domingo, 25 de março de 2018

Por que Gilmar Mendes e o Supremo temem o clamor das ruas? (Juan Arias)

Às vezes é o povo, a sociedade, que intui melhor que os próprios legisladores o espírito que subjaz à letra fria da lei. Um exemplo: a discussão neste momento no Supremo sobre a prisão depois da condenação em segunda instância. Os magistrados legalistas, que são a favor de que todos os recursos sejam esgotados, dizem zelar pela lei da presunção de inocência. É verdade que mesmo o maior criminoso deve ter garantido o direito à defesa. Nada mais trágico para a dignidade humana do que a condenação de um inocente.
Ao mesmo tempo, o espírito da lei é pisoteado muitas vezes. E é a quebra desse espírito que as ruas advertem quando se defende para os poderosos a possibilidade de recursos infinitos a todas as instâncias para evitar a prisão. Algo que pode levar anos e acabar favorecendo aqueles que têm a possibilidade de pagar advogados que mantenham o condenado em liberdade. E os outros? Os pobres que não têm esses recursos? Para eles é impossível eternizar o processo até a prescrição da sentença. Somos realmente todos iguais perante a lei?
É mais fácil que seja a sociedade e não os legisladores quem indique essa dissonância que leva a distinguir os criminosos poderosos dos simples mortais. Estamos, portanto, diante de dois direitos conflitantes: o da presunção de inocência e o da Justiça que deve ser igual para todos. São dois conceitos igualmente importantes que devem valer para todos ou acabam prejudicando os menos favorecidos.
Dado que com aqueles que não são poderosos os escrúpulos pela presunção de inocência acabam sendo esquecidos e eles são, portanto, arrastados para a prisão sem mais, seria mais próximo da Justiça igualitária que todos, pobres e ricos, começassem a cumprir a pena ao mesmo tempo. Com presos sem nome há menos escrúpulos do que com os famosos e eles são presos tantas vezes antes mesmo de serem julgados. Quantos milhares desses presos anônimos apodrecem nas prisões nessa situação? No Brasil aparentemente eles são mais de duzentos mil.
Mesmo com prisão depois da condenação em segunda instância, os presos privilegiados continuarão levando a melhor, pois permanecerão menos tempo atrás das grades por disporem de advogados que fornecem habeas corpus, que na maioria dos casos lhes permitem cumprir a pena em liberdade. Pergunte-se a Gilmar Mendes, tão cheio de compaixão pelos presos de luxo. Os outros, aqueles sem advogados presunçosos, continuarão presos enquanto Deus quiser, abandonados à própria sorte.
Daí que, diante de dois direitos legítimos, o da presunção de inocência e o de que todos devem ser iguais perante a lei, a sociedade acabe vendo o primeiro como um biombo para evitar a prisão dos privilegiados e se sinta mais sensível ao outro direito não menos sagrado de que a lei é a mesma para todos. São as ruas que entenderam, por exemplo, que Carmen Lúcia e Barroso –mais do que Gilmar Mendes– estão mais próximos do espírito da lei do que de sua letra fria. Ou será que alguém acredita que, se, por exemplo, Lula foi preso, permanecerá na cadeia o mesmo tempo de um condenado comum e anônimo, réu pelos mesmos crimes que ele, mas sem advogados ilustres e magistrados amigos? Quando os membros do Supremo reclamam que não podem ser pressionados pelo clamor das ruas, esquecem que muitas vezes a sensibilidade e o senso comum da sociedade são os melhores interpretes do espírito da lei.
Em sua última coluna para este jornal, o escritor espanhol Juan José Millás usou uma metáfora entre a letra das palavras e seu significado, usando para isso a imagem da gaiola e do pássaro. A gaiola, com seu engradado, é apenas a palavra escrita ou o seu som; o pássaro é o significado. O perigo dos legalistas, como a maioria dos magistrados do Supremo parece ser, é confundir o envoltório das palavras da lei com a alma do que palpita dentro dela.
A sociedade –que possui um radar especial para detectar as manobras em favor dos poderosos– aumenta a cada dia o divórcio entre ela e aqueles que deveriam oferecer-lhe a garantia de uma Justiça sem dois pesos e duas medidas. É um esgarçamento da credibilidade que aumenta a cada dia entre o povo e seus representantes. Até onde pode levar essa perda de fé na autoridade e como ela pode prejudicar a já frágil democracia brasileira?
Fonte: El País (24/03/18)

Esquerda deve tirar foco da pauta identitária para ser eleita (Mark Lilla/entrevista)

