segunda-feira, 12 de março de 2018

Há três características da historiografia .... (Idelber Avelar)

(Obs: encontrei esse texto compartilhado no Roda Democrática - grupo no Facebook. Não conheço o autor e não encontrei o título, mesmo assim achei importante postar)
Há três características da historiografia e das ciências sociais de esquerda que andam um pouco ausentes na maioria das explicações de esquerda para a história recente do Brasil, incluindo-se a maioria das explicações acadêmicas.
Tradicionalmente, as ciências sociais de esquerda: a) enfatizaram o papel protagônico dos povos, dos coletivos, e desenfatizaram as intrigas palacianas; b) entenderam que a forma jurídica – às vezes explicitada como “Direito burguês”-- não é senão um elemento subsidiário do embate principal, que é sempre político; c) defenderam que o cidadão que sai às ruas nunca é um simples manipulado, mas articula ali, como pode, os seus interesses (as linhas de Gramsci sobre o engajamento do homem comum sempre conter algo de fé são exemplares aqui), dentro dos limites de alguém que “faz sua história, mas não nas condições que escolheu”.
a) No entanto, boa parte dos materiais sobre o ano de 2015 no Brasil (incluindo-se as ementas que circularam de cursos sobre o “golpe”) narram as intrigas palacianas, os vaivéns do PSDB, as manobras de Cunha, Temer e Calheiros, as trocas ministeriais de Rousseff, as filigranas da cobertura da Globo etc. e em nenhum momento parecem incorporar como elemento sério de análise o fato de que milhões de brasileiros saíram às ruas ao longo do ano, em manifestação de dimensão inédita em 15 de março e ainda massiva em agosto do mesmo ano. É curioso, considerando-se a atenção que as ciências sociais de esquerda sempre demonstraram com os movimentos coletivos. Parece que aquele, verde-amarelo, não conta -- o que de novo é curioso, visto que a primeira força política a conferir sentido político à camisa da seleção na história recente não foi a direita, e sim a esquerda ex-governista, em 2014, na época do “vai ter Copa sim e se reclamar vai ter duas”.
b) Também no tratamento do Direito as ciências sociais, analistas e militantes de esquerda retrocederam a formas pré-marxistas ao lidar com o lado legal do impeachment. Não é comum na tradição intelectual de esquerda fazer apelos ao “justo”, ao “legal”, a “crime” ou “não crime”, a “provas” ou “ausência de provas”, tal como passou a ser moeda corrente no discurso acadêmico de esquerda brasileiro dos últimos anos. Pelo contrário, para a tradição intelectual de esquerda, o Direito sempre foi ramo subsidiário e classista, no qual a pergunta pelo “justo” ou a naturalização do conceito de “crime” não faria o menor sentido. Inclusive as próprias forças simpáticas ao governo deposto, durante os 14 anos em que governaram o país, jamais trataram o Direito como palavra final. Pelo contrário: quando eram apontadas as ilegalidades da usina de Belo Monte, por exemplo, seu contra-argumento nunca era que a usina era, sim, legal. A resposta era sempre que, mesmo ilegal, ela teria que ser feita e os vencedores das eleições tinham a legitimidade para fazê-la. O argumento era sempre o da Realpolitik. A filigrana jurídica começa a importar, para muita gente, apenas a partir da deposição de Rousseff.
c) Também a partir de 2015 esses discursos parecem abandonar a premissa secular da esquerda e das ciências sociais de que interesses específicos sempre são articulados pelos blocos sociais que saem às ruas, de que por menos que esses sujeitos saibam relatar discursivamente esses interesses (voltamos a Gramsci: o homem comum engajado sempre tem algo de fé), eles nunca, em hipótese alguma, são apenas uma marionete vazia manipulada por alguma outra força. No entanto, tendo se ausentado da explicação das manifestações, tendo até mesmo fingido que elas não existiram, esses discursos de esquerda, acadêmicos e militantes tiveram que se limitar a cunhar termos como “manifestoche”, lamentável em todos os sentidos, já que parece sugerir que apenas os seus manifestantes são legítimos.
Eis aí, então, três bons critérios para avaliar o que se escreve, academicamente ou não, sobre o Brasil dos últimos anos: não fingir que não havia cidadãos nas ruas em 2015, não tratar o justo e o legal -- o Direito -- como palavra transcendental apenas quando se perde na política e não pressupor que manipulado é sempre o outro.

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