibrado. A inesperada aliança desorganizou o que parecia organizado e cercou de incertezas a disputa eleitoral de 2014. As pesquisas seguiram iguais, mas cálculos e discursos foram calibrados, especulações passaram a privilegiar outros cenários. Uma pergunta ganhou o palco: a aliança Eduardo Campos-Marina Silva terá gás, conteúdo e envergadura suficientes para mudar um jogo que parecia predefinido e assentado na polarização PT x PSDB?
A nova coligação pegou os políticos de calças curtas, desinteressados de buscar novos recursos programáticos e retóricos de campanha, acomodados no velho ramerrame de uma polarização que soa à opinião pública como eco antecipado do que já se conhece: a mesmice, o artificialismo e a inocuidade de um discurso político saturado. Diante de uma proposição que fala em "terceira via" e em "despolarizar" o ambiente, todos tiveram de retocar a maquiagem e se preocupar com o que falarão daqui para a frente.
Esse é o principal efeito, que se afirmará mesmo que Eduardo e Marina não digam nada de especial e venham a naufragar amanhã. Se antes ambos surgiam como coadjuvantes de uma nova corrida entre PT e PSDB, agora, unidos, invertem a situação: tornam-se protagonistas com razoável poder de fogo, quer para incomodar, forçar um distinto desfecho para o embate ou oferecer aos eleitores uma perspectiva de futuro.
O PSDB vem perdendo força e vigor já faz tempo. Tem pouca voz, quando comparado com anos anteriores. Pode ser recriado e readquirir vitalidade? Pode, mas não será fácil, pois a dinâmica eleitoral e as disputas que ela criará não favorecerão isso no curto prazo. Há excesso de espuma no partido, muitos atritos e desentendimentos, que travam uma retomada vencedora e a incorporação de ideário mais progressista, mais afinado com a social-democracia.
Um segundo mandato de Dilma Rousseff, por sua vez, tenderá a abrir em Brasília uma estrada de acomodação em direção ao centro, seja porque o arsenal de ideias do PT está com estoque baixo, seja porque o preço que terá de ser pago para garantir Dilma II travará qualquer reformismo que vier a ser cogitado.
Ambos os partidos - carne da mesma carne, em boa medida - estão a pagar um preço alto pela teimosia em se hostilizar reciprocamente. Funcionam como espelhos um do outro. Compõem-se com o que há de mais atrasado na cena política e ao fazerem isso deixam de combater o arcaísmo sociocultural, que em princípio deveria ser seu pior pesadelo.
Eduardo e Marina terão de mostrar nos próximos meses que podem ser um vetor alternativo. Terão de explicitar ideias, propostas, projeto e, sobretudo, convencer o eleitor de que um novo modo de fazer política e governar é de fato possível, mantidas as atuais regras do jogo. Ocuparão espaço crescente se conseguirem demonstrar que os governos anteriores (FHC, Lula, Dilma) - sem consciência de que faziam isso e sem articulação alguma entre eles - cumpriram um roteiro de realizações que precisam ser preservadas e que modelaram uma sociedade mais complexa e exigente, a qual deseja política e políticos melhores.
O surgimento de um terceiro polo de postulação democrática poderá ajudar a que emerja um debate mais qualificado e sereno entre vertentes de esquerda moderada, cada qual com sua marca, suas virtudes, seus pecados e seus compromissos. Encerrará um ciclo em que o neoliberalismo funcionava, na retórica política, como um bicho-papão, o metro que se empregava ou para justificar opções "modernas" favoráveis ao mercado, ou para atacar os adversários de uma esquerda autoconcebida como imune ao mercado. Por ter sido assim tratado no plano discursivo, o neoliberalismo não pôde ser enfrentado e derrotado na prática, dificultando a superação dialética das conquistas do período Lula e FHC.
Resta saber como o sistema assimilará a novidade. Depois da "minirreforma eleitoral", o cenário é desolador.
Há riscos e perigos no horizonte. Marina, Eduardo, PSB e Rede terão de mostrar que estão à altura da situação que criaram, aparar suas diferenças e avançar de fato em termos de definição programática. Precisarão modular as tentações personalistas e messiânicas, fazer que suas diferenças ajudem a fortalecer a unidade pretendida. Somente assim conseguirão atrair, por exemplo, os 20 milhões de votos obtidos por Marina em 2010.
E há, por fim, o perigo maior: o de a aliança não se traduzir institucionalmente, isto é, não ganhar densidade como ator político qualificado para vencer e governar. Nesse caso, flutuará como folha ao vento, atrairá eventuais desgarrados políticos sem encarnar numa criatura confiável, que traga consigo uma pedagogia democrática, desative a descrença na política, interpele o fascínio juvenil pela violência e cimente outro patamar de políticas públicas.
Se tais riscos forem contornados, a aliança tenderá a galvanizar parte importante do eleitorado. Poderá articular as elites políticas e as correntes democráticas mais expressivas em torno de um projeto de País, dando agenda e representação às ruas. Porque as ruas não estão em silêncio, não deixaram de se movimentar e deverão fazer ouvir sua voz mais à frente.
