Sucessões presidenciais, mesmo quando anódinas, como esta em que estamos envolvidos, têm o condão de mudar o curso dos acontecimentos. Sucessões brasileiras envolvem um colégio eleitoral de milhões de pessoas, expostas por um largo período de tempo à propaganda eleitoral nos meios de comunicação de massa, com seus candidatos obrigados a decifrar, em meio a uma profunda heterogeneidade social e regional, quais são as motivações para o voto de um eleitorado de comportamento ainda muito pouco conhecido.
Assim, afora a presença do marketing político e dos institutos de pesquisa especializados no estudo do voto que atuam no sentido de produzir alguma inteligibilidade e previsibilidade sobre o processo eleitoral, as eleições, especialmente em uma sociedade inarticulada como a nossa, contam, ou deveriam contar, com a leitura privilegiada dos candidatos sobre o cenário e as circunstâncias em que estão envolvidos.
Algumas sucessões do nosso passado recente não podem ser explicadas se não se consideram os atributos demiúrgicos de candidatos vencedores, como Jânio Quadros, Fernando Collor e Lula, que, em meio a inumeráveis caminhos possíveis, descobriram os que poderiam levá-los a atingir as expectativas dos eleitores das eleições em que disputaram. No caso deles, pode-se sustentar que o carisma tenha sido um elemento determinante em suas vitórias, na medida em que importou em leituras inovadoras da situação do país e que significavam rupturas com rotinas e com as formas usuais de interpretá-la.
Essas eleições de 2010 nascem sob o signo oposto ao da inovação. Tanto para Dilma como para Serra, os dois contendores que aí estão no segundo turno, a chave de leitura com se credenciam à disputa eleitoral é a da continuidade, diagnóstico que lhes chega dos especialistas e que não reclamava deles uma qualidade especial, salvo a de se apresentarem como administradores preparados a fim de dar sequência a um script que vinha "dando certo". A partir dessa opção comum, ambas as candidaturas abdicam da invenção, da criação propriamente política, e partem para o confronto eleitoral em um campo dominado pela linguagem da administração.
Sob esse registro sem alma, o horário político franqueado pela legislação vai servir de vitrine para as obras realizadas e de lugar para controvérsias estatísticas sobre serviços anteriormente prestados, cada candidato brandindo uma cornucópia gigante de onde se extraem promessas de habitação, saúde, segurança, saneamento básico, aumentos salariais, vida farta e barata como dádiva do futuro governante.
Porém, como se diz, promessas são dívidas, e, dessa perspectiva, a questão social brasileira, nesta disputa eleitoral, adquiriu - e essa é, sem dúvida, uma vitória de Lula - uma envergadura inédita na política brasileira. De passagem, notar que o tema das privatizações, antes tão influente, somente, agora, no segundo turno, faz sua aparição, embora, pelo que se vê, sem acender a imaginação dos eleitores e a dos próprios candidatos.
Abrir essa cornucópia, sabem-no as pedras das ruas, vai depender da economia, e, tirante as expectativas de tesouros escondidos no pré-sal, o público eleitor não está suficientemente informado de como tantas promessas vão se converter em bens tangíveis, uma vez que os candidatos se têm mostrado reticentes sobre quais são os seus programas de governo.
De qualquer modo, o mandato que vier a nascer dessa campanha presidencial estará incontornavelmente comprometido com a realização do que foi o programa social das duas candidaturas, temática dominante em todo o seu transcurso, ambas alinhadas a uma social-democracia à brasileira de corte paternal, essa nova espécie de jabuticaba que medra entre nós.
Frustrações nesse terreno, com Lula tão perto em São Bernardo, não seriam aconselháveis. Contudo, dado que os recursos são escassos, nada difícil prever que, com o novo governante, a hora das reformas chegará para valer, e, com ela, a queda de braços a definir quem perde e quem ganha, havendo dois times bem definidos para uma aguerrida disputa em cada ponto da sua agenda.
Dessa modelagem resultou, como seria de se esperar, uma campanha presidencial em que os movimentos sociais e seus temas tenham sido os grandes ausentes, dos sindicatos às organizações feministas. Não é, pois, por acaso, que, em sua reta final, diante de um cenário frio e despolitizado, resultado para o qual os candidatos - instituídos em ideólogos da dádiva como recurso de mobilização eleitoral - estão longe de serem inocentes, essas eleições culminem, lastimavelmente, com o reconhecimento, inclusive em documentos oficiais de candidatos, de que caberia um lugar na vida republicana brasileira para as formas mais primitivas do fundamentalismo religioso.
Para esse desastrado resultado, não conspiraram, em suas convicções pessoais, inequivocamente modernas e progressistas, nem Serra e nem Dilma, mas sim essa dita política do social reinante entre nós, produzida de cima para baixo, e que subestima a capacidade da sociedade de se auto-organizar sem a indução benevolente de um governo compadecido. Daí que outro efeito, certamente inesperado, do caráter benfazejo dessas eleições é o de ter demonstrado aos movimentos sociais e às suas organizações que a realização de suas aspirações depende das forças próprias de que falava Rousseau, e não do Estado e de suas agências, que, por natureza, são prisioneiros da lógica da conservação e expansão do poder político. Por ora, o movimento feminista é a melhor testemunha disso.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional.
DEU NO VALOR ECONÔMICO(18/10/10)
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