A intervenção federal no Rio de Janeiro será um teste fundamental para se avaliar a maturidade da democracia brasileira. Neste sentido, estarão em jogo três questões. Primeira: o quanto essa decisão vai ser pautada pela eleição ou será orientada pela lógica de uma "política de Estado" (e não de governo). A segunda coisa que deverá ser monitorada é o efeito dessa medida sobre as instituições políticas. Por fim, e mais importante do ponto de vista dos cidadãos, é a avaliação do quanto a política de Segurança Pública fluminense poderá melhorar estruturalmente com a intervenção federal.
Pelo modo açodado e não planejado da decisão, ela gerou, de início, muitas reações e, sobretudo, surpresa. É evidente que o Estado do Rio de Janeiro já está sem governo há algum tempo, fato que piorou do final do ano para cá. O presidente e seus assessores perceberam isso no Carnaval, principalmente com as imagens de violência transmitidas pelo Jornal Nacional, mas é provável também que o desfile da Paraíso do Tuiuti tenha sido a gota d'água para os governistas. Entretanto, vale lembrar que de forma crescente, desde o ano passado, com o total colapso das contas públicas fluminenses e com o não-pagamento dos salários do funcionalismo, a segurança no Rio já ia de mal a pior.
De todo modo, a ingovernabilidade das políticas públicas é um fato no Rio. A área de segurança pública, por conta de seu efeito sobre os cidadãos, é mais visível e perigosa para o tecido social. Melhor seria se a intervenção fosse sobre o conjunto do governo fluminense, o que seria, sem dúvida alguma, uma decisão de Estado. Mas, já nesse primeiro aspecto, predominou a visão de governo. Afinal, uma intervenção geral significaria decretar publicamente a falência do grupo governante - e não só do governador - e, como se sabe, quem manda no Rio, há 12 anos, é o MDB, o mesmo partido do presidente Michel Temer.
Ao jogar no colo das Forças Armadas todo o comando da intervenção federal, o governo federal poderia ter, em tese, realizado uma política de Estado. Os militares são bem mais profissionalizados do que as polícias, tiveram recentemente experiências importantes de atuação de segurança urbana - o caso mais notório é o do Haiti - e, em suma, têm estado longe da política partidária desde 1985, e já são mais de trinta anos nessa posição, algo inédito na política republicana brasileira.
Por tudo isso, é preciso não contaminar a ação das Forças Armadas no Rio com variáveis conjunturais e políticas. Esse é um dos grandes perigos. Até agora, as falas dos comandantes demonstram comedimento e uma visão incremental e circunscrita da ação. Em nenhum momento o interventor abraçou posturas salvacionistas, mais ao estilo da lógica de Bolsonaro. De modo que é preciso ter cuidado com as críticas à falta de um plano mais estruturado, pois a verdade é que os militares foram pegos de surpresa pela decisão do grupo palaciano.
Se existem incertezas quanto ao escopo da intervenção, a culpa maior disso é dos civis, e não dos militares. A decisão e a responsabilidade política é do presidente Temer. Até porque o cálculo político dos governistas foi simples, como dito por um deputado: se a intervenção for bem-sucedida, os louros vão para Temer; se der errado, a culpa será das Forças Armadas.
Os militares não podem se transformar em couraças de proteção das decisões dos governantes. Mais do que isso, a intervenção federal não pode ser guiada pelo processo eleitoral. Isso quer dizer que o presidente Temer e seus apoiadores vão precisar ter o maior cuidado possível com o que vão falar da ação no Rio, e evitar fazer pressões conjunturais e politiqueiras. Mas esse conselho também vale para as outras forças políticas. A oposição mais à esquerda poderá criticar toda a operação, dizendo que as Forças Armadas não servem, de jeito nenhum, para a segurança urbana. Talvez tenham se esquecido de que o PT se utilizou algumas vezes desse aporte e que, diante da realidade calamitosa das polícias do Rio, os militares podem ajudar no início da mudança, embora não tenham poder nem treinamento para lidar com o conjunto das transformações. O pior pode vir do outro extremo: Bolsonaro vai pedir uma ação mais draconiana dos militares, alimentando os sentimentos mais vingativos da população.