Professor Titular de Teoria Política e Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
Fonte: O Estado de S. Paulo
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
Não aprenderam nada, nem esqueceram nada (Luiz Werneck Vianna)
O estado de coisas da política no País desafia o entendimento, tudo está
fora dos eixos e sob o império da imprevisibilidade. São três as
candidaturas principais à sucessão presidencial, de certo, mesmo, apenas
as legendas - PT, PSDB e PSB-Rede -, uma vez que cada qual tem seu
duplo: Dilma, o Lula; Aécio Neves, José Serra; e Eduardo Campos, Marina
Silva. As manifestações e os protestos de rua, que se sucedem numa
interminável parada cívica, iniciaram-se sob o figurino de Chapeuzinho
Vermelho para a horas tantas, imprevistamente, se travestirem com as
roupagens do Lobo Mau.
A política, arredia até os idos das jornadas de junho, a partir daí
tomou conta do cenário, com intensa movimentação dos partidos, inclusive
com a criação de mais duas legendas, e dos movimentos sociais,
particularmente daqueles vinculados às novas camadas médias -categoria
social que, entre nós, é de compreensão fugidia -, embora esses dois
grupos mal se toquem, salvo nos pontos mais doloridos. Mas, como se viu,
essa movimentação girou no vazio, uma vez que, com a distância que
partidos e movimentos sociais mantêm entre si, nem aqueles têm sua
legitimidade reforçada, nem estes refinam suas agendas, a fim de
conduzi-las à concretização, as quais são, no melhor dos casos, tangidas
em estado bruto para uma ação legislativa de emergência. Nessa lógica,
os movimentos exaurem-se em suas atividades episódicas, não deixando
rastro institucional.
Num certo momento, a fúria legislativa, orientada para sanar o imenso
vazio entre os órgãos de representação e os representados, foi de tal
monta que poderia sugerir estarmos a viver um processo constituinte
permanente. A propria Constituição, justo no ano em que completa 25 anos
de bons serviços prestados ao País, foi posta sob ameaça com a
tentativa da Presidência da República de convocar uma dita Assembleia
Constituinte para o fim exclusivo de realizar uma reforma política, que
certamente ultrapassaria esses limites. Felizmente, tal risco foi
exorcizado e ninguém fala mais dela. Na retórica, flertou-se com o tempo
das revoluções, não faltando os devaneios barrocos sobre os poderes
constituintes da multidão.
Mas o fosso a separar os partidos e os políticos das ruas, da juventude e
dos movimentos sociais, longe de diminuir no curso desses longos meses
que já nos separam dos idos de junho, agrava-se. Trata-se de uma
combinação que alia a descrença generalizada nas instituições políticas
e, em geral, nas republicanas à adesão a um fervor quase místico na ação
espontânea do social. O colunista Arnaldo Bloch, no artigo Sobre
nazismo e descrença na política (O Globo, 12/10), não importa que
hiperbolicamente, fixou um registro que não pode mais passar
despercebido: "No Brasil, um caldo de cultura ruim está se formando".
Por toda parte, larva a síndrome do ressentimento, especialmente nos
jovens e em todos os que não se sentem reconhecidos em seus direitos e
identidades, a sensação de uma exclusão injusta porque, embora se sintam
formalmente convidados pelas nossas instituições e pelo discurso
oficial a participar do festim dos êxitos da modernização econômica do
País, esbarram na estreiteza das portas que dão acesso a ele. No SUS,
nas escolas, por toda parte. Ressentimento, desconfiança, anonimato, nas
ruas e na internet, orgulhosa recusa dos caminhos do diálogo com o
outro e desdém, quando não desprezo, pela esfera pública instituída.
Nada medra nesse terreno sáfaro e tudo definha ao seu redor.
Duas décadas de uma política que hipotecou a sorte do moderno à
modernização, em suas opções pelas alianças com o que há de recessivo e
anacronicamente tradicionalista, sob o império dessa forma de
presidencialismo de coalizão sem princípios triunfante entre nós, obstou
o acesso à participação política dos filhos dos seus próprios sucessos
econômicos-, recomendando-lhes que usufruíssem as delícias do consumo. A
recomendação valia para todos, mas o desfrute, é claro, teria de ser
duramente diferencial.
Não à toa, quando esses setores emergentes despertaram! para a política,
processo disparado pelo tema da mobilidade; urbana, tinham diante de si
uma sociedade civil apática, envolvida nas malhas das agências
estatais, com suas ONGs cooptadas e uma atividade partidária que mais
lembrava um mercado em que se tomava cá para entregar algo acolá. A
reação à sua presença foi quase caricata, legislando-se de afogadilho em
obediência à pauta que as tabuletas portadas pelos manifestantes
estampavam, fazendo morrer à míngua uma reforma democrática da política
que lhe devolvesse vida.
A política, contudo, não conhece vácuo e, fechados os novos caminhos que
pareceram abertos para ela, está aí, trilhando com pachorra os que lhe
são velhos conhecidos. Aí, o retorno da Ação Penal 470, já esquecida
dos "crimes contra a República" - qualificação dada pelos votos da
maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal no seu julgamento -,
para a satisfação do nosso cediço bacharelismo, com esses embargos
infringentes que aí estão e as piruetas hermenêuticas que os justificam.