Em entrevista à Folha, autor do artigo político mais lido do New York Times em 2016 defende que a esquerda precisa de menos manifestantes e mais vitórias eleitorais. Ele critica a política identitária abraçada pelos democratas e a falha do partido em conceber visão de país na qual diferentes grupos se reconheçam. Mark Lilla se tornou o mais odiado dos pensadores de centro-esquerda ao criticar, em artigo no New York Times, em 2016, logo após a eleição de Donald Trump, a política identitária abraçada pelo Partido Democrata. Para o cientista político e professor da Universidade Columbia, o discurso que enfatiza identidades e isola os eleitores de grupos minoritários é responsável pelas seguidas derrotas dos democratas nos Estados Unidos.
Ao segmentar o eleitorado e customizar a mensagem para hispânicos, negros, mulheres e cidadãos LGBT, os liberais americanos —no sentido que a palavra tem nos EUA, de pessoas de centro-esquerda que defendem atuação do Estado para reduzir desigualdade— teriam perdido a capacidade de formular uma visão de país que atraísse toda a população. O texto "O fim do liberalismo identitário" foi o artigo político mais lido do jornal naquele ano, e acabou se transformando em um livro, "The Once and Future Liberal: After Identity Politics" (O liberal de então e o do futuro: depois da política identitária), lançado nos EUA em agosto do ano passado pela HarperCollins. Novamente, seu argumento foi recebido com críticas viscerais.
Lilla, que virá ao Brasil para participar de uma das conferências do ciclo Fronteiras do Pensamento, em novembro, diz que se transformou em um elemento "tóxico" para a esquerda, mas dobra a aposta. "Não se trata de parar de lutar pelos direitos das minorias, mas sim de começar a ganhar essas lutas", disse, em entrevista à Folha. Para ele, uma outra prova de que as políticas identitárias são equivocadas é que líderes autoritários populistas de direita, como Vladimir Putin, o húngaro Viktor Orbán e até o grupo racista americano Ku Klux Klan fazem da identidade sua razão de ser.
Folha - O senhor afirma que os liberais deveriam abandonar o discurso focado nas minorias para voltar a ganhar eleições. Mas ao fazer isso, os liberais não se arriscam a abandonar a luta pelos direitos das minorias, das pessoas que ainda não têm direitos assegurados? Mark Lilla - As pessoas interpretaram meu livro da forma errada. Eu não defendo que se abandone a luta pelos direitos das minorias. O sentido de se lutar pelos direitos das minorias é conseguir governar de forma que seja realmente possível proteger esses direitos. Para isso, é preciso ganhar as eleições. Você não vai conseguir proteger ninguém se não vencer, você estará apenas envolvido em um teatro simbólico.
Folha - No governo americano, os estados têm muito poder. Por exemplo: no país, existe um direito constitucional ao aborto. Mas, em muitas partes do país, principalmente no Sul e no Sudoeste, uma mulher não consegue fazer um aborto porque os estados impõem muitos obstáculos para os médicos que fazem o procedimento, exigem que as mulheres passem por um período de espera ou se submetam a exames e testes humilhantes. Mas as legislaturas estaduais podem fazer isso, mesmo o aborto sendo um direito constitucional? Mark Lilla - Sim, porque a Suprema Corte não diz exatamente o que é necessário fazer para garantir que uma mulher tenha direito ao aborto. Então, para proteger os direitos de uma jovem negra no Texas, você precisa ganhar um cargo eletivo naquele estado. Único jeito de vencer eleições é persuadir texanos, que vivem em um estado religioso, de maioria branca, e para isso é preciso achar uma mensagem que ressoe com eles. Ou seja, não estou dizendo que nós devemos deixar de lutar pelos direitos das pessoas ou nos voltar para outros grupos. Meu ponto é que os democratas perderam a capacidade de conceber e comunicar uma visão de país na qual pessoas de vários grupos diferentes se reconheçam, e sintam que o programa político é para elas também.
Folha - Se você falar em princípios gerais democráticos, como solidariedade e proteção de direitos, isso atinge igualmente o trabalhador branco e a jovem negra que acabei de mencionar.
Mas o problema da política identitária é que ela mudou o foco. Priorizaram a política simbólica de querer reconhecimento, em vez de ganhar eleições. E essa política enxerga o país apenas como uma série de tribos... Então como eles vão conseguir chegar a uma visão geral se eles não acreditam na nação como um todo? O senhor acredita que existe o risco de as minorias, que estão acostumadas a serem o foco da mensagem, sentirem-se excluídas se a esquerda passar a ter um discurso mais abrangente? Eu acho que não. Não estou dizendo que não devemos falar em direitos das minorias, estou dizendo que não devemos falar nesses direitos em termos de identidade.Tudo o que preciso fazer para ajudar a jovem negra é convencer o eleitor branco de que os princípios de solidariedade e proteção igualitária se aplicam aos dois. O eleitor branco não precisa reconhecer a concepção da jovem negra sobre ela mesma, sobre sua experiência como negra, sobre a história dos negros. Eu só preciso que os dois concordem em relação a um programa político, para que eles consigam nos eleger.
Folha - O senhor é a favor de políticas que tentam mitigar as desvantagens e injustiças sofridas pelas minorias, como ações afirmativas e cotas? Sim, acho que são um programa de reparações que funciona. Mas eu gostaria que conseguíssemos justificar esses programas para os eleitores brancos.Hoje em dia, ao darmos a vaga a um estudante negro que não tem nota suficiente para ser admitido, ficará de fora um estudante branco. Mas não vai ser um branco da burguesia, vai ser um branco da classe trabalhadora. E a realidade é que ambos, o negro e o branco de classe baixa, precisam de ajuda para entrar na universidade.Gostaria que pensássemos em formas de abordar essa questão. Porque hoje, isso ajuda a direita, ao voltar segmentos de baixa renda uns contra os outros.
Folha - O senhor acredita que o fenômeno Donald Trump seja, em certa medida, uma reação à exacerbação da política identitária no país? Há duas coisas acontecendo neste país. Uma é política eleitoral, a outra é uma espécie de revolução esperançosa na sociedade americana, ligada a minorias, a mulheres, à sexualidade. Esse movimento é liderado pelas elites do país —nas universidades, em Hollywood, no mundo corporativo. Então Trump atrai as pessoas que sentem que a cultura delas está sendo modificada por pessoas de outra classe social, e elas não têm nenhum poder sobre isso.'

sábado, 24 de março de 2018

Os alquimistas estão voltando (Gaudêncio Torquato)

A planilha de candidatos a cargos majoritários e proporcionais no pleito de outubro, seguramente um dos mais competitivos destes tempos de repulsa à velha política, deverá ser recheada de perfis pincelados pela tintura do adjetivo "novo".
O enquadramento abrigará não só quadros mais jovens, mas os protagonistas avançados na idade, eis que a transmutação das identidades tem sido exercício a cargo de alquimistas do marketing político, figuras carimbadas nas campanhas, principalmente a partir dos anos 80.
A alquimia da mudança de perfis se faz mais necessária hoje do que em tempos passados. A razão é conhecida: a política e seus representantes tornaram-se alvo da indignação social na esteira de escândalos em série, que se arrastam desde o mensalão e desembocam no petrolão, na operação Lava Jato.
Renovação de quadros, mudança de padrões e formas de fazer política e assepsia geral adensam o discurso social. Infelizmente, a realidade aponta uma reversão de expectativas. A almejada renovação não ocorrerá. Vamos às razões.
A campanha será bem mais curta. Nas ruas, diminui de 90 para 45 dias. Na mídia eleitoral, de 45 para 35 dias. Os recursos serão modestos. Com a proibição de doações pelas empresas, sobrarão cerca de 1,7 bilhão no Fundo Especial de Financiamento de Campanha e mais um valor de R$ 888,7 milhões do Fundo Partidário, a serem repartidos entre as siglas. Há, ainda, o autofinanciamento de campanha, que permitirá a um candidato a deputado, por exemplo, gastar até o limite de R$ 2,5 milhões. Deduz-se que os recursos serão bem inferiores aos de campanhas passadas, e candidatos ricos terão mais vantagens.
Já a campanha mais curta (na rua e em mídia eleitoral) beneficiará os mais conhecidos, por lógica os mais antigos, com grande probabilidade de velhos nomes virem a se sobrepor aos novos. Portanto, no momento em que se defende com mais ímpeto a mudança na radiografia política, poderá ocorrer o contrário. Em 1990, a renovação na Câmara foi de 61,82%; em 1994, 54,28%. Este ano, deverá girar em torno de 40%, abaixo da média histórica.
E os alquimistas, o que farão? Não conseguirão dourar seus candidatos com a tintura da "novidade". Primeiro, porque o número de novos não tende a ser grande; segundo, porque o eleitor está vacinado contra a transmutação mágica dos marqueteiros. Dândis --candidatos adornados com penduricalhos-- não mais chamam atenção. Cairão no ridículo. Dessa forma, o "novo" acabará exibindo cara velha.
Aliás, se há algo da mais longínqua antiguidade é a venda do "novo". Quinto Túlio Cícero escreveu em 64 a.C uma carta ao irmão Marco, candidato, aconselhando-o a dizer: "Sou um homem novo, quero o Consulado, aqui em Roma".
Os alquimistas estão voltando à cena. Mas não farão milagres. Ademais, em razão de denúncias que atingiram estrelas do marketing, certa desconfiança sobre seu ofício se espraia na seara eleitoral. A visão paradisíaca que apresentavam em programas de seus candidatos acabou se transformando no caos que aflige o país. Quanto ao dandismo, que Baudelaire definia como "o prazer de espantar", também está com dias contados.
Quem quiser aparecer vestido de super-herói, como o ex-senador Eduardo Suplicy, em tempos idos, quando se fantasiou pelos corredores do Senado, haverá de pensar se vale a pena submeter-se ao império da visibilidade "custe o que custar".
O fato é que o eleitor acabará votando nos candidatos que aparecerem. Sem a presença maciça de elementos novos, a alternativa é a de votar em branco, anular ou votar em perfis conhecidos ou próximos. Não haverá grandes mudanças com a atual modelagem política. Velha foto embolorada na parede.
(*) Gaudêncio Torquato, Jornalista, é professor titular da USP (aposentado) e consultor político
Fonte: Folha de São Paulo (22/03/18)

Crise de autoridade (Denis Lerrer Rosenfield)

