Fatos não pensam. Logo, não podem ser tomados como critério definitivo da verdade. Na conduta humana, ao lado do juízo de fato (da constatação empírica e racional dos dados verificados na realidade), há de ter lugar também o juízo de valor (que envolve interpretações e escolhas inspiradas por noções éticas), seja na vida prática de todo dia, seja na política.
Nada mais óbvio, certo? Sim, nada mais óbvio. Não obstante, para que fique mais nítida a adversidade presente, o óbvio vai cumprir aqui uma função de esclarecimento. Sigamos, então, um pouco mais com o nosso óbvio.
Os que proclamam pautar suas decisões nos fatos, apenas nos fatos, fazendo parecer que suas conclusões são decorrências matemáticas, necessárias e inevitáveis de uma leitura objetiva dos eventos da natureza e da vida social, flertam com uma forma rebuscada de fraude, mesmo que não tenham a intenção de trair a confiança do interlocutor. As decisões que podemos tomar no plano da consciência – por mais frágil e instável que seja a membrana da consciência a revestir as deliberações de que somos capazes – implicam obrigatoriamente aspirações, desejos, identificações inconscientes, crenças e princípios morais dos quais mal nos damos conta. Em suma, os caminhos que cada um elege para si e para a comunidade encerram compromissos que, além da constatação dos fatos, guardam em si a pretensão de interferir na sucessão desses mesmos fatos. O óbvio, nada mais que o óbvio: a ambição (ou direito legítimo) de alterar a ordem dos fatos (ou de mudar o mundo) tem, portanto, parte com o imponderável, com a incerteza, de tal forma que quem escolhe aposta. Se os fatos não pensam, precisam do sujeito que pense para sobre eles agir.
Ponto. Fim das obviedades. Prossigamos agora com a adversidade.
Como os observadores mais atentos vêm apontando, vivemos um agravamento agudo da desvinculação entre o discurso político (incluído aí o agir) e o domínio dos fatos. Paixões como o ódio, a inveja, o ressentimento (e suas manifestações mais superficiais, como a xenofobia, o sexismo, o preconceito de classe, o racismo) subiram um ou dois degraus na hierarquia das configurações partidárias e no ordenamento do poder. A idolatria e a fúria tomam espaços que até outro dia contavam com a presença de alguma forma de discernimento crítico, ainda que rudimentar, de tal forma que comportamentos políticos assumem o aspecto de fervor religioso.
É a era do “pós-fato”, caracterizada pelo recrudescimento dos chamados “populismos”. Há exemplos profusos à esquerda e à direita: chavismos, trumpismos, bolsomitos, etc. Não é na coloração ideológica que essas novas e múltiplas formas de populismo se distinguem. O que as distingue é o abandono deliberado da modestíssima verdade factual como lastro da retórica. O populismo contemporâneo constrói-se em ataque permanente contra o domínio dos fatos: não se trata apenas de substituir o juízo de fato pelas crenças abiloladas, mas de substituir a lógica interna da política pela lógica interna das seitas fanáticas, mantendo mais ou menos intacto o invólucro de aparência política.
Não é por acaso que os papéis de igrejas e partidos se embaralham em tantos níveis no Brasil. Não é por acaso que o princípio democrático da separação entre Igreja e Estado se tenha perdido numa esquina da nossa História recente. Temos hoje no País líderes religiosos que encabeçam projetos explícitos de poder, assim como temos líderes políticos que se acreditam predestinados e ungidos por forças divinas. Durante muito tempo os analistas tratavam de encontrar explicações políticas para fenômenos religiosos. Agora, os mesmos analistas recorrem à anatomia das religiões – que não têm base nos fatos, mas na fé – em busca de analogias para o modo de proceder de siglas partidárias.
Quando uma dirigente partidária afirma que “para prender Lula (a Justiça) vai ter que matar muita gente”, deixa ver as fibras do fanatismo. De outro lado, a diferença de tratamento judicial que mereceram Dilma Rousseff e Michel Temer desvela um aparente descompromisso da política e da Justiça com o domínio dos fatos: Dilma foi destituída em função de uma acusação que transitava do barroquismo jurídico às abstrações mais intangíveis, condenada por um crime de responsabilidade que era difícil de entender e mais difícil ainda de explicar; quanto a Temer, flagrado numa gravação para lá de comprometedora, com ex-ministros e ministros que fazem fila para se sentar no banco dos réus, voa, incólume como um anjo, acima do alcance do Judiciário, sem que ninguém se preocupe em entender e muito menos em explicar o que quer que seja. A sensação de que os tribunais se permitem golfadas de partidarismo se adensa, enquanto o cenário político se inflama.
Há outros sinais de cisão entre a política e os fatos. O furor com que os seguidores fiéis do ex-presidente Lula se apressam a dizer que não há provas cabais contra ele no caso do triplex – e, em se tratando de um processo ainda não transitado em julgado, não está descartada a hipótese de que tenham razão – obscurece o fato (outra vez o fato) de que as evidências políticas e práticas de que ele usufruiu favores de empreiteiras para custear seu conforto pessoal (no famigerado sítio de Atibaia, por exemplo) constituem um embaraço ético de todo tamanho. Por que ninguém entre os seguidores fiéis se incomoda com isso? Por que seguem seguidores fiéis mesmo depois de tantos e tão graves sinais expostos de conflitos de interesse? Será que, para os seguidores, ainda que venha a se provar juridicamente inocente, Lula ainda é politicamente impoluto?
Enquanto uns e outros, de um lado e de outro, dissolvem o nexo entre política e fato, a regra do jogo democrático perde consistência, os extremismos se aprofundam e o debate público perde fertilidade.
Fonte: O Estado de São Paulo (18/01/18)
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