E para atestar que tudo está como dantes no quartel de Abrantes,
também aí os lances rocambolescos deste início de sucessão presidencial,
testemunhando que os nossos políticos "não aprenderam nada, nem
esqueceram nada" com as jornadas de junho, tal como na frase conhecida
de um estadista da França do período da Restauração sobre os
aristocratas do Antigo Regime que, banidos pela Revolução Francesa, se
recusavam a reconhecer que não havia volta para o seu mundo de antanho.
Não há dúvida, em 2014, dentro e fora dos estádios, devemo-nos preparar para emoções de tipo padrão Fifa.
Professor-pesquisador da PUC-RIO.
Fonte: O Estado de S. Paulo
segunda-feira, 21 de outubro de 2013
O que mostrar aos jovens (Luiz Carlos Azedo)
Nosso país tem um ranço golpista e autoritário, que não é monopólio
dos militares. Pelo contrário, está impregnado na nossa cultura
política, à direita e à esquerda
O que mostrar aos jovens?
O que fazer diante do desgaste e da desmoralização, perante a opinião
pública, do Congresso, dos partidos e seus políticos, pilares do Estado
democrático de direito? Eis uma pergunta que as elites do país,
responsáveis pelo status quo, deveriam estar se fazendo. A sobrevivência
de velhas práticas, como o patrimonialismo e o fisiologismo; o
transformismo dos partidos e o cretinismo parlamentar; a desmoralização
de instituições democráticas; as demonstrações de autoritarismo e de
ostentação de autoridades eleitas ou nomeadas; tudo isso leva à
descrença e à desesperança em relação à política como meio de solução
negociada dos impasses e de superação de dificuldades e problemas
seculares da nossa sociedade.
O atual ambiente de plenas liberdades e garantias individuais é o mais
longevo da República. Nunca antes, no Brasil, o habeas corpus ficou
tanto tempo sem ser suspenso por um estado de sítio. A democracia no
Brasil não é trivial, secular. A sua consolidação é recente e depende de
um esforço permanente das forças democráticas. A Constituição
brasileira só tem 25 anos, porém, já tem 75 emendas promulgadas pelo
Congresso. Recentemente, a presidente Dilma Rousseff chegou a propor uma
plebiscito para realizar uma reforma política. Nosso país tem um ranço
golpista e autoritário que não é monopólio dos militares. Pelo
contrário, está impregnado na nossa cultura, à direita e à esquerda.
Desde as justas manifestações de descontentamento social que eclodiram a
partir de junho, velhas concepções anarquistas, de um lado, e
fascistas, de outro, ressurgem sob várias formas. Por exemplo, uns veem o
habeas corpus como obstáculo à garantia da ordem; outros o utilizam
para continuar praticando atos de violência e vandalismo, impunemente.
Quem corre risco é o cidadão que luta por seus direitos pacífica e
democraticamente. São lamentáveis os atos de violência de jovens
manifestantes mascarados, assim como as prisões arbitrárias e a
desproporcional truculência policial.
Há grande inquietação dos jovens brasileiros — já são 50 milhões — em
relação ao presente e ao futuro. Esse é o motor dos protestos. A maioria
deles não sabe o que é viver sob um regime ditatorial. Muitos acreditam
que não existe democracia no Brasil, que a violência é válida na luta
contra o que julgam estar errado, que as mudanças só ocorrerão na marra.
É um equívoco, ainda mais num país que, bem ou mal, tem eleições a cada
dois anos, livres de fraudes eleitorais, que amadurece sua experiência
democrática.
Historicamente, em regimes democráticos, essa lógica só levou os jovens à
aventura e ao desespero político. Um ambiente de revolta e frustração
dos jovens, com violência e desordem, é terreno fértil para o surgimento
de organizações extremistas. Por sua vez, a repressão política, uma vez
que se baseia na força e não na persuasão, sempre descamba para o
arbítrio policial. E faz ressurgir das cinzas velhas propostas para
restringir as liberdades, violar direitos e garantias individuais e
aumentar as punições em razão das desordens públicas. É o caldo de
cultura àqueles que pregam o retrocesso institucional para acabar com a
bagunça e restabelecer a ordem. É um erro pensar que só os governos
conservadores e de direita adotam tais práticas. Governos populistas e
de esquerda também o fazem em conjunturas conturbadas.
Não estamos diante de conflitos e problemas triviais. O mundo vive um
choque entre duas civilizações atropeladas pelas mudanças tecnológicas.
Com a globalização, a economia do carbono e o atual padrão de consumo
colocam em xeque o modo de vida atual. Cientistas e governantes buscam
respostas para esses problemas, mas não são capazes de construir
consensos mundiais.
As contradições da nossa sociedade — globalizada, dependente e desigual —
são complexas, profundas. Dependem de soluções que demandam vontade
política focada no bem comum e não apenas nos grandes negócios. Exigem
também avanços na ciência e novas alternativas econômicas. A saturação
de nossas cidades pelo atual modelo macroeconômico leva ao colapso
projetos administrativos aparentemente modernos, mas sem
sustentabilidade no cotidiano dos cidadãos. O fracasso das políticas
públicas — na saúde, na educação, na cultura, nos transportes e na
segurança pública — provoca nos jovens a sensação de que a democracia
serve apenas aos poderosos, quando é uma notável conquista popular. Esse
entendimento errôneo só será superado com políticas públicas mais
eficazes e a renovação das instituições políticas. É precioso mostrar
aos jovens que a garantia de transformações duradouras e justas é o
fortalecimento do Estado de direito democrático e não o seu desgaste.
