O manifesto das 100 francesas, estrelado por Catherine Deneuve, explodiu como uma bomba arrasa-quarteirão no meio do arraial neofeminista americano, com seus discursos e posturas reacionários, primando pelo obscurantismo repressivo. Não era para menos. Esse neofeminismo é uma degeneração grotesca do feminismo original da contracultura, na década de 1960, cujo libertarismo espalhou-se então pelo mundo. E sob o signo da “revolução sexual”, que hoje horroriza o neofeminismo puritano, fundado no combate ao desejo e na repulsa ao sexo.
É impressionante a degringolada. E justamente nos Estados Unidos, que nos deram a linha de frente do feminismo revolucionário daquela época, com Betty Friedan, Gloria Steinem, Germaine Greer etc. Mas é como ensina a poesia de T.S. Eliot: “Nossos princípios nunca sabem de nossos fins”. O que foi libertário, na contracultura, agora se congela em puritanismo pétreo. Em aversão ao corpo, aos jogos amorosos, à exuberância narcísica, aos prazeres sexuais. Enfim, o revolucionarismo multicolorido acabou gerando seu avesso: o reacionarismo mais cinzento.
Lembro-me de Lyn Lofland, a socióloga americana, autora de livros como A world of strangers (Um mundo de estranhos, numa tradução livre) e The public realm (O domínio público). Em seus estudos, Lyn, na linha das melhores reflexões da ativista urbana Jane Jacobs (1916-2006), observa que a sociologia urbana foi distorcida e lacunar, ao falar da presença da mulher nos espaços públicos da cidade. Sua ótica incidia, com ênfase excessiva, no perigo. Trazia para o primeiro plano não a atuação da mulher na cidade, mas o assédio sexual. Lyn não nega a prática do assédio, obviamente, mas acha que ela foi superestimada pelos sociólogos, numa visão exagerada dos espaços públicos como áreas de risco para as mulheres, contribuindo inclusive para enfraquecer a presença feminina nessas áreas.
Hoje, o que vemos é a exacerbação extrema do quadro. É claro que temos de combater o assédio sexual. Mas é preciso um mínimo de sensatez. Imbecilidade querer fazer de um olhar, de uma frase deliciosamente cheia de malícia ou de uma cantada equivalentes a agressões sexuais. Um olhar não é um estupro. Um longo e modulado assovio, saudando um belo par de coxas que desfilam graciosamente ao ar livre, cabe muito mais na conta do elogio do que no rol das agressões. A não ser aos olhos desse atual feminismo fundamentalista, “Estado Islâmico”, que acaba de braços dados com o que há de pior no neopentecostalismo “evangélico”. Coisa para aiatolá nenhum botar defeito.
E as manifestantes francesas, inteligentes e requintadas, tocam nos pontos certos. Denunciam que, depois da fogosa revolução sexual da contracultura, o neofeminismo puritano quer converter as mulheres em figuras de museu de cera. E vão ao grão da questão: seu inimigo principal, mais do que o homem, é o desejo. “Como mulheres, não nos reconhecemos neste feminismo que, além de denunciar o abuso de poder, incentiva o ódio aos homens e à sexualidade”, diz o manifesto. E ainda: “Essa febre de enviar ‘porcos’ ao matadouro, longe de ajudar as mulheres a serem mais autônomas, serve realmente aos interesses dos inimigos da liberdade sexual, dos extremistas religiosos, dos piores reacionários”. Nada mais certo.
É a degradação final dos avanços sociais da década de 1960. Assim como a luta contra a discriminação racial veio a dar no racifascismo neonegro, a luta pela igualdade entre os sexos descambou nesse feminismo assexuado. É o naufrágio nas águas grossas e turvas dos movimentos identitários. Hoje, paradoxalmente, todo “neo” é sinônimo de retrocesso. E essa turma quer abolir as classes sociais, a história e a variabilidade antropológica da humanidade. Em seu discurso, todo branco é igual e todo homem é idêntico: não há diferença entre Stálin e Dorival Caymmi. É ridículo.
E o mais grave: tais identitários se fecham como adversários furiosos da diversidade, portando-se feito loucos ferozes desejosos de banir da face da Terra quem discorda de seus dogmas. São a encarnação da intolerância. E, por isso mesmo, inimigos da vida democrática.
(*) Antonio Risério é antropólogo, poeta e romancista, autor de livros como A utopia brasileira e os movimentos negros e A cidade no Brasil.
Fonte: Época (20/01/18)
Fonte: Época (20/01/18)
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