O Brasil vive uma crise de autoridade, justificada por alguns como se fosse algo próprio da democracia. Há um atropelo de prerrogativas de um Poder constitucional sobre outro, mormente pelo Judiciário, que invade competências alheias (o Ministério Público também o faz). Para os agentes de tais atos, tratar-se-ia de um fortalecimento das instituições, quando estas, na verdade, terminam por se enfraquecer. O desequilíbrio torna-se patente. Não há democracia consolidada que não esteja fundamentada no exercício da autoridade. Sem esta se abre caminho para o esgarçamento das próprias instituições democráticas.
Exemplos particularmente claros dessa invasão de competências se encontram em atos de ministros do Supremo Tribunal e da Procuradoria-Geral da República (PGR), que passam a decidir por si mesmos, muitas vezes à revelia da Constituição. O ministro Barroso, por exemplo, em nome de suposta vontade popular ou clamor da sociedade, decide sobre um indulto do presidente, como se pudesse legislar e tomar o seu lugar. O mesmo ministro decide em ato monocrático abrir o sigilo bancário do presidente, prescindindo da própria opinião do Ministério Público.
A PGR pretende abrir investigação sobre atos do presidente anteriores ao seu mandato, como se investigar não fosse uma forma de responsabilizar uma pessoa. Entramos no terreno do opinar, sem que os argumentos aguentem uma análise mais detida. Juízes e promotores começam a brincar com as palavras, como se, por seus meros atos de linguagem, estivesse em curso uma batalha contra a corrupção. A Constituição, de texto, torna-se um pretexto para atos de “interpretação”, que são, mais simplesmente, de mera opinião.
Diria que a questão é de natureza hobbesiana, isto é, quem decide em última instância os assuntos do Estado. Em termos desse filósofo: quem seria o soberano? O que temos observado nos últimos tempos é um protagonismo do Judiciário, tomando a si essa decisão, como se a ele coubesse a última palavra. Numa exacerbação dessa atitude, ministros do Supremo, em decisões monocráticas, representam-se acima da função presidencial. O problema é de monta, pois juízes, promotores e policiais não são eleitos, mas fruto de concurso público. Não exercem, pois, nenhuma função política de representação. Não são representantes do povo, a quem incumbiria a escolha em eleições.
Há uma suposta normalidade, que é, na verdade, enganadora, por ser expressão de algo extremamente problemático, relativo à arte mesma de governar e às suas condições próprias de exercício. O problema não diz respeito tão só, embora tenha agora essa aparência, ao governo atual, mas concerne a qualquer um que venha a dirigir o País. A questão ganha ainda outra dimensão, pois tal desvirtuamento de competências é amplamente apoiado pela sociedade, que vê no Judiciário e no Ministério Público defensores da moralidade pública.
A Lava Jato tornou-se, nesse aspecto, um símbolo nacional. Há, evidentemente, razões de sobra para essa atitude da sociedade, na medida em que políticos e partidos, no Executivo e no Legislativo, se tornaram agentes da corrupção e do desvio de recursos públicos. A imagem desses dois Poderes é muito ruim, por obra do que eles mesmos fizeram. Há, todavia, em curso uma deformação de caráter institucional, visto que Judiciário e Ministério Público se apresentam como a encarnação da ética, mesmo quando assumem posições nitidamente imorais, como na defesa dos seus privilégios, quando da abortada reforma da Previdência ou, agora, numa greve para a manutenção de um substancial auxílio-moradia. Os benefícios particulares surgem velados sob a máscara da luta contra a corrupção.
Reitere-se, aqui, uma condição própria das sociedades democráticas. Os membros do Poder Legislativo e os titulares do Executivo são eleitos, escolhidos pelos cidadãos. Eis um fato da soberania popular, por mais perniciosos que possam vir a ser os resultados dessa escolha. Há outras vias, como a autoritária, em que não há escolhas eleitorais, mas a designação pura e simples dos governantes pelos que detêm o uso da força. Se o Judiciário e o Ministério Público, não escolhidos pelos cidadãos em processos eleitorais, estiverem enveredando pelo caminho de serem eles os “governantes”, estariam entrando num processo de tipo autoritário, embora com o apoio da sociedade, farta dos políticos.
Uma forma de resgate do equilíbrio entre os Poderes e, mesmo, da soberania popular por intermédio de seus representantes seria, por exemplo, a Câmara dos Deputados promulgar decretos legislativos anulando atos excessivos tanto do Ministério Público quanto de ministros do Supremo. Seria uma sinalização de que há limites no que diz respeito à competência da Suprema Corte, cabendo ao Legislativo exercer sua função própria de representante do povo. Atos monocráticos de ministros não são atos de representação popular, que só podem ser exercidos por aqueles que se submeteram a processos eleitorais.
O resultado de todo esse processo é um nítido enfraquecimento da posição do presidente, com este nem podendo exercer convenientemente a sua autoridade estatal. Vê-se obrigado a dar explicações todo o tempo, descuidando-se, em consequência, das atividades propriamente governamentais. Justifica-se incessantemente, quando o País tem urgências que não vão merecer, então, o tratamento adequado. O presidente, na verdade, encontra-se encurralado, como se os artífices desse processo de cunho político tivessem como único objetivo enfraquecê-lo. Para além de uma questão eleitoral, há o problema do exercício mesmo da autoridade. Aparentemente, trata-se do presidente Michel Temer, quando a questão diz respeito não somente a qualquer presidente que venha a ocupar o seu lugar, mas ao destino da democracia brasileira.
*Professor de filosofia na UFRGS.
Fonte: O Estado de São Paulo (8)19/03/1

Personalismo e a arte da manipulação (Marcus André Melo)

Na Argentina, em 1924, uma facção da União Cívica Radical (UCR) fundou um novo partido sugestivamente intitulado União Cívica Radical Antipersonalista. Se o PT –que enfrenta dilema similar à UCR—seguisse o exemplo, mudaria seu nome para Partido Antipersonalistados Trabalhadores.
Blague à parte, a questão remete ao dilema central para partidos políticos com lideranças carismáticas, maiores que eles próprios: como conciliar sobrevivência individual de seus líderes e da marca do partido?
A resposta depende da relação entre o partido e a liderança personalista e da força do primeiro. Depende também se ela está em declínio ou em ascensão.
No caso argentino, a cisão foi uma reação à hegemonia exercida sobre um partido forte por um líder carismático —Hipólito Yrigoyen (1852-1933)— que ocupou a presidência duas vezes. E deu certo: os Antipersonalistas elegeram um presidente. Mas durou pouco. A sina de Lula e do PT só o tempo dirá.
No caso das lideranças carismáticas emergentes, sua ascensão ocorre quando logram introduzir uma nova dimensão na política, em um padrão em geral “single issue” (monotemático), que será também seu calcanhar de Aquiles. E muitas vezes em resposta a um choque. William Riker, que incorporou a teoria dos jogos à ciência política na década de 1960, chegou a cunhar um neologismo –“heresthetics”— para designar a “arte de manipular dimensões da disputa política”.
O caso da disputa presidencial atual na Costa Rica é ilustrativo. O franco favorito nas eleições é um pastor que é o único representante de seu partido na Assembleia Nacional. Seu bordão de campanha é monotemático: proibir a união homoafetiva no país, questão que galvanizou a opinião pública devido a um choque: a decisão favorável da Corte Interamericana de Direitos Humanos em caso judicial recente.
“Mito” em ascensão, Bolsonaro tem sido eficiente em introduzir a segurança pública e a crise de autoridade como uma nova dimensão na disputa política vertebrada, nos últimos 25 anos, por questões redistributivas (inclusão social e desigualdade). Bolsonaro —qual seu partido mesmo?— não “inventou” esta dimensão nem ela é produto de um choque: estava à espera de alguém que a mobilizasse.
Inclusão, corrupção e segurança estão em disputa simbólica. Em uma sociedade profundamente desigual e que foi submetida ao choque da Lava Jato, candidaturas “single issue”, de partidos sem recursos ou capilaridade, têm limitações severíssimas. Mas em eleições com dois turnos o sarrafo é baixo: com pouco mais de 15% dos votos pode-se chegar ao segundo turno. Um choque –como um assassinato– poderá criar uma janela de oportunidade. A muralha vem depois
(*) Marcus André Melo é professor de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e doutor pela Sussex University.
Fonte: Folha de São Paulo (19/03/18)

