Às vezes é o povo, a sociedade, que intui melhor que os próprios legisladores o espírito que subjaz à letra fria da lei. Um exemplo: a discussão neste momento no Supremo sobre a prisão depois da condenação em segunda instância. Os magistrados legalistas, que são a favor de que todos os recursos sejam esgotados, dizem zelar pela lei da presunção de inocência. É verdade que mesmo o maior criminoso deve ter garantido o direito à defesa. Nada mais trágico para a dignidade humana do que a condenação de um inocente.
Ao mesmo tempo, o espírito da lei é pisoteado muitas vezes. E é a quebra desse espírito que as ruas advertem quando se defende para os poderosos a possibilidade de recursos infinitos a todas as instâncias para evitar a prisão. Algo que pode levar anos e acabar favorecendo aqueles que têm a possibilidade de pagar advogados que mantenham o condenado em liberdade. E os outros? Os pobres que não têm esses recursos? Para eles é impossível eternizar o processo até a prescrição da sentença. Somos realmente todos iguais perante a lei?
É mais fácil que seja a sociedade e não os legisladores quem indique essa dissonância que leva a distinguir os criminosos poderosos dos simples mortais. Estamos, portanto, diante de dois direitos conflitantes: o da presunção de inocência e o da Justiça que deve ser igual para todos. São dois conceitos igualmente importantes que devem valer para todos ou acabam prejudicando os menos favorecidos.
Dado que com aqueles que não são poderosos os escrúpulos pela presunção de inocência acabam sendo esquecidos e eles são, portanto, arrastados para a prisão sem mais, seria mais próximo da Justiça igualitária que todos, pobres e ricos, começassem a cumprir a pena ao mesmo tempo. Com presos sem nome há menos escrúpulos do que com os famosos e eles são presos tantas vezes antes mesmo de serem julgados. Quantos milhares desses presos anônimos apodrecem nas prisões nessa situação? No Brasil aparentemente eles são mais de duzentos mil.
Mesmo com prisão depois da condenação em segunda instância, os presos privilegiados continuarão levando a melhor, pois permanecerão menos tempo atrás das grades por disporem de advogados que fornecem habeas corpus, que na maioria dos casos lhes permitem cumprir a pena em liberdade. Pergunte-se a Gilmar Mendes, tão cheio de compaixão pelos presos de luxo. Os outros, aqueles sem advogados presunçosos, continuarão presos enquanto Deus quiser, abandonados à própria sorte.
Daí que, diante de dois direitos legítimos, o da presunção de inocência e o de que todos devem ser iguais perante a lei, a sociedade acabe vendo o primeiro como um biombo para evitar a prisão dos privilegiados e se sinta mais sensível ao outro direito não menos sagrado de que a lei é a mesma para todos. São as ruas que entenderam, por exemplo, que Carmen Lúcia e Barroso –mais do que Gilmar Mendes– estão mais próximos do espírito da lei do que de sua letra fria. Ou será que alguém acredita que, se, por exemplo, Lula foi preso, permanecerá na cadeia o mesmo tempo de um condenado comum e anônimo, réu pelos mesmos crimes que ele, mas sem advogados ilustres e magistrados amigos? Quando os membros do Supremo reclamam que não podem ser pressionados pelo clamor das ruas, esquecem que muitas vezes a sensibilidade e o senso comum da sociedade são os melhores interpretes do espírito da lei.
Em sua última coluna para este jornal, o escritor espanhol Juan José Millás usou uma metáfora entre a letra das palavras e seu significado, usando para isso a imagem da gaiola e do pássaro. A gaiola, com seu engradado, é apenas a palavra escrita ou o seu som; o pássaro é o significado. O perigo dos legalistas, como a maioria dos magistrados do Supremo parece ser, é confundir o envoltório das palavras da lei com a alma do que palpita dentro dela.
A sociedade –que possui um radar especial para detectar as manobras em favor dos poderosos– aumenta a cada dia o divórcio entre ela e aqueles que deveriam oferecer-lhe a garantia de uma Justiça sem dois pesos e duas medidas. É um esgarçamento da credibilidade que aumenta a cada dia entre o povo e seus representantes. Até onde pode levar essa perda de fé na autoridade e como ela pode prejudicar a já frágil democracia brasileira?
Fonte: El País (24/03/18)
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