O personalismo na política (Renato Janine Ribeiro)
Há quem condene o personalismo na política - o fato de que certos
líderes são tão fortes, alguns até carismáticos, que ofuscam seus
partidos. A grande agremiação brasileira que já nasceu declarando guerra
ao personalismo é o PSDB. Dos partidos atuais, foi também o mais
preocupado com as instituições, proclamando apoiar o parlamentarismo -
embora nada tenha feito por este quando ocupou a Presidência da
República. Toda teoria tem dificuldades na prática. Mas faz parte da
lógica política, mesmo parlamentarista, ter líderes poderosos. Um
partido não disputa a hegemonia se não tiver grandes nomes. Isso, todos
requerem. Só que isso não significa personalizar a política, coisa que o
PSDB não faz nem fez.
Desde a democratização de 1985, destacaram-se quatro líderes
personalistas entre nós. Um deles foi um problema, Fernando Collor: seu
apelo pessoal ao eleitorado não tinha sustentação partidária ou social.
Ganhou a Presidência graças ao vazio de alternativas. Logo depois de seu
impeachment, uma emenda constitucional extinguiu a eleição solteira
para presidente da República, praticamente eliminando os riscos de
elegermos um candidato sem bases sólidas.
Mas também tivemos Leonel Brizola, Lula e Marina. Dos grandes líderes
pré-1964, foi Brizola o que mais se destacou e mais tempo durou após o
longo interlúdio ditatorial. Seus desafetos o chamavam, injustamente, de
caudilho. Tinha carisma. Mas sempre fortaleceu o partido em que
estivesse. Liderou a ala esquerda do Partido Trabalhista Brasileiro,
legenda que teria retomado na década de 1980, não fossem as manipulações
do Palácio do Planalto. Fundou, então, o Partido Democrático
Trabalhista, que dirigiu até morrer.
Marina está mais ligada a valores do que a partidos
A mesma lealdade a valores marca Lula e Marina. Ele sempre foi do PT e o
PT sempre foi ele. Mas Lula e o partido se estressaram, entre 1998 e
2002 - sua última derrota e sua primeira vitória. A esquerda do PT
aprovava propostas radicais, que, na prática, barravam sua rota para a
Presidência. Pois votos, quem tinha era Lula. Assim, para concorrer em
2002, exigiu uma guinada pragmática. Não queria mais marcar posição.
Queria vencer, mudar o País, mesmo que menos do que o ideal.
Mas ficou uma marca no PT, que um dia ele terá de enfrentar. O partido
que surgiu em 1982, como o mais moderno de todos, nunca se emancipou de
seu líder. Lula não é autoritário. Mas é quem escolhe os candidatos
petistas aos principais cargos em disputa. Indicou Dilma para a
Presidência, Haddad para a prefeitura mais rica do país, Padilha para o
Estado mais populoso. Tem dado certo, mas à custa de não haver escolha
dentro do partido. O PT ganha a eleição, mas não por um processo interno
e sim por uma decisão externa à militância. A vantagem é que Lula
acerta. A desvantagem é que quem acerta é Lula.
Cedo ou tarde, o PT precisará amadurecer. Muito se tem dito que o PSDB
precisa renovar suas lideranças, que está na hora de ter nomes novos,
que essa é uma transição difícil. É verdade. Mas o PT pode estar fadado a
viver um momento pior. Perdeu a cultura do debate interno. Terceirizou
em Lula suas decisões. Isso constitui um risco. Basta que perca uma
eleição decisiva. Sua travessia do deserto pode ser penosa.
Mas, para completar o percurso pelos líderes personalistas, Marina Silva
é a mais recente. Sem dúvida, ela é modesta; não tem nenhum traço de
arrogância; mas seus votos e decisões, criando o Rede ou se aliando ao
PSB, são dela e não do grupo. Também aqui, há uma vantagem a curto prazo
e um problema a médio. Marina traz votos, porém não os consolida. Não é
óbvio que consiga transferi-los. Mas o sinal preocupante é que aparenta
ter menos compromisso, do que Lula e Brizola, com os partidos por onde
passa. É a menos institucional dos três. Depois que deixou o PT, onde se
formou, esteve no PV, criou o Rede e foi dar no PSB. Defendo com unhas e
dentes seu direito de concorrer no ano que vem ao cargo que quiser e
puder. Mas me inquieta um percurso que vai da esquerda para a ecologia,
da ecologia para a sustentabilidade, tema hoje querido dos economistas
ex-tucanos e que não é a mesma coisa que a defesa do verde, da
sustentabilidade para um partido que tem socialismo hoje apenas no nome,
salvo se for para homenagear Roberto Amaral e Luiza Erundina. Cristian
Klein sugeriu aqui que Marina seria mais popular entre os que têm
aversão à política; chamemos as coisas por seu nome, analfabetismo
político; cidadania não é só pleitear direitos, protestar contra uma
categoria política desprestigiada, é sobretudo traduzir suas
reivindicações na linguagem da política.