Um novo partido democrático para o Brasil (Alberto Aggio)

O Brasil vive um momento dramático. Os brasileiros irão às urnas em outubro esperando que o país encontre saídas reais para a crise e um novo sentido de futuro. As últimas escolhas e a composição dos últimos governos deixaram sequelas profundas que comprometeram a credibilidade da política. Hoje, a crise ética é uma fratura aberta, a segurança pública um descalabro, acossada pelo crime organizado. Parcas melhoras na economia e no emprego não fizeram alterar esse cenário de desesperança.
Diante da confirmação da condenação de Lula pelo TRF4, que deve ceifar sua candidatura presidencial, o país tem diante de si o desafio de superar o lulismo. A corrupção sistemática que arrasou o país nos anos do lulismo abalou todo o edifício político que havia sido montado nesses anos de democratização. O cenário pós-Lula deverá requisitar o concurso do conjunto da sociedade, da opinião pública, dos intelectuais, dos partidos políticos e de todos aqueles que possam se mobilizar pela reconstrução do país.
Lula e o PT nasceram no outono do autoritarismo como peças do “sindicalismo de resultados”, com roupagem e retórica de esquerda. No governo, analogicamente, o lulopetismo foi uma “esquerda de resultados”, nefasta à sociedade brasileira, especialmente aos mais pobres pois os subalternizou, fixando-os em seus interesses individuais e impedindo qualquer perspectiva de elevação cultural e política que os convocasse a formular e compartilhar um projeto nacional e civilizatório. O lulopetismo foi tóxico à democracia e à esquerda. Como escreveu Demétrio Magnoli, em artigo recente, “a ‘esquerda’ lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza” como horizonte de satisfação hedonista das massas. A pragmática petista contou, das origens até agora, com a anuência da “esquerda maximalista” que soldava apoios ao “grande líder” quando julgava necessário e conveniente. Um papel jogado também pelos intelectuais das universidades públicas. Foi assim que o lulopetismo condenou o Brasil a não ver realizada a social-democracia ou o reformismo que poderiam instaurar um novo cenário histórico no país. Em nome do mito e servindo-se dele, o PT bloqueou a afirmação de uma esquerda democrática, defensora das reformas e aberta ao novo.
No Brasil de hoje, as ruas, que foram essenciais em 2013 e no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, esmoreceram, mas não se despreocuparam. Como se sabia, seria ilusão esperar delas uma saída clara para a crise em que o país mergulhou. Sem conseguir estancar a crise ética, o governo Temer não produziu a expectativa positiva que se esperava, mesmo com uma oposição fraca e prisioneira do lulismo. A política que havia revivescido acabou por não se consolidar. Resultado: o drama se instalou, com uma sociedade órfã sem poder confiar no governo ou na oposição.
A expectativa se voltou para as dimensões externas à política, notadamente para a Operação Lava Jato, que cumpria exemplarmente o seu papel republicano e constitucional. Desorientada, a opinião pública passou a admitir saídas ilusórias e despropositadas. Alguns continuaram a ver nas ruas, via democracia direta, a alternativa a esse estado de desorientação. Outros concluíram que decisivo seria “dar o poder” aos “homens de toga” como substitutos da má política. Embalados pela ânsia de poder, outros ainda viram nas eleições presidenciais de 2018 a salvação mediante apoio a algum outsider, uma sedução ao transformismo que não faria mais do que prolongar nossa agonia; por sorte parece que essa febre está cedendo. De toda forma, como sabemos, a saída está na política e é em torno dela que devemos nos reagrupar.
É nesse cenário que se deve valorizar a recente abertura do Partido Popular Socialista (PPS) aos chamados “movimentos cívicos” que brotam na sociedade com o objetivo de renovar ou refundar a política. Um partido político abrir-se ao diálogo com o que há de autonomamente organizado na sociedade é sempre saudável. Isso pode gerar novos ares novos e novas perspectivas, especialmente se o objetivo for renovar os nossos carcomidos costumes políticos e ultrapassar essa fase nefasta da vida política brasileira.
Sucedâneo do antigo PCB, para o PPS isso é fundamental. O PPS é um partido pequeno e, na conjuntura atual, necessita eleitoralmente dessa abertura. Esse talvez seja o sentido mais imediato dessa aproximação com os chamados “movimentos cívicos”, como o Agora, o Renova Brasil e o Livres, além de outros. Na linguagem destes movimentos, a perspectiva eleitoral também é evidente e talvez até mais explícita. A atrasada legislação eleitoral brasileira não permite as chamadas listas cívicas de candidatos autônomos e, por isso, os movimentos precisam se credenciar nos partidos políticos para seus candidatos postularem um lugar na disputa. O PPS abriu essa porta a eles.
Entretanto, para o PPS talvez seja mais do que isso ou talvez possa ser mais do que isso. Intencionalmente ou não, o fato é que essa abertura (e mesmo as circunstâncias em que ela se realiza) pode colocar um desafio novo ao PPS. Em casos assim, de uma abertura à sociedade, à novas culturas política, como não poderia deixar de ser, abre-se a discussão em torno do destino dessa organização política.
Pode-se dizer que entre o fim do PCB e o advento do PPS, até os dias que correm, o PPS configurou-se essencialmente como um partido pós-comunista, com aderentes que vieram de diversas culturas políticas ou até mesmo de nenhuma, mas com um núcleo dirigente político caudatário da história e da cultura política do pecebismo. O PPS é antes de tudo um partido pós-pecebista, que busca valorizar o que entende como positivo na trajetória do “velho partidão”, especialmente sua postura democrática, adotada depois de 1958 e realçada no combate à ditadura militar que se impôs no Brasil entre 1964 e 1985. O pecebismo é aqui tratado como uma cultura específica do movimento comunista internacional que deu origem e guiou os passos da trajetória do comunismo no Brasil. Como em outros países, a versão nacional do movimento comunista estabeleceu uma característica especial a cada um dos partidos. No caso brasileiro, o pecebismo foi uma espécie de ato de “civilização do comunismo” por meio de sua adesão à política democrática. Daí a ambiguidade sempre marcante do PCB, especialmente depois da Declaração de Março de 1958 que acabou por dar ao partido (talvez da mesma forma que ocorreu com o Partido Comunista Italiano, guardadas as devidas proporções) uma espécie de “dupla alma”: mantida a adesão ao comunismo internacional, buscou organizar sua linha política que procurava ler cuidadosamente a situação nacional, integrando-se às lutas democráticas do seu povo.
Como pós-comunista, o PPS trouxe para dentro de si as características marcantes do pecebismo e, talvez por isso, tardou muito a encontrar uma nova identidade. Demorou muito em admitir que o seu ideário anterior, o comunismo, havia fracassado e não apenas havia sido derrotado (em certo sentido, a ideia de derrota ainda prevalece, uma vez que ainda se fala a partir da trajetória vivida, ou seja, do momento comunista ainda incrustrado no PPS). Tardou muito também a se perceber como partido reformista, sem ambiguidades, no sentido de que as reformas devem compor uma perspectiva de futuro e de destino e não uma etapa de um processo revolucionário ou transformador, como pensavam antigamente os comunistas. A fase pós-comunista do PPS se fixou como uma inercia mental que o dificultou a ir além, malgrado alguns esforços momentâneos e isolados.