Uma política de Estado precisa ser mais parcimoniosa e incremental, e não deve se guiar pelos humores eleitorais. Temer e seus assessores deixarão que isso aconteça, sobretudo se houver alguma falha (e sempre haverá na resolução de problemas complexos) no meio do caminho? E os outros partidos, pensarão no que aprender com essa operação e discutirão propostas para o futuro da segurança pública brasileira, ou ficarão no rame-rame dos xingamentos eleitorais? Lembrando aos políticos: cidadãos querem soluções para seus problemas, e se forem, digamos, enganados, no curto prazo, ficam muito mais raivosos contra os poderosos. Ou seja, políticas que só servem para ganhar eleições levam à ingovernabilidade futura. E já vimos esse filme recentemente.
A dificuldade de circunscrever a intervenção federal na lógica da política de Estado vincula-se, ainda, à forma como ela se relaciona com as instituições políticas. O primeiro passo nesse campo foi desastroso. A Constituição exige que haja uma deliberação do Conselho da República, cuja composição é mais plural do que o governo (há até participantes da sociedade civil), para se realizar uma intervenção federal. Pois bem, o que fez o presidente Temer? Chamou o Conselho às pressas depois que a decisão já tinha efetivamente sido tomada e montou um circo para que a deliberação sobre o decreto presidencial fosse tomada da forma mais rápida possível.
Assim, se perdeu a oportunidade de discutir com mais vagar a proposta, construindo uma legitimidade que afastaria a ação comandada pelos militares de todas as rixas políticas de ocasião. Esse debate mais pormenorizado, ademais, permitiria a construção mais clara do planejamento da operação, com escopo e metas claramente definidos, permitindo uma maior "accountability" dos cidadãos fluminenses - os soberanos últimos de todo esse processo, diga-se de passagem.
A decisão foi igualmente desequilibrada do ponto de vista da Federação. A situação do Rio era periclitante, mas a segurança pública está uma calamidade em várias outras partes do país, principalmente em algumas capitais do Nordeste. Elas, juntamente com outras localidades, vão querer o mesmo tratamento, ou preferência, do governo federal. É possível fazer isso do ponto de vista das finanças públicas? Caso não seja, foi um ato populista, demagógico e sem sustentabilidade técnica - e populismo não serve apenas para a seara econômica, vale também para todas as outras políticas públicas, embora o "mainstream" do debate econômico ignore isso.
Mais relevante do que isso, o federalismo brasileiro precisa de mais fóruns intergovernamentais para evitar que as decisões do governo federal sufoquem as liberdades dos governos subnacionais. O Senado poderia ter feito isso e o Supremo Tribunal Federal também. Porém, dessa vez eles faltaram ao encontro com a democracia.
O sistema de Justiça será outra arena institucional fundamental. Promotores, defensores públicos e juízes vão ser chamados a defender os direitos dos mais pobres que moram nas comunidades. Isso é líquido e certo. Recentemente, a Justiça notabilizou-se na luta contra a corrupção, com vários acertos, e também com outras medidas claramente desmedidas e politizadas. Ao fim e ao cabo, foram abraçados pela classe média, nas ruas e nas redes sociais. Não se encontraram ainda com o povo mais vulnerável. A atuação na intervenção federal será esse momento e a maior prova de fogo de seu compromisso com a democracia.
A grande medida do sucesso da intervenção federal será a capacidade de construir uma política pública de longo prazo. Para tanto, serão necessárias várias reformas profundas nas instituições governamentais fluminenses, com ramificações em todos os Poderes, e particularmente com ações nas duas polícias. Além disso, será necessário atuar noutras políticas públicas complementares, inclusive realizadas pelo município, como intervenções urbanísticas. Uma ação dessa envergadura exige tempo, transparência, diálogo, desprendimento para aprender com os erros, coragem para mexer em vespeiros políticos construídos a décadas, aproximação paulatina e permanente com o cidadão comum, sobretudo os mais pobres. Em outras palavras, essa ação não serve a propósitos eleitorais, do governo ou da oposição.
No entanto, parece que Temer tomou essa decisão tendo como base dois cenários: no pior, pelo menos deixaria de ser "sarneyzado" muito rapidamente, mantendo certo poder sobre o processo eleitoral; no melhor, teria criado o seu "Plano Cruzado", que elegeu o PMDB em massa, mas cuja ressaca só veio depois da eleição. Haverá, com certeza, acertos e aprendizados positivos da operação em terras fluminenses, mas tudo poderá ser perdido porque, em vez de uma ação extemporânea, a segurança pública no Rio e no Brasil precisa de um projeto mais planejado, discutido, baseado em evidências e descolado do ciclo eleitoral.
Fonte: Valor Econômico (02/03/18)
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