As ideologias políticas são sempre a mistura de duas coisas. De um lado, um ideário sobre como deve ser o mundo. De outro, a necessidade de adaptar, em alguma medida, as ideias à realidade, pois ela é mais complexa e imperfeita do que os modelos puros. O encontro dessas duas dimensões envolve conflitos e contradições. Isso se torna mais marcante quando há um casamento de ocasião entre duas visões de mundo diferentes, mas que acreditam na junção circunstancial em torno de um objetivo. Um caso emblemático ocorre hoje na aliança entre liberalismo e conservadorismo em várias partes do mundo, em particular no Brasil sob o governo de Jair Bolsonaro.
O liberalismo, desde suas origens, é a defesa da liberdade dos indivíduos. Liberdade de pensamento, religiosa, de cada qual fazer o que quiser com sua vida, sua propriedade e seu corpo. Como bem argumentou o filosofo Stuart Mill, os ideais liberais de autonomia individual e tolerância resguardariam a diversidade de caminhos que os seres humanos podem escolher. Essa concepção liberal alimenta não só a defesa do mercado econômico como também do pluralismo político e cultural.
No início de sua história, o liberalismo acreditava que a limitação do poder governamental bastaria para atingir seus objetivos. Com o decorrer do tempo e de forma atribulada, construiu um casamento de longa duração com a democracia, apostando na expansão da ação política dos cidadãos como forma de garantir uma sociedade livre. Após a experiência do totalitarismo e da Segunda Guerra Mundial, e pressionado pelo então crescimento do socialismo, a liberal-democracia aliou-se à social-democracia, admitindo uma maior intervenção do Estado na economia para que as externalidades negativas do mercado fossem controladas, principalmente no que se refere à desigualdade, que poderia ser combatida com serviços públicos que garantissem maior igualdade de oportunidades.
Nas últimas décadas, especialmente a partir da segunda metade dos anos 1970, pensadores e atores políticos liberais têm por vezes se casado com um conservadorismo político nem sempre adepto dos valores democráticos. Isso tem significado um predomínio do liberalismo econômico sobre a sua faceta política, inclusive aceitando legitimar governos autoritários que aplicavam receituários liberais. A experiência chilena de Pinochet e seus "Chicago boys" está nas origens dessa combinação que seria considerada espúria por grande parte do pensamento liberal.
Houve muitas críticas a essa condescendência, inclusive por parte de pensadores liberais, e por algum tempo se procurou resgatar a defesa do pluralismo e da democracia.
Desde a crise financeira de 2018 o liberalismo sofreu muitas críticas. No bojo desse processo, emergiu um novo populismo de direita que vem crescendo politicamente. Ele em parte é crítico de ideias com respaldo liberal, como o globalismo e a livre circulação de pessoas, e vem adotando um tom nacionalista mais próximo do discurso dos anos 1930.
Mas esse novo conservadorismo não é anticapitalista, nem mesmo estatista no plano econômico, como foram o nazismo e o fascismo. De certa forma, faz uma aliança, ou adere circunstancialmente, a certas características do liberalismo, como a defesa da liberdade das empresas e dos indivíduos perante o Estado, ao mesmo tempo que abraça ideias conservadoras que reduzem a liberdade individual no plano moral e coloca em questão a independência das instituições e grupos que tem fiscalizado o poder nas democracias, como o Judiciário, a imprensa e a ciência.
Esse casamento de ocasião do liberalismo com o conservadorismo tem no Brasil contemporâneo um caso paradigmático. A eleição do presidente Bolsonaro representa, concomitantemente, a emergência de uma agenda neoconservadora (mais ao estilo de uma extrema-direita) no campo dos costumes e no plano institucional, somada a uma agenda liberal no âmbito econômico. O ministro Paulo Guedes apareceu como o fiador dessa combinação no processo eleitoral e continua ocupando esse papel nestes primeiros sete meses de uma presidência cuja principal marca é a imprevisibilidade.
Juntamente com esse casamento veio o apoio de setores empresariais e de boa parte do mercado financeiro. Todos eles acreditavam - alguns ainda acreditam - na possibilidade de se fazer uma junção estável entre o liberalismo econômico e um ideário populista com forte ênfase na questão moral e na defesa da sabedoria e virtudes do "homem comum". Assim, fecham-se os olhos para algumas (ou várias?) extravagâncias do bolsonarismo, como defender a censura na cultura, adotar uma visão crítica à ciência (sobretudo no campo ambiental) e estimular a intolerância contra vários grupos políticos e sociais, para ficar com alguns exemplos recentes. Afinal, haverá alguma reforma da Previdência e do Estado, além da edição da MP da Liberdade Econômica, nome que sela o casamento de ocasião.