Assim, para além do eleitoral, para o PPS, a abertura aos “movimentos cívicos” talvez possa se constituir num momento particularmente precioso, histórico, que se volte para a perspectiva de se pensar na criação de um novo sujeito político. É ilusória a fórmula de um “partido-movimento”, na medida que isso deve fazer parte de qualquer processo de renovação ou refundação dos partidos atuais, especialmente à esquerda do espectro político-ideológico. Assim como é taxativa e fora da realidade a assertiva de que os partidos “têm prazo de validade determinado”. Há partidos que morrem, que se desqualificam, que se renovam, que se refundam e que nascem. O PCB e o PCI morreram, o PTB e o MDB se desqualificaram, o PD italiano e o Partido Liberal canadense, imersos nas incertezas da democracia e do seu jogo eleitoral, se renovam e se refundam, o Podemos, na Espanha, e o En Marche, na França, são novas criações que derivam das lutas efetivamente populares nos seus países por renovação da política, e assim por diante. A lista seria grande e aqui menciono apenas alguns exemplos. Mas o certo é que a questão não é simplesmente a mudança de nome dos partidos, em especial quando o critério for apenas eleitoral, sem vínculos políticos e simbólicos com o que se passa na sociedade (falar em Movimento23, como às vezes se cogita, é algo que, ao nosso ver, não se deve acolher em razão de sua exclusiva dimensão eleitoral, sem vínculos simbólicos nem com o passado nem com o presente)
Fala-se eufemisticamente de uma nova “formatação” ou “formação política”. Mas, realisticamente, se deveria falar num novo partido político, com novo nome, novo programa, novos métodos, novas aberturas, nova identidade. Instituir uma nova formação partidária com os mesmos vícios do antigo comunismo (justiça seja feita: não apenas dele), como a eternização das direções e o controle férreo da sucessão dos quadros dirigentes, não terá nenhuma valia.
Se essa abertura do PPS aos chamados “movimentos cívicos” avançar, para além do eleitoral, será uma perda de oportunidade histórica não superar a fase pós-comunista do partido e, com ela, decretar o fim das suas estruturas e costumes inerciais e o nascimento de um novo sujeito histórico, não mais pós-comunista e muito menos comunista. Ao nosso ver, não se deve perder aqui a orientação que está identificada na marca da esquerda democrática”, embora do ponto de vista programático poderá haver uma maior abertura a elementos do que se pode chamar de “esquerda liberal” ou mesmo um “centro-esquerda liberal-democrático”, como vem ocorrendo na França, na Inglaterra e no Chile. O presente está aberto e o que fizermos agora dirá quais serão os nossos caminhos para o futuro.
Os termos deverão ser claros: um novo partido, uma força cosmopolita e reformista que possa, além de governar o país, ser capaz propor uma visão geral e uma ideia do futuro diante de um mundo que muda de maneira vertiginosa e profunda. Que seja capaz de responder às necessidades e também aos desejos de todos aqueles que querem trilhar esse caminho carregando consigo suas legítimas preocupações, anseios e ambições.
Devemos partir claramente de uma verdade insofismável: o cenário global é complexo assim como a revolução tecnológica em curso constitui-se numa grande oportunidade. Contudo, a sociedade em seu conjunto e o Estado brasileiro, em especial, deve estar equipado para enfrentar os problemas que também derivam dessa grande transformação. Esse novo partido democrático deve propor medidas de fortalecimento da nossa economia para que o país volte a crescer, com qualidade e sustentabilidade, e a ser visto como um playerimportante no mundo, libertando suas energias e seu enorme potencial. O Brasil tem todas as credenciais para proporcionar aos seus cidadãos os meios para uma vida digna e as oportunidades para a realização de suas ambições, como indivíduos e como uma comunidade que busca reafirmar suas identidades no momento em que irá completar 200 anos de existência como país independente.
É, certamente, uma batalha dramática e exigente frente a todos os desafios que temos pela frente, cujo inimigo maior são as promessas, imprudentes e perigosas, que comprometem os horizontes fiscais da República além de escamotearem, com políticas econômicas dignas de desenhos autárquicos do passado, os equívocos trágicos que a história, mesmo a mais recente, nos têm ensinado.
Vivemos um momento de resgate da política e de refundação. Não há razão para se partir do zero, mas também não há razão para imaginarmos que o novo cairá do céu ou derivará de qualquer retórica mercadológica ou marqueteira. Também não há razão para acreditar que os brasileiros de bem não construíram, mesmo que contraditoriamente, um país cheio de vitalidade e que, transformado, deverá ser um excelente lugar para se viver. É preciso extrair do esforço democrático de luta dos brasileiros, tal como se fez na luta contra o autoritarismo, os fundamentos de um amplo programa de reformas que deverá, sem as falsas promessas e ilusões fáceis da demagogia e da antipolítica, transformar o país. É hora de nos atualizarmos ao mundo e vivermos com sinceridade os desafios do futuro. Não surgirá efetivamente nada de novo e positivo nessa quadra se nossos propósitos não forem largos e claros visando uma atualização verdadeira e realista. Trata-se, desta forma, de uma oportunidade histórica que não pode ser vivida como “oportunismo” ou mais um “transformismo”.
Não surgirá nada de novo nessa quadra se nossos propósitos não visarem a uma atualização verdadeira e realista. As ideias-chave para tanto são a valorização do trabalho, da ética e da República, estímulo à inovação e ao crescimento econômico, visão social consonante com o mundo em transformação, democracia e novo reformismo. Tudo depende de cada um e de todos nós. De um pequeno partido e de movimentos renovadores da política formados por pessoas que devem, como o conjunto da população, estarem no centro das nossas preocupações e dos nossos horizontes.
(*) Professor titular de História da Unesp/Franca.
19 de março de 2018

Presidência para poucos (Fernando Limongi)

