O presidente fala para chocar e distrair. Jair repete Fernando (Collor), com motos, jet-skis e escatologias.
Para muitos, essa vitrine obscurantista acha contraponto no fundo liberal da loja. A despeito das presidenciadas cotidianas, lá estão Paulo, Tarcísio e Tereza Cristina a embalar a esperança do mercado na melhora do ambiente de negócios. Seriam o ouro escondido em meio ao cascalho. Cascalhada precificada.
Como sabe Bolsonaro, que já garimpou, peneira-se muito para achar pepita. A jazida da pujança deveria luzir aos cem dias de governo, mas impôs reentrâncias políticas e jurídicas incontornáveis mesmo para o gênio de Chicago. Guedes pede paciência, mas não pede água. É movido pela crença no triunfo da vontade —a sua.
Acontece que o brilho da pepita e a opacidade do cascalho se amalgamam no mesmo riacho. Não são as cabeças de Janus, uma olhando o passado e a outra, o futuro. São serpentes da mesma Medusa, como mostra a tópica das universidades públicas.
A turma do cascalho ataca ciência, pesquisa, liberdade de pensamento. Na retórica obscurantista, crença vale mais que argumento, fé mais que demonstração. Seu dogma é o da verdade revelada. Como pensam assim, supõem que os demais também assim pensem.
Daí julgarem a universidade um celeiro de esquerdistas que passariam, como os bolsonaristas, o dia todo produzindo fake news e incitando estudantes a repeti-las.
Creem nisso porque, decerto, nunca usufruíram do ambiente intelectual de uma universidade. Nesta instituição convivem diferentes credos, valores e opções políticas. A convergência está no engajamento na produção e transmissão intergeracional de conhecimento.
A universidade é o contrário de tudo o que diz a turma do cascalho. É espaço de pluralidade de disciplinas, teorias, argumentos e métodos. Não se rege por ideologia unificadora, mas por ethos comum, a adesão aos pilares da produção do conhecimento científico: o raciocínio lógico, o rigor dos métodos, a apresentação de provas e a legitimação intersubjetiva dos resultados.
Tudo isso dá trabalho e leva tempo. Pesquisadores estão em processo de atualização permanente, nunca param de estudar. E estão sob constante avaliação.
Cada artigo submetido a um periódico, cada projeto de pesquisa enviado a uma agência de fomento, cada passo na carreira universitária, tudo está sob escrutínio. Ninguém de fora precisa fazê-lo, a comunidade acadêmica controla-se a si mesma. É assim aqui e em todos os sistemas universitários de respeito do mundo.
A turma da pepita o sabe. Reconhece a racionalidade econômica, brandindo planilhas e gráficos. Ampara-se na ciência e se beneficia do investimento público nela. De 1974 a 1978, Guedes estudou na caríssima Universidade de Chicago com a mesma bolsa do CNPq que o governo agora nega a novos pesquisadores. Sua turma acha que ascendeu por mérito, sem reconhecer a catapulta dos incentivos estatais à educação e à pesquisa.
Por isso não mexe uma palha pela ciência. Delegou o assunto à turma do cascalho, com seu ataque, este sim ideológico, à autonomia universitária.
Nenhuma das turmas está nem aí para a universidade pública. Compartilham o diagnóstico nunca fundamentado de que ensino superior público não funciona. E direcionam recursos e filhos para instituições privadas.
Magnatas brasileiros doam para universidades americanas, caso de Jorge Paulo Lemann, em vez de investir nas nacionais. Boa parte de nossa elite social retirou apoio à ideia da universidade pública acessível pelo mérito, independentemente de renda, cor ou credo.
Pepitas e cascalhos convergem numa operação de asfixia. Um lado amordaça, com desrespeito à lista tríplice para reitor e perseguição funcional e legal a dirigentes ou ex-dirigentes de universidades e institutos de pesquisa. O outro sangra, secando os cofres.
O corte de verbas para custeio, pesquisa e bolsas porá a perder esforços cumulativos dos governos FHC, Lula e Dilma na consolidação, democratização e internacionalização da ciência brasileira. Em país sério, educação e ciência são prioridades do Estado. Mesmo na pátria do liberalismo, os Estados Unidos, as universidades não sobrevivem sem a mãozinha pública. Aqui, o governo nos passa o pé.
A turma da pepita está pagando caro a turma do cascalho, que inviabilizará não só a universidade, mas os negócios, com sua verve antiambientalista e anti-humanista.
A crer no presidente, no fundo não há um poço, mas uma fossa sanitária. Quem nela busca pepitas acabará com a peneira cheia de ouro de tolo.
(*) Angela Alonso, professora de sociologia da USP e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
Folha de S. Paulo/18 de agosto de 2019
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