À época em que Donald Trump ainda montava seu governo, após as eleições de 2016, o veterano líder democrata Newt Gingrich fez um alerta: não tratem o novo estilo presidencial como uma bizarrice. Há certo método ali. O recado era para a mídia, que havia entrado de cabeça na polarização política. Mas servia para muito mais gente. Gingrich resumia o método Trump: “você tem que ter coelhos que a mídia vai perseguir, ou eles vão inventar seus próprios coelhos”.
Ter a hegemonia, no mundo politico, funciona assim. Você dá a pauta e escolhe as armas do jogo, e os outros correm atrás. Na era do populismo eletrônico, isso é feito frequentemente de maneira grotesca. O líder político, que deveria agir como estadista, buscar consensos, falar com todos de modo igual, funciona ele mesmo como o agitador-chefe do país. Estes dias me corrigiram: como humorista-chefe. Ok, há gosto para tudo.
Boa parte dos coelhos inventados pelo presidente não faz sentido nenhum. Não passa de conversa fiada, por exemplo, dizer que o governo não irá financiar filmes que agridam “nossa tradição judaico-cristã”. Incentivos culturais são regidos por lei e a escolha de filmes (felizmente) independe da vontade presidencial. Imagino que Bolsonaro saiba perfeitamente disso. Sua insistência nesse tipo de bravata diz respeito ao tal “método”.
Boa parte do mundo intelectual gosta desse modus vivendi. As provocações presidenciais são um jogo fácil de jogar. São uma disputa de “valores”, como me disse, dias atrás, um ativista. É isso. Bate-boca em torno de valores é o terreno no qual Bolsonaro ganhou as eleições, sente-se bem e sabe mobilizar sua legião de seguidores. Ele sabe que, para azar do bom debate público, as pessoas não irão se mobilizar em torno da nova lei de recuperação judicial e do marco legal do saneamento básico. E isso não tem conserto.
O ponto interessante é que, em meio à estridência política, o país vem construindo, gradativamente, um novo centro político. Ele funciona no Congresso e vem dando as cartas na aprovação de uma agenda de reformas. A última foi a MP da Liberdade Econômica, na Câmara. Vai se desenhando, na prática, um novo arranjo político, feito de um paradoxo: exasperação e certo tom delirante, no mundo da retórica política, e relativa convergência e capacidade de produzir consensos na tomada de decisão institucional.
O mundo real vai superando a velha ideia de que não funcionaria um arranjo político em que o presidente não contasse com um bloco majoritário estável no Congresso. O fato é que o sistema se reciclou, novos atores ocuparam o centro político e funcionam à base de um protagonismo compartilhado. Rodrigo Maia, espécie de oposto estético do presidente da República, é sua expressão mais nítida: hostilizadopelo ativismo digital governista, atua, não obstante, como o fiel da balança da agenda estrutural do próprio governo.
Nesse processo, duas visões de mundo vão ficando para trás: a agenda econômica da esquerda e a chamada pauta de costumes da nova direita. A primeira tem sido essencialmente reativa e historicamente avessa a tudo que diga respeito à modernização do Estado e da economia. Sua narrativa remonta aos anos 1980. Não à transição, não à Constituição, não ao real, não à Lei de Responsabilidade Fiscal, e por aí andamos até os últimos resmungos ainda agora, na reforma da Previdência e na votação da MP 881 (Liberdade Econômica).
A agenda de costumes, com a qual Bolsonaro ganhou as eleições, é a contrapartida cultural do atraso econômico da esquerda. Ela corre no sentido inverso da boa tradição republicana e, além disso, é politicamente inviável. Sempre que o governo insistir por ali será barrado pelo Congresso. Isto já aconteceu com a flexibilização do Estatuto do Desarmamento e o Escola sem Partido. Se passar no Congresso (o que é difícil), tudo será devidamente “metabolizado” pelo Supremo.
Saldo positivo disso tudo é a percepção de que há um caminho possível para o país, longe do atraso cultural da nova direita e do atraso econômico da velha esquerda. Essa é a mensagem que o avanço da agenda reformista, no Congresso, desde a PEC do Teto de Gastos, e os insucessos da agenda conservadora, nos oferecem. O ensaio de um país que deseja ser simultaneamente moderno, no terreno econômico, e laico, aberto e plural, no plano das instituições.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Folha de S. Paulo/15 de agosto de 2019
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