O quadro de candidatos à eleição presidencial permanece indefinido. A comparação com 1989 voltou à baila. Caminharíamos para uma eleição marcada pela pulverização. É certo que a política brasileira saiu dos trilhos habituais, mas isso não significa que a lógica que dita a redução de candidaturas em eleições majoritárias tenha deixado de operar.
Dois fatores contribuem para atrasar a definição do quadro de candidatos. O primeiro deles é a perda de força do PT, cuja competitividade forneceu o eixo sobre o qual girou a competição eleitoral no Brasil pós-redemocratização. O PT vinha entrando na disputa com algo em torno de 30% dos votos garantidos. A alternativa para os demais partidos era simples: ou se aliar ao PT ou formar uma frente para derrotá-lo. Poderia não haver acordo sobre quem comandaria a frente anti-PT, levando a formação de terceiras vias, mas o PT era o partido a ser batido. Assim, por exemplo, nasceu a aliança PSDB-PFL, em 1994.
Com Lula candidato, o PT largaria bem, controlaria os votos da esquerda e era presença certa no segundo turno. A decisão do TRF-4 bloqueou a candidatura Lula e paralisou o PT, alterando radicalmente a estrutura da competição eleitoral. Não se sabe ao certo qual a força eleitoral do PT sem Lula e muito menos quanto Lula será capaz de influir no processo eleitoral, se não for candidato. Não por acaso, a movimentação na esquerda, controlada pelo PT desde 1994, passou a ser intensa. Ciro Gomes (PDT), Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela D'Avila (PCdoB) já se puseram em campo para disputar um eventual espólio petista.
O segundo fator distintivo é a ausência de um candidato forte do governo. Desde 1998, em três das cinco eleições, o(a) presidente se candidatou à reeleição. Nas outras duas, o governo tinha candidato(a). Assim, de saída, a oposição sabia que precisava ter candidatura forte para derrotar o governo.
Michel Temer não dispõe da mesma força eleitoral que seus predecessores. Pode ser candidato, mas sua popularidade atual não o coloca automaticamente - ou só o colocaria milagrosamente - no segundo turno. A máquina federal e o poder de fogo do MDB não devem ser minimizados, mas não são suficientes para destacar a candidatura presidencial das demais.
A fragilidade atual desses dois polos de estruturação da disputa, o PT e o governo, incentiva o lançamento de mais candidaturas. Se não há candidatos fortes a bater, se todos são fracos, por que não tentar a sorte?
Entretanto, a lógica que leva à redução do número de candidaturas segue operando. Candidatos devem pesar sua probabilidade de vitória e os custos envolvidos. O custo envolvido vai além das despesas de campanha. Inclui a eventual contribuição para a eleição de um adversário, como inclui também as oportunidades perdidas, por exemplo, no plano estadual.
Para fins de raciocínio, imagine-se um cenário em que Michel Temer (MDB), Henrique Meirelles (PSD), Rodrigo Maia (DEM), Geraldo Alckmin (PSDB) e Jair Bolsonaro (PSC) mantenham suas candidaturas. Imagine ainda que Ciro Gomes (PDT), Guilherme Boulos (PSOL) e o PT, digamos, com Patrus Ananias, também entrem na disputa. Com tantos candidatos, teríamos um quadro eleitoral análogo ao de 1989.
Nesse cenário, a tarefa repassada ao eleitor seria enorme, beirando o imprevisível. Se os eleitores dispersassem seus votos, seria possível passar ao segundo turno com votações baixas, como Lula, em 1989. Neste cenário improvável, mas não impossível, poderíamos ter um segundo turno entre candidatos de um mesmo bloco ideológico, por exemplo, Ciro Gomes versus Patrus Ananias, ou Geraldo Alckmin versus Rodrigo Maia. O estímulo para alianças vem daí: partidos procuram evitar que resultados como esse ocorram.
Obviamente, a dispersão de votos é uma possibilidade remota. O mais provável é que o eleitor vote útil, isto é, que opte pelo candidato mais forte de cada um dos blocos. Obviamente, os partidos, sabendo que isso pode ocorrer, irão se antecipar e canalizar as opções dos eleitores. Assim, os candidatos mais fracos de cada bloco, prevendo que serão deixados pelo caminho, veem-se induzidos a sair da disputa e apoiar aliados.
O processo não é simples, nem opera no piloto automático, mas marca tanto as eleições presidenciais quanto as para o governo estadual. Enquanto o quadro não se consolida, todos têm incentivos para blefar, negociar e obter concessões. Mas na hora da onça beber água, a racionalidade política prevalece e duas ou, no máximo, três candidaturas viáveis sobrevivem. Não há razões para supor que 2018 desafiará essa lógica.
O PSD, por exemplo, sabe que não tem cacife para entrar na disputa pela presidência. Gilberto Kassab não se comoveu com a amizade canina de Meirelles e mandou avisar que o partido que comanda tem ambições mais limitadas, que seu objetivo é garantir o lugar de vice na chapa do PSDB ao governo do estado de São Paulo. Rodrigo Maia ainda não convenceu nem o pai, interessado em vaga no Senado do Rio de Janeiro, que seja mais do que um trainee, que sua candidatura seja para valer. As dificuldades da candidatura de Michel Temer também são consideráveis. O MDB, desde 1998, abandonou a disputa pela presidência para ganhar a liberdade de formar alianças circunstanciais nas eleições ao governo estadual.
Nos próximos meses, os partidos serão forçados a definir suas estratégias, considerando ganhos e perdas que ter candidato próprio à presidência acarretam. Como sempre, a maior parte optará por se retirar do páreo principal, concentrando suas apostas em cargos menores. Poucos partidos têm estrutura e força eleitoral para bancar uma candidatura presidencial. A presidência é para poucos.
(*) Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap
Fonte: Valor Econômico (19/03/18)

Reconstruir a confiança na política (Fernando Abrucio)