Mas as contradições têm um preço. Não garantir a proteção do meio ambiente poderá custar caro em relação aos acordos comerciais e à conquista de mercados. O globalismo, tão prezado pelos liberais, supõe seguir certos padrões internacionais de regulação de questões coletivas - não só o tema ambiental, mas direitos humanos, por exemplo -, e desregular completamente a proteção estatal dos direitos difusos deixará o Brasil mais longe do acordo com a União Europeia. Desorganizar a educação brigando com seus principais atores tornará impossível construir o capital humano necessário ao desenvolvimento capitalista. E jogar setores sociais, por meio de manifestações ou redes sociais, contra as principais instituições democráticas pode afetar fortemente a segurança jurídica do país, o que pode afugentar investidores internacionais.
A lista de incongruências é mais ampla, mas o exposto já realça o desafio do casamento local entre conservadorismo e liberalismo. De todo modo, fica o aviso que grandes pensadores liberais, como Isaiah Berlin, já deram no passado: quando uma liberdade é perdida, outras poderão ser retiradas mais adiante. Liberalismo pela metade pode significar nenhum ao final da história.
É importante ressaltar que o viés conservador do bolsonarismo não é de conveniência. Há ali crenças fortes e sólidas sobre valores morais, contra a mídia tradicional, em relação a minorias sociais e a respeito da forma que deve funcionar o sistema político. Claro que tal visão de mundo resulta, em parte, da demanda de eleitores, isto é, professar essas ideias significa conquistar votos, numa proporção que congrega entre um quinto a um quarto do eleitorado brasileiro. Não é suficiente para se reeleger, embora seja uma base muito segura para competir, sobretudo se o oponente for classificado como o "inimigo a ser derrotado por todos que defendem a Pátria".
Só que esse ideário não é apenas um instrumento para responder à demanda eleitoral. Existe o lado da oferta também, para usar a linguagem dos economistas. O bolsonarismo é uma máquina de produzir visões de mundo, vinculadas a uma singular mistura de preconceitos tradicionais presentes na cultura brasileira com as propostas do neopopulismo de extrema-direita no plano internacional, bem expostas por Steve Bannon.
A esse lado programático soma-se, ainda, o modus operandi da família Bolsonaro. Não dá pra entender esse novo conservadorismo brasileiro sem levar em conta a maneira como os Bolsonaro, especialmente o pai, fazem política. O que se sobressai aqui é a lógica de guerra constante contra o inimigo, a multiplicação de situações de conflito por meio das redes sociais (inclusive contra aliados de plantão, como os militares), o discurso das respostas fáceis a problemas complexos e, em especial, a imprevisibilidade dos próximos passos, seja por amadorismo político ou técnico, seja porque produzir fatos (e brigas) novos é uma arte desenvolvida e reverenciada pela família.
A acumulação de contradições e conflitos entre o conservadorismo bolsonarista e o liberalismo predominantemente econômico pode resultar, mais adiante, num processo de hegemonia de um sobre o outro. Se o lado liberal da economia predominar, o que implica acreditar num projeto de mudança mais gradual da situação atual, o bolsonarismo pode deixar de responder a contento aos seus eleitores-raiz, sem que haja um ganho econômico de curto prazo - por exemplo, até as eleições municipais do ano que vem. Se em vez disso prevalecer o lado conservador, marcado pela agenda dos costumes e da guerra contras as instituições democráticas tradicionais, Bolsonaro pode manter seu eleitorado mais fiel, mas terá dificuldades de ampliar seus apoios para o restante da sociedade.
Uma parcela importante dos atores sociais torce para que seja possível um equilíbrio razoável entre o conservadorismo bolsonarista e o liberalismo. Isso porque todos temem a seguinte pergunta: o que fará o presidente se ele ficar preso ao polo mais radical de sua equação? Uma das hipóteses é que a democracia saberá lidar com isso. A outra é que terminará o casamento de ocasião e parte dos liberais terá sido responsável por produzir o contrário de seu ideário.
Valor Econômico/26 de julho de 2019
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