Por circunstâncias que escaparam a sua vontade, dos três bons líderes
personalistas que analisei, Marina é a única a ter mudado tanto de
partido. Leva a extraordinária bagagem de seu apelo pessoal. Mas isso,
que na conjuntura dá votos, na estrutura gera rachaduras. Lula e Brizola
temperavam seu apelo pessoal, seu carisma, identificando-se a seus
respectivos partidos. Era este o "check and balance" do risco que
representa, para as instituições, o personalismo. O paradoxo da situação
é que o Rede - como o PT, em seu tempo heroico - inclui gente muito
qualificada. O apelo pessoal de Marina é inegável e constitui o maior
trunfo do Rede e, hoje, do PSB. Mas esse trunfo exige cautela. O
personalismo não é fácil para a democracia. Ele existe, não deve ser
extirpado, mas precisa de contrapesos. Vejamos se e como Marina consegue
institucionalizar seu inegável êxito pessoal. Porque ela é leal a seus
valores, mas não tem um vínculo tão forte com as organizações
partidárias.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: O Valor Econômico
segunda-feira, 14 de outubro de 2013
Partidos são, de fato, necessários? (Renato Janine Ribeiro )
As decisões do TSE, negando registro ao Rede e concedendo-o a dois
partidos desconhecidos, suscitam uma pergunta radical: partidos são
mesmo necessários? Ainda mais porque o Rede, embora seja partido,
defende candidaturas avulsas, como há em vários países do mundo. O
assunto merece debate.
Uma forma de democracia - a democracia dos partidos - triunfou após a II
Guerra Mundial. A democracia é o poder do povo, mas há vários modos de
implantá-lo. A democracia dos partidos é típica só de nossa época, tão
diferente da Atenas antiga, mas tem o grande mérito de ser o modo pelo
qual ela, finalmente, se globalizou. Só que isso traz problemas sérios.
Convém apontá-los, até porque um lugar comum brasileiro sobre o
aprimoramento da democracia passa pelo mantra de que a democracia
depende de partidos fortes, ponto esse que foi contestado nas ruas em
junho.
Essa forma de democracia é criação anglo-saxônica. Consolida-se no Reino
Unido, Estados Unidos, Canadá. Espraia-se pela Europa ocidental. Ganha o
mundo ao se difundir pela Ásia (Índia, Japão), América Latina e Europa
oriental. Só que exige uma sociedade constituída por indivíduos livres,
mas individualistas. Supõe que cada um de nós tome decisões rompendo com
seus vínculos de grupo. Essa liberdade do indivíduo em face dos outros e
de sua história é sua maior condição. Mas não é óbvio que isso sempre
seja bom. E essa não é a única forma boa de democracia.
O Ubuntu e a política sem partidos
Porque esse experimento histórico é problemático. Primeiro, exclui do
poder quem não pertence ao partido (ou à coligação) que vença as
eleições. Quem perde a eleição não pode cooperar com o poder. Isso é
desnecessário e mesquinho. A divisão em facções faz que o vencedor não
só assuma a liderança política, mas aparelhe o Estado. Disso é acusado o
PT, mas o PSDB não faz por menos - basta ver a preferência da TV
Cultura por entrevistados tucanos numa área, o jornalismo, que deveria
ser imune a injunções partidárias. Assim é a democracia dos partidos.
Isso decorre de um segundo defeito. A frase do catolicismo triunfante -
"Não há salvação fora da Igreja" - cabe aqui: não há política fora dos
partidos competitivos. Temos poucas opções de participação política. Há
partidos para vários gostos. Mas quem não se encaixar nos poucos com
chances de êxito eleitoral só haverá de falar, sem agir: "Verba, non
acta".
Terceiro, cai a pluralidade de opiniões. Quando o PDT se constituiu, fez
um debate para tomar posição sobre a condição feminina. O tema é
crucial, mas não é óbvio que um partido deva ter posição única a
respeito. Recordo uma reunião da revista "Teoria e Debate", do PT, de
cujo conselho eu era membro, na qual um militante defendeu que o
periódico discutisse o que seria o modo petista de amar. Ora, petistas
amariam de forma diferente de peemedebistas? Entendo a preocupação
generosa de democratizar o mundo afetivo. Mas me choca ver até onde vai a
partidarização de um mundo complexo.
Partidos evocam o verbo partir: cindir, rachar, dividir. Nascem da ideia
de que a sociedade não precisa ver o mundo de uma só forma, de que o
conflito é legítimo e até mesmo a norma em nosso mundo - uma tese
positiva, aberta, com a qual concordo. Mas o máximo que conseguimos é,
em vez do pensamento único, dois ou três pensamentos.
Essa política não serve em sociedades de forte teor grupal. Para nós,
ocidentais, soa absurdo que em eleições democráticas tribos votem de
forma unida, tribalizando a política, rachando a sociedade segundo
linhas étnicas, negando a liberdade individual de cada um escolher
livremente o seu caminho. Mas, se para mim o principal for o laço com
meus próximos, por que não? Se na Bolívia, hoje um Estado plurinacional,
uma aldeia discutir o que lhe convém mais nas políticas públicas e seus
moradores votarem coesos nas eleições, por que não? Mas, aí, a
liberdade individual não faz sentido. O indivíduo faz pouco sentido.