O próximo presidente terá muitas tarefas e desafios pela frente. Reconstruir a administração pública, fazer reformas que deem sustentabilidade fiscal ao país, retomar um crescimento robusto, combater mais firmemente a desigualdade social com políticas públicas efetivas, priorizar a educação como único passaporte seguro para o futuro, em suma, a lista é extensa e complexa. Mas o eleito nada conseguirá fazer se não conseguir recuperar a confiança do povo na política e nos políticos. No fundo, o que está em jogo é a credibilidade das instituições estatais, e a descrença nelas torna qualquer nação inviável.
Uma prova da enorme desconfiança em relação à política foi dada por pesquisa do Ibope/CNI divulgada no dia 13 de março. Ela mostrou que 44% da população está pessimista em relação à eleição de 2018. Mais 36% entram no grupo dos "indiferentes": 13% não sabem ou nem responderam e 23% não estão nem otimistas nem pessimistas. Somente 20% se dizem otimistas. Esse mau humor gira em torno exatamente daquilo que dá mais poder à sociedade e, sobretudo, aos mais pobres: o voto.
O país encontra-se num imbróglio político desde o fim da eleição de 2014. A crise econômica, a Operação Lava-Jato, o atribulado processo de impeachment e o mandato-tampão de um presidente que, ao fim e ao cabo, tem baixíssima aprovação popular, são partes de uma história cujo único desfecho feliz só poderá ocorrer após a eleição direta de um governante. Legitimidade é o elemento que mais falta na política brasileira atual. Não adianta falar em reformas ou debatê-las sem ter um governo que gere confiança na população. Ressalto que sou a favor de mudar muita coisa no Estado brasileiro, mas quando há alterações profundas sem que haja amparo popular, a política perde o elo que a torna fiadora do contrato social.
A recuperação dessa legitimidade não será fácil. Inicialmente porque uma parte importante dos políticos está em maus lençóis, com processos em andamento ou com denúncias contra eles. Os eleitores acreditam que o país está num "mar de lama" e casos como o do ex-governador Sérgio Cabral, que surpreende com a descoberta de negociatas extraordinárias a cada semana, favorecem essa sensação. Claro, os políticos não são todos são iguais e, seguindo a máxima do Estado de direito, nem todos podem ser tachados de culpados antes de decisões judiciais.
Além disso, a percepção de aumento de corrupção pode representar, paradoxalmente, um sentido contrário, isto é, o fortalecimento do combate de atos ilícitos. Ao colocar mais luz nos problemas, desvendamos algo que já existia, mas que não era conhecido.
De todo modo, é preciso recuperar a credibilidade dos políticos no que se refere ao uso dos recursos públicos. Evitar a impunidade é um passo importante, punindo corruptos e corruptores. Mas é necessário também diferenciar bem os casos junto à população, não colocando todos num mesmo balaio. O ponto central, no entanto, é outro: só haverá uma alteração desse cenário caso as instituições sejam aperfeiçoadas, mudando, por exemplo, o modelo de indicações para o alto escalão governamental e aumentando a transparência e a competição entre os fornecedores de bens e serviços ao governo. E a sociedade tem de saber que sem a política e os políticos, não haverá reformas institucionais democráticas.
Uma parcela da opinião pública apostou nos últimos anos que o Ministério Público, a Polícia Federal e o Judiciário fariam o serviço regenerador que os políticos não conseguiram realizar. Hoje, há dúvidas na sociedade quanto à pertinência dessa teoria. Por exemplo, existem reclamações quanto a parcialidade da apuração e das sentenças: alguns casos andaram muito mais rápido que outros e, em certas situações, a régua não foi igual para todos. Um exemplo disso foi a decisão do TSE em relação à chapa Dilma-Temer, um dos maiores escândalos da história da República, quando ambos foram inocentados por "excesso de provas".
O sistema de Justiça não tem mais a unanimidade de seu apogeu, embora esteja numa posição bem melhor do que a da classe política profissional. Grande parte do problema será resolvido com mais parcimônia e impessoalidade na sua atuação. Ao se exporem excessivamente em algumas ações e decisões recentes, o Ministério Público e o Judiciário - incluindo aí a mais alta Corte, o STF - entraram indevidamente na seara política. Podem ajudar mais se cumprirem suas funções constitucionais e pressionarem os políticos por meio dos freios e contrapesos, e não inventando ou alterando as regras do jogo.
A recuperação da credibilidade da política passa, ademais, por uma campanha presidencial mais sincera do que foi o teatro de 2014. Retomando a pesquisa do Ibope/CNI, 75% dos entrevistados dizem não acreditar nas promessas de campanha. Sabe-se que um pouco de ceticismo em relação aos políticos é saudável para a democracia. Mas o grau a que se chegou no Brasil pode ter transformado o remédio em veneno. Dilma prometeu uma coisa e fez outra. Aécio nunca aceitou a derrota e foi um conspirador desde o dia seguinte da eleição. Marina foi massacrada injustamente na eleição, mas seu desaparecimento posterior também foi lido como um esquecimento do grande eleitorado que conquistou. Mais recentemente, a saída de João Dória da Prefeitura de São Paulo para concorrer a governador, quando havia prometido cumprir o mandato de quatro anos, é mais uma facada na confiança dos eleitores em relação aos políticos.
A eleição de 2018 parece bastante incerta e deverá ser muito competitiva, mas os desafios de 2019, para quem for o vencedor do pleito, serão muito maiores. Por isso, os principais candidatos poderiam começar a preparar melhor o terreno, especialmente depois do que aconteceu com Dilma e Aécio, que tiveram milhões de votos e, hoje, são metaforicamente "anões políticos".
Três coisas seriam importantes aqui. Primeiro, procurar fazer uma campanha que coloque os principais problemas do país em evidência. Fugir dos temas é um passo para o desastre futuro. Os eleitores não querem, a qualquer custo, a apresentação de um mundo róseo. Obviamente que há questões com maior rejeição popular, não obstante, políticos devem ter coragem para defender suas ideias, e conversar com os eleitores sobre as implicações de cada ato - ou da inação.
Enfrentar questões espinhosas não quer dizer que haja apenas uma única resposta. Construir com vários setores sociais as soluções dos problemas é um segundo caminho para evitar que 2019 repita 2015. Se é preciso ter coragem para defender ideias impopulares, mostrando números e argumentos, também é fundamental conversar amplamente e já na campanha montar formas de compromisso político e social que facilitem posteriormente a aprovação e a aceitação de reformas. Decisões técnicas, baseadas em evidências, não podem ser antagônicas à negociação e à construção da legitimidade.
Mas a lição mais importante dos últimos anos é que ninguém governará o país pelo mero jogo do confronto. A polarização só tem trazido males às relações entre partidos, entre os grupos sociais e à própria ideia do que é a política. No Brasil de hoje vigora uma visão schmittiana da política, para lembrar as ideias de Carl Schmitt: a essência da política seria tratar o adversário como inimigo e procurar eliminá-lo a todo custo. Na internet se vê isso na sua forma mais pura e selvagem, mas isso se esparramou para o conjunto das instituições políticas.
A própria linguagem da política se deteriorou nos últimos tempos. Os xingamentos fáceis e a leviandade ganharam terreno. Os eleitores estão repetindo esse modo vulgar em suas conversas. Ao virar conversa de botequim, a política perde a atratividade e a elegância, e fica muito difícil não ser pessimista num mundo em que todos são vistos como inimigos.
Para que os cidadãos saiam da atual situação de enorme desconfiança com a política e nos políticos, as lideranças terão de se orientar por um debate mais civilizado, que deixe as portas abertas para o diálogo, para a aceitação da vitória e da derrota. Como provavelmente teremos segundo turno, o vencedor deverá dizer que governará para além (mas não aquém) de seus eleitores e o derrotado deverá dar uma trégua ao novo governante, aceitando conversar sobre os pontos básicos que interessam a todos. A repetição do comportamento de Dilma e Aécio nos levará ao precipício e se começarmos 2019 como fizemos em 2015, o pessimismo da população não será apenas em relação aos políticos, mas também espraiará para a democracia como um todo.
O foco de atenção nos próximos meses, portanto, deve estar na vigilância dos atos e falas dos principais líderes políticos do país, dos candidatos a presidente e dos postulantes ao Congresso Nacional. Se os eleitores quiserem recuperar a confiança na política, não deixem de cobrar um outro tipo de comportamento dos futuros eleitos. Afinal, apenas a solução democrática dá poder aos cidadãos. E somente essa consciência pode recuperar a importância do mundo da política.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP.
Fonte: Valor Econômico (16/03/18)

segunda-feira, 12 de março de 2018

Há três características da historiografia .... (Idelber Avelar)

(Obs: encontrei esse texto compartilhado no Roda Democrática - grupo no Facebook. Não conheço o autor e não encontrei o título, mesmo assim achei importante postar)
Há três características da historiografia e das ciências sociais de esquerda que andam um pouco ausentes na maioria das explicações de esquerda para a história recente do Brasil, incluindo-se a maioria das explicações acadêmicas.
Tradicionalmente, as ciências sociais de esquerda: a) enfatizaram o papel protagônico dos povos, dos coletivos, e desenfatizaram as intrigas palacianas; b) entenderam que a forma jurídica – às vezes explicitada como “Direito burguês”-- não é senão um elemento subsidiário do embate principal, que é sempre político; c) defenderam que o cidadão que sai às ruas nunca é um simples manipulado, mas articula ali, como pode, os seus interesses (as linhas de Gramsci sobre o engajamento do homem comum sempre conter algo de fé são exemplares aqui), dentro dos limites de alguém que “faz sua história, mas não nas condições que escolheu”.
a) No entanto, boa parte dos materiais sobre o ano de 2015 no Brasil (incluindo-se as ementas que circularam de cursos sobre o “golpe”) narram as intrigas palacianas, os vaivéns do PSDB, as manobras de Cunha, Temer e Calheiros, as trocas ministeriais de Rousseff, as filigranas da cobertura da Globo etc. e em nenhum momento parecem incorporar como elemento sério de análise o fato de que milhões de brasileiros saíram às ruas ao longo do ano, em manifestação de dimensão inédita em 15 de março e ainda massiva em agosto do mesmo ano. É curioso, considerando-se a atenção que as ciências sociais de esquerda sempre demonstraram com os movimentos coletivos. Parece que aquele, verde-amarelo, não conta -- o que de novo é curioso, visto que a primeira força política a conferir sentido político à camisa da seleção na história recente não foi a direita, e sim a esquerda ex-governista, em 2014, na época do “vai ter Copa sim e se reclamar vai ter duas”.
b) Também no tratamento do Direito as ciências sociais, analistas e militantes de esquerda retrocederam a formas pré-marxistas ao lidar com o lado legal do impeachment. Não é comum na tradição intelectual de esquerda fazer apelos ao “justo”, ao “legal”, a “crime” ou “não crime”, a “provas” ou “ausência de provas”, tal como passou a ser moeda corrente no discurso acadêmico de esquerda brasileiro dos últimos anos. Pelo contrário, para a tradição intelectual de esquerda, o Direito sempre foi ramo subsidiário e classista, no qual a pergunta pelo “justo” ou a naturalização do conceito de “crime” não faria o menor sentido. Inclusive as próprias forças simpáticas ao governo deposto, durante os 14 anos em que governaram o país, jamais trataram o Direito como palavra final. Pelo contrário: quando eram apontadas as ilegalidades da usina de Belo Monte, por exemplo, seu contra-argumento nunca era que a usina era, sim, legal. A resposta era sempre que, mesmo ilegal, ela teria que ser feita e os vencedores das eleições tinham a legitimidade para fazê-la. O argumento era sempre o da Realpolitik. A filigrana jurídica começa a importar, para muita gente, apenas a partir da deposição de Rousseff.
c) Também a partir de 2015 esses discursos parecem abandonar a premissa secular da esquerda e das ciências sociais de que interesses específicos sempre são articulados pelos blocos sociais que saem às ruas, de que por menos que esses sujeitos saibam relatar discursivamente esses interesses (voltamos a Gramsci: o homem comum engajado sempre tem algo de fé), eles nunca, em hipótese alguma, são apenas uma marionete vazia manipulada por alguma outra força. No entanto, tendo se ausentado da explicação das manifestações, tendo até mesmo fingido que elas não existiram, esses discursos de esquerda, acadêmicos e militantes tiveram que se limitar a cunhar termos como “manifestoche”, lamentável em todos os sentidos, já que parece sugerir que apenas os seus manifestantes são legítimos.
Eis aí, então, três bons critérios para avaliar o que se escreve, academicamente ou não, sobre o Brasil dos últimos anos: não fingir que não havia cidadãos nas ruas em 2015, não tratar o justo e o legal -- o Direito -- como palavra transcendental apenas quando se perde na política e não pressupor que manipulado é sempre o outro.

