quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Indulto e abuso de autoridade (Roberto Romano)

Em tempos liberticidas cresce o poder dos que vetam a dissidência. Setores repressivos sequestram o Estado de modo oculto ou claro. O fato aparece na Igreja inquisitorial e no absolutismo, no império napoleônico, fascismos e domínios stalinistas. Durante o século 20 o medo recebe impulso dos aparelhos policiais, muitos unidos a juízes. Como açambarcam os monopólios do Estado (força, leis, impostos), a cidadania perde o controle sobre eles. Surgem ditaduras explícitas ou dissimuladas. Tal é o solo onde nascem as Seções Especiais de Justiça de Vichy, o império dos promotores e magistrados na URSS e na Alemanha hitlerista. O Brasil não discrepa daquela prática. Aqui, setores da ordem social serviram – e muitos servem – aos proprietários da República. Basta lembrar o caso Boi Barrica e a censura à imprensa. Expor dúvidas sobre atos e falas da toga significa crime de lesa moralidade, ética, patriotismo. Quem deles duvida é suspeito.
A caça à corrupção – não o combate ao fato, mas a busca de vigiar e punir a sociedade no seu todo, algo que refaz intentos de Savonarola ou Robespierre – assume ares de Cruzada. Quando ouço ou leio inquisidores pátrios, tenho a impressão de que voltamos aos hábitos que desgraçam a modernidade. Abro o Malleus Maleficarum. O manual traz a panóplia movida contra multidões levadas ao fogo “purificador”. Diz ele: “Se a crença de que existem seres como as bruxas é essencial à fé católica, manter obstinadamente o oposto tem o sabor da heresia. (...) Todos os que acreditam ser toda criatura mutável para o pior ou melhor, ou transformável em outro tipo ou semelhança, exceto pelo Criador de todas as coisas, são piores do que um pagão ou herético”. Dedução perfeita, impiedosamente mendaz. Se existem bruxas, elas fazem bruxarias. Ai de quem duvide dos crimes ou busque atenuar a punição! Acusadores não toleram senões. Quem ignora ou defende suspeitos de malefícios diabólicos merece a fogueira.
Algo semelhante ocorre nos regimes que pretendem “limpar” a sociedade. Sob a capa da luta contra a corrupção eles proclamam suas próprias convicções como bem sagrado que não admite críticas. Quem delas duvida é suspeito. Semelhante fanatismo vem de longa data. Ele se radicaliza em movimentos que o deveriam abolir. Sob Robespierre, “o incorruptível”, surge a lei dos suspeitos. Integrar a lista dos não confiáveis significa ser culpado. São suspeitos os que, “por sua conduta, relações, propósitos ou escritos, se mostraram partidários da tirania ou federalismo, inimigos da liberdade”. Depois, os que “não puderem justificar (...) seus meios de existência e o cumprimento dos deveres cívicos”. Suspeitos existem entre “os que não manifestaram seu apego à revolução” (Decreto 17/9/1793, Relativo às pessoas suspeitas). Só os fiéis incondicionais do poder não seriam (provisoriamente) suspeitos.
Com base em tais propósitos, afirma o político beato: “A lentidão dos julgamentos equivale à impunidade; a incerteza da pena encoraja os culpados (...) Punir os opressores da humanidade é clemência; os perdoar é barbárie” (Discursos e relatórios para a Convenção). Lemos e ouvimos em 2017 frases de Robespierre, inclusive no apelo ao republicanismo, ditas pela procuradora-geral da República e simpáticas à presidente do STF, para invalidar o indulto natalino. Mas o próprio governo jacobino é coalhado de corruptos. Já citei, aqui, trabalhos que provam tal asserção. Impiedoso para com os infiéis, o “governo dos puros” aboliu o direito de graça.
Tal perdão, antigo como o império romano, é exercido pelo rei absoluto como signo da soberania. Ele foi abolido no Código Penal de 1791, que veta “o uso de todos os atos que tendem a impedir ou suspender o exercício da justiça criminal” (lei de 25/9 e 6/10 de 1791). A clemência atenuava o rigor excessivo das leis impostas nos séculos 17 e 18 (cf. Y. Le Gall, Les Lumières et le droit de grâce). Meio para abolir a soberania de fato exercida pelos nobres em conúbio com a Igreja, o rigor das leis segue a centralização do Estado. Ao mesmo tempo, o direito de graça dá ao monarca oportunidade para negociar seu mando, pois mantém as draconianas leis da corte e sua possível suspensão. O jogo entre os dois aspectos move a razão de Estado.
Para Montesquieu, “a clemência é a qualidade distintiva dos monarcas”. A palavra justiçacom frequência é equívoca: “Foi dado a Luís 13 o nome de Justo, porque ele viu executar, com sangue frio, as vinganças de seu ministro. Ele era severo, não justo” (Pensées). Mas não se pode dizer que o pensador era amigo da impunidade (cf. D. W. Carrithers, La philosophie pénale de Montesquieu). Outra postura tem Beccaria: a graça “deveria ser banida numa legislação perfeita onde as penas serão moderadas e o processo regular e expeditivo”. O perdão é perigoso pois “fragiliza as leis, estimula a esperança da impunidade. Ele faz considerar a condenação um ato de força e dá a impressão de sacrificar a segurança pública à particular”. A Revolução deveria seguir Beccaria. Mas o Terror assume leis tirânicas, como a dos Suspeitos. Napoleão reintroduz a graça e desde aquele tempo ela existe na Carta francesa.
Retorno ao início e sugiro algo que pode atenuar a aporia vivida em nosso país, a de punir corruptos ou perdoar seus crimes. Importa coibir abusos ou desídias das autoridades. Alguns promotores e juízes são levados a ultrapassar limites, porque parte de seus pares permanece aquém da lei. Se todos devessem obediência às normas, os voluntarismos seriam menos frequentes.
A Grécia nos legou bons e péssimos usos da justiça. Antigas inscrições cretenses, como a de Dreros (século VII), buscavam evitar que “o processo judicial fosse corrompido ou abusado em proveito de ganhos políticos ou financeiros” (M. Gagarin, Early Greek Law). Entre as medidas para evitar práticas corruptas sob a capa da lei está a multa aos que movem processos cujas provas não são buscadas com prudente rigor. Os acusadores são condenados a pagar mil dracmas, além de perder a cidadania enquanto não entra nos cofres públicos a soma devida (A. R. W. Harrison, The Law of Athens). Retomar tais práticas não ajudaria no caso brasileiro?
Fonte: O Estado de São Paulo (03/01/18)

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