Uma expressão resume essa visão que contrasta com a democracia vitoriosa
de nosso tempo. É a palavra Ubuntu, a grande contribuição da África do
Sul ao pensamento mundial. Quer dizer algo como "Somos, logo sou" - uma
alternativa ao "Penso, logo existo", que desde Descartes molda a
experiência ocidental com base no indivíduo racional. Ubuntu é "eu
existo a partir de minha rede de relações sociais". Nada sou, sozinho. É
uma ideia que faz sucesso, mundo afora, na área da educação. Vejam na
internet o "Vamos ubuntar", que Lia Diskin escreveu para a Unesco.
Devemos levar essa ideia para a organização política - porque pode criar
uma sociedade na qual se dispute, sim, a hegemonia, mas não com base em
indivíduos e sim em redes, e na qual não mais se promova a exclusão do
derrotado.
Não estranha que o partido que não conseguiu registro de partido se
chame "rede". Uma rede é horizontal, não vertical. Procura juntar o
maior mundo de pessoas, em vez de excluir. Sequer deveria estabelecer
lideranças - embora seja difícil fazer política sem elas, e Marina seja a
líder mais inconteste que o Brasil viu desde Brizola e Lula. Não
acredito que uma política funcione sem hegemonias atribuídas pelo voto.
Mas dá para fazer política sem impor, a todos, que para participar do
poder se encaixem numa das poucas identidades disponíveis (no Brasil, o
duelo petistas/tucanos), e sem que o derrotado na disputa perca tudo.
Abrir mais as identidades e admitir a participação no poder mesmo dos
vencidos já bastaria para um avanço político notável. Mas isso supõe uma
redução significativa do poder dos partidos, e que se aposente o mantra
de que não há salvação fora deles.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
Teste de pragmatismo (Carlos Guilherme Mota/entrevista)
Neopopulismo dá espaço a uma opção 'sonhática' mais razoável
Mônica Manir
Indeferida, Marina Silva enganchou sua rede no PSB. E agora estão todos a
especular se Eduardo Campos continua no topo da chapa ou se entregará a
vaga de presidenciável à nova parceira. Na cabeceira da mesa da sala,
Carlos Guilherme Mota sorve o café feito por ele. Diz que parece um café
turco, porque consegue ver o pó no fundo. Mas não parece preocupado em
ler a sina de uma aliança que chacoalhou o cenário político brasileiro.
Está mais ansioso por perfilar os personagens em cena e levantar uniões
que pouco contribuíram para modernizar a sociedade brasileira. "Vivemos
um clima de barbárie, com as categorias sociais embrulhadas num vazio
mental."
No verso de uma folha, o historiador tica o que deseja pontuar:
grã-burguesia deseducada, partidos sem ideologia,
nacional-desenvolvimentismo precário, crise do regime democrático. Traça
setas, liga uma coisa a outra, num raciocínio enciclopédico sapecado de
referências. No verso do papel, ele circula um trecho da quarta edição
de História do Brasil - Uma Interpretação, que assina com a mulher,
Adriana Lopez. A nova versão, atualizada, sai em julho pela Editora 34.
Carlos Guilherme quase entrega o unhappy end. Tem a ver com o fim de um
ciclo histórico após a visita de Lula a Maluf durante a campanha de
Fernando Haddad para a Prefeitura de São Paulo, algo envolvendo
"república de coalizões estapafúrdias". Depois daquele encontro, escreve
ele, ficaram para trás as esperanças de efetiva e sólida renovação
político-social. Já sobre o enlace Marina-Campos, o historiador quer
abrir um capítulo. Na entrevista a seguir, feita no seu apartamento na
Oscar Freire, "nossa 5ª Avenida com casa grande e senzala", ele arrisca
os primeiros parágrafos.
A aliança de Marina Silva com Eduardo Campos foi chamada de ‘golpe de mestre’. O senhor concorda com essa avaliação?
CARLOS GUILHERME MOTA - Marina não me parece ter uma biografia
ligada a golpes. Não faz parte do perfil e da trajetória dela. E não
estou seguro se caberia na de Eduardo Campos, porque ele tem uma
genealogia respeitável. Ninguém é neto de Miguel Arraes impunemente,
assim como ninguém é neto de Tancredo Neves impunemente. Então
respeite-se a visão avoenga da história. No caso da Marina, ela foi
braço direito, cria, amiga e interlocutora de Chico Mendes. Ou seja,
descarto essa hipótese do golpe.
Como chamaríamos então essa aproximação surpreendente?
CARLOS GUILHERME MOTA - Vivemos e assistimos à crise de um regime
em que as parcerias fazem parte do jogo político. Elas se dão num
patamar inesperado, mas são, do ponto de vista histórico, bastante
apreciáveis. Marina tem a tradição de movimentar e pensar as classes
populares. Campos esboça contornos de projeto nacional - e que não vem
dele apenas. Ele está num Estado importante, fala da principal capital
do Nordeste, cuja tradição histórica vem de 1817, 1818, 1824, 1848,
depois a Revolução de 30, depois todo o movimento das ligas camponesas.