Onze candidatos e nenhuma ideia (Marco Aurélio Nogueira)

Será que somente o reduzido grupo dos que defendem e valorizam a necessidade de uma nova pactuação democrática consegue ver o tamanho do buraco em que caiu o País?
A fragmentação continua a avançar, trazendo consigo a sensação de que o próximo governo será marcado pela inoperância, pelo artificialismo da concorrência político-partidária e pela tensão ideológica. Ninguém parece se preocupar com o quadro e todos continuam a correr rumo ao precipício, que fica sempre mais próximo.
Cada candidato faz de conta que o problema não é com ele, mas com os outros, sempre tidos e havidos como “inimigos”. Falta cordialidade, desprendimento e tolerância entre os postulantes, e deles o problema se transfere para os eleitores, que já começam a se pegar nas redes.
Por enquanto são onze, que a preguiça analítica distribui entre esquerda, centro e direita, mas que a rigor pouco se diferenciam entre si, a não ser pelo tamanho da língua e pela volúpia de chegar ao poder. Outros mais deverão aparecer e embolar ainda mais a corrida. Como não há ideias postas na mesa, a atribuição do lugar que cada candidato ocupa no tabuleiro político e ideológico não passa de exercício classificatório desprovido de sentido. Serve tão-somente para que se delineie uma situação “ideal”, com polos que se contradizem. As contradições, porém, não são explicitadas. Nem as diferenças.
Dizem que é cedo para que pense em coligações. A incerteza geral, a fragilidade das postulações e a inexistência de conteúdos programáticos claros impediriam que se cogitasse, no momento, da formação de frentes políticas desenhadas para maximizar o poder de fogo de propostas perfiladas no mesmo espaço político-ideológico. A hora é de cada um testar sua densidade.
Pode ser. Mas nunca é cedo para se fazer o certo. A ideia de se levar o eleitor ao limite e de conclamá-lo a pensar no país só no segundo turno é uma opção suicida, que pode implicar a organização de uma disputa desconectada dos interesses populares e nacionais: daquilo que precisa ser feito.
A sociedade não merece ser tratada como se fosse uma coisa qualquer, menos importante que os caprichos, os interesses e as manias dos políticos.
A articulação dos democratas entre si, feita com generosidade, sem vetos e com programas claros, é uma saída tão evidente e tão plena de possibilidades que chega a surpreender que poucos se dediquem a ela.
(*) Marco Aurélio Nogueira é professor titular da UNESP
11 de março de 2018

domingo, 11 de março de 2018

O tempo do Planalto (Demétrio Magnoli)

Nesse ponto precoce da disputa presidencial, os números das pesquisas devem ser lidos pelo avesso. A sondagem recente da CNT/MDA reitera as fotografias anteriores, com Lula disparado à frente (33%), seguido por Bolsonaro (17%). A soma, 50%, equivale à parcela do eleitorado que rejeita os dois únicos candidatos amplamente conhecidos. O próximo presidente será, provavelmente, Mister X: o centrista capaz de falar a língua da maioria silenciosa. Daí, emerge a oportunidade visualizada pelo Planalto.
Segundo o levantamento, Lula bateria facilmente qualquer adversário no segundo turno. Mas a foto, captada bem antes do confronto no horário oficial de TV, assemelha-se às imagens das estrelas: o brilho de objetos distantes milhões de anos-luz é uma janela aberta para o passado. A mesma sondagem informa que mais de 52% concordam com a sentença condenatória do TRF-4. Só lulistas de carteirinha e analistas alucinados acreditam na inevitabilidade de triunfo do ex-presidente num hipotético turno final.
Na prática, o raciocínio é inútil. Lula estará fora da campanha quando o TSE declará-lo “ficha suja”, um ato que impedirá o país de acertar as contas políticas com o lulismo e propiciará a extensão da narrativa fraudulenta sobre o “golpe de 2016”. Contudo, os números indicam que o ungido de Lula tem tudo para alcançar o segundo turno. Quem concorrerá com ele?
Do ponto de vista do lulismo, Bolsonaro é o desafiante perfeito. Mas o discurso asqueroso, purulento, que empolgou uma minoria movida pelo rancor, traça-lhe um rígido limite eleitoral. No cenário sem Lula, ele salta para apenas 20% das intenções de voto e, na simulação de turno final, empata com uma Marina Silva ainda não declarada candidata. O pretendente odiento só chegará à etapa decisiva mediante um suicídio do centro político.
A paisagem centrista caracteriza-se pela fragmentação e por apostas especulativas. Marina tem um patrimônio eleitoral, mas carece do partido que se revelou incapaz de construir. Alckmin tem um partido em ruínas, devastado pelo bombardeio das denúncias e consumido por crônica dislexia política. Álvaro Dias e Rodrigo Maia são personagens em busca de autores e enredos. Diante do populoso vácuo centrista, o Planalto deu um passo à frente e montou uma estratégia. Seus três pilares são o projeto das reformas econômicas, uma promessa para os agentes de mercado, e as bandeiras populares da retomada do consumo e da política de segurança pública.
A candidatura potencial de Temer articula-se atrás da intervenção federal na área de segurança do Rio de Janeiro e da criação do Ministério da Segurança Pública. Desemprego, corrupção e criminalidade formam as teclas quentes da corrida presidencial brasileira. A estratégia do Planalto toca a primeira e a última. O governo confia na expansão de suas taxas de aprovação, no ritmo da recuperação do emprego. Quase 70% aprovam a intervenção no Rio e 63%, o novo ministério. O nervo exposto do presidente corresponde à tecla do meio, fonte da letal taxa de rejeição de 88%.
Os 88% são de Temer, não de Raul Jungmann, o balão de ensaio do Planalto. O czar da Segurança, uma figura política sofisticada e livre de pendências judiciais. O Planalto não tem pressa: Jungmann ficará sob os holofotes pelos próximos meses, sem a obrigação de assumir uma candidatura, enquanto a coleção de candidatos centristas rema contra a correnteza. A aposta é que se reproduza a trajetória de FHC, o ministro da Fazenda catapultado à Presidência pelo Plano Real. Seria uma repetição da história, mas não como farsa.
Fonte: Folha de São Paulo (10/03/18)