Vem de um clima histórico-cultural que, além de Jarbas Vasconcelos,
contou com seu avô, mas também com Gregório Bezerra. Enfim, ele sabe que
tem história embaixo dele, com a qual não precisa concordar nem a ela
aderir. E ele também tem interlocutores, alguns deles pernambucanos de
muito valor, como Roberto Freire, afora sua circulação bem razoável no
meio empresarial, inclusive em São Paulo.
Mas quem vai encabeçar a chapa para presidente no ano que vem? Um aceitaria o outro encabeçando?
CARLOS GUILHERME MOTA - Falar em rixa nessa altura, uma semana
depois do anúncio da aliança, acho que fica um pouco absurdo. Eles estão
numa aposta. O que vai acontecer, nenhum dos dois sabe, nem nós. Eu
poderia ter imaginado dificuldades no relacionamento entre Collor e
Itamar, por exemplo. Ou entre Serra e Índio da Costa. Quando falamos de
junções, acho que o Serra fez um programa de índio de fato, e depois
fica perguntando por que não deu certo. O Tancredo com o Sarney, outra
junção estranha. O Lula procurando o Maluf na casa de Maluf, não o Maluf
na casa de Lula. E Fernando Henrique com o Marco Maciel, um professor
de direito civil com certa compostura, que não se exporia a ser vaiado
em Frankfurt, como o foi o grande poeta Michel Temer. Mas Marco Maciel
tinha como contrapeso o ACM. Então, do que estamos falando exatamente?
Marina e Campos são pessoas dignas. Do que se pode verificar, não
existem manchas nas respectivas biografias. Já o caso do Caiado mostra
que há choques anafiláticos, e nós vamos assistir a muitos outros assim.
Mas não entre Marina e Campos, possivelmente.
A opção de Marina foi essencialmente pragmática?
CARLOS GUILHERME MOTA - Mais que pragmática: maquiavélica. E como
fugir de um maquiavelismo tendo em vista o que tem acontecido com os
outros partidos, com exceção do PSOL, daqueles mais à esquerda,
inclusive de certos militantes do PT que querem acabar com a política de
balcão? Nesse quadro, não estamos falando de política de balcão, nem de
uma terceira via. Uma terceira via mais nítida seria ela se juntar ao
PPS. Mas seguramente ela fez essa análise com muita mais cuidado do que
imaginamos.
Acha que a aparente fragilidade dela, de alguma forma, chama votos?
CARLOS GUILHERME MOTA - O que temo na Marina é sua saúde
messiânica, sobretudo quando ela olha para o céu. Ao mesmo tempo,
durante a campanha em que obteve 20 milhões de votos, mais de uma vez
ela disse que a questão religiosa estava à parte. Marina vai ter de se
mostrar pragmática nisso e em outras questões, como as células-tronco, o
aborto, porque os marqueteiros do outro lado vão provocá-la.
Se os marqueteiros a provocarem, seus clientes também serão provocados...
CARLOS GUILHERME MOTA - Aí todos estarão no fio da navalha. Esse,
de fato, não seria um problema da Marina apenas. De qualquer forma, não
seria muito pedir afirmação de laicidade do PSB.
Falando em marqueteiros, João Santana aposta na reeleição de Dilma já
no primeiro turno devido à ‘antropofagia dos anões’. O que acha dessa
previsão?
CARLOS GUILHERME MOTA - Em primeiro lugar, o João Santana deve
entender dos anões porque esteve, ombro a ombro, com os aloprados. Em
segundo, não consigo imaginá-lo como estadista à altura para estar no
Aeroporto de Congonhas, num dia de crise, com Lula e Dilma pensando a
República. Não vejo nele título para falar em nome da República, nem
nele nem em nenhum marqueteiro. Numa sociedade em que há manipulação de
massas, em que se tira dos documentos a ideia de luta de classes, o que é
isso? É conversa de marqueteiro. Ficamos preocupados com a espionagem, e
não com essa atuação nociva? Uma cultura que vive dos marqueteiros é
uma cultura falida nas instituições principais, que são as escolas, os
hospitais, as universidades, a Justiça.
Aécio Neves se apresentou como líder da oposição no Brasil. Ele o é, de fato?
CARLOS GUILHERME MOTA - Para ter uma liderança, precisa ter uma
voz nacional bem formada, e ele tem alguma. Mas precisaria ter mais
estrada. E precisaria ter um quadro de interlocutores em várias áreas.
Não se ouve falar de equipe, senão dele sozinho, um pouco borboleteando
por aí. E mesmo o legado da herança de Tancredo não é bem usado.
Ele não tem um bom marketing?
CARLOS GUILHERME MOTA - Seguramente, não tem. Mas acho que não é
questão de marketing. Falta um interlocutor. O Juscelino, por exemplo,
tinha o Pedro Nava, o Santiago Dantas, o Eduardo Portella, o Darcy
Ribeiro, o Celso Furtado, uma constelação para pensar o Brasil. Com quem
o Aécio de fato conversa?
Aécio quer a Presidência?
CARLOS GUILHERME MOTA - É uma pergunta tão profunda que só a namorada dele, agora esposa, pode responder. Eu não sei.
A política brasileira, no geral, é mais pragmática que programática?
CARLOS GUILHERME MOTA - Alguns conceitos das revoluções liberais,
e mesmo socialistas, não atravessarão o Atlântico, já dizia Raimundo
Faoro. Elas não chegarão ao Brasil. O liberalismo sempre foi uma ideia
fora do lugar, como mostrou o Roberto Schwarz. Os socialismos que aqui
chegaram, chegaram pela via stalinista em algum canto, depois
superficialmente no pós-68 e não se adensaram em comunidades. O próprio
PT hoje é um partido sem ideologia, como diz o Lincoln Secco,
historiador petista muito competente e muito sério, militante inclusive.
O PT perdeu a ideologia ou tem outra hoje?
CARLOS GUILHERME MOTA - É a ideologia do neopopulismo, do
nacional-desenvolvimentismo de araque. O projeto
nacional-desenvolvimentista implica um plano em que o eixo econômico
esteja bem definido. Não me parece que esteja definido, com um projeto
histórico-cultural a ele associado e um projeto social que saia das
prebendas e do assistencialismo.
E os demais partidos?
CARLOS GUILHERME MOTA - Os partidos já foram mais ideológicos e
com melhor nível. Quando se discutia nacionalismo, havia nacionalismo de
direita e de esquerda. Ou mesmo o trabalhismo, que não foi essa água de
barrela em que se transformou o PT. Mas eu gostaria de colocar isso na
moldura maior do esgotamento, da mesmice e do oportunismo de dois
partidos: o PT e o PSDB. Eles polarizaram e polarizam para desmobilizar.
O PSDB já veio desmobilizado porque conseguiu fazer as jogadas erradas
nas horas erradas. E, com isso, o Fernando Henrique ficou falando
sozinho. Você pode encontrar um Álvaro Dias no Paraná, mais três ou
quatro que preciso fazer um esforço para lembrar, mas o esvaziamento é
algo mortal para um partido. De outro lado tem o PT, de um autoritarismo
desmobilizador, como diria o Michel Debrun, em cima dessa palavra
horrenda que é o carisma. Se Lula sair candidato, Dilma dificilmente
aguenta. E talvez o maior baque dessa aliança entre Marina e Campos
tenha sido para Lula. Eu posso imaginar, no seu ABC, como deve ter sido
descobrir que não era o grão-senhor do jogo.
Há carismas positivos?
CARLOS GUILHERME MOTA - Qualquer carisma é negativo para quem
quer montar uma sociedade civil moderna e nova. Inclusive não posso ser
simpático ao carisma da Marina, dentro da minha lógica. A sociedade
precisa de líderes civis que se imponham pela formação, pela
competência, pela capacidade de ver o conjunto, no sentido de aprofundar
as relações democráticas. O carisma infantiliza. Pode-se dizer que o
Bill Clinton tinha carisma? Não, era uma pessoa muito bem formada. O
carisma do Obama tende a zero. É só um homem bem formado, casado com uma
mulher bem formada. Merkel apenas sabe o que quer.
Que sociedade civil é a brasileira?
CARLOS GUILHERME MOTA - É uma cidadania machucada, com uma
grã-burguesia deseducada. Em outros países, com aqueles financiamentos
de universidades, de museus, de hospitais, a alta burguesia dá
referência civilizadora. Não fica andando nesses Pajeros de vidro preto
jogando latinhas de Coca na rua. Vivemos um clima de barbárie, com as
categorias sociais embrulhadas, sem projetos sociais políticos e sociais
claros. Não é uma sociedade sem terra, sem teto. É sem história e
facilmente paternalizada. Há outra coisa grave nesse quadro: o vazio
mental. Ele pode ser preenchido com qualquer coisa. Não por acaso se dá o
avanço dos pentecostais. Onde estão as universidades formando quadros
para a rede de escolas públicas? Estão no silêncio, no corporativismo,
na ascensão da classe C de certa época que virou classe B nos quadros
universitários. "Ganhei, subi, acomodei." Há uma nova classe média
satisfeita na universidade, apesar dos salários não tão confortáveis. O
ganho é em status, um statusinho.
As manifestações de rua estão mais para sonháticas ou para pragmáticas?
CARLOS GUILHERME MOTA - Eu traduziria "sonhar" por construir
novas utopias. É preciso procurar novas utopias, porque sem isso nenhuma
sociedade anda. Mas as manifestações de rua mostram que nossos
conceitos não têm dado conta de explicar o que está acontecendo. Dizer
que a água transbordou do leito do rio é precário. Tirando a espuma, o
que tem embaixo é saúde, educação, transporte, segurança e ética.
Tivemos o desfecho cambaio do mensalão e um propinoduto do PSDB não
explicado até agora. Como a opinião pública pode reagir positivamente?
Em outros países, em outros momentos, os advogados foram mobilizados
para grandes causas. Na Revolução Francesa, nas revoluções inglesas do
século 17, eles chegavam para malhar o regime antigo e construir um
novo. Na época do Roosevelt, na crise de 29, os advogados criaram uma
legislação nova. Aqui os advogados, cada vez que vêm, é para reforçar
uma visão de D. João IV no século 17: "Nós devemos aprimorar a arte de
protelar". No mundo luso-brasileiro, temos a tradição de nunca resolver a
questão. E mais, dizia ele: "Governar é nomear". Enfim, não estamos bem
na fotografia.
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás
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