A atual crise política resulta em larga medida do choque entre duas forças que se deslocaram em sentidos antagônicos nos últimos anos.
Os governos petistas precipitaram a colisão frontal. Paradoxalmente, promoveram a corrupção sistemática em escala sem precedentes e as condições para o Estado enfrentá-la com sucesso. De um lado, aumentaram o contingente e o orçamento da Polícia Federal, prestigiaram a autonomia do Ministério Público e conseguiram aprovar legislação consagrando o instituto da delação premiada. De outro, orquestraram o “mensalão” e, a seguir, o “petrolão”.
A Lava Jato tornou impossível a continuidade do desenvolvimento contraditório de um sistema político-partidário regido por normas de conduta que não resistem à luz do dia e de um sistema de persecução penal com capacidade para revelá-las e puni-las.
Nem todos os promotores são bons, nem todos os políticos são maus. Nem todas as doações eleitorais de campanha foram ilegais, nem todas as ilegais se associaram a atos de corrupção. Mas essa é, grosso modo, a visão predominante.
Por que a sociedade passou a ver as coisas dessa maneira? Porque, enquanto a política se tornou um hábitat propício à reprodução de agentes especializados na intermediação de interesses privados (empresariais e corporativos) perante o Estado, os membros do Ministério Público receberam as condições institucionais para desempenhar com independência um mandato (não eletivo), conferido pela Constituição de 1988, de defesa dos direitos coletivos difusos.
Não se trata de idealizar o Ministério Público. Ele também é cioso de seus privilégios corporativos. A questão é saber por que a política e os políticos chegaram a esse ponto de desmoralização, um risco óbvio para a democracia.
Parte importante da resposta está na explosão dos gastos eleitorais. Dados apresentados por Bruno Carazza dos Santos, em excelente tese de doutorado sobre a influência do poder econômico na política brasileira, mostram que entre 1994 e 2014 as doações totais declaradas para candidatos a deputado, senador, governador e presidente aumentaram aproximadamente três vezes, descontada a inflação. As doações feitas a partidos e comitês eleitorais, quase inexistentes em 1994, ultrapassaram R$ 1,5 bilhão em 2010 e atingiram R$ 2,5 bilhão em 2014, fortalecendo o poder das cúpulas partidárias na alocação dos recursos de campanha.
O crescimento das doações totais veio juntamente com a participação cada vez maior das empresas no financiamento eleitoral. Os partidos de esquerda e centro-esquerda equipararam-se aos padrões antes já observados nos de centro e centro-direita (em 1998 o PT recebeu pouco mais de 30% das suas doações de empresas privadas; em 2014, quase 90%). Não apenas as empresas privadas passaram a responder pela quase totalidade do financiamento eleitoral, como também cresceu a participação dos grandes doadores. Doações acima de R$ 1 milhão representaram 39% em 2002 e 75% em 2015. Dados da Transparência Brasil indicam que nas eleições presidenciais de 2002 os dez maiores doadores responderam por 15% das doações totais, em 2014 elas alcançaram 40%.
Nenhuma surpresa na lista dos principais doadores. A Lava Jato revelou o que os dados sobre doações eleitorais já permitiam intuir. PT e PMDB receberam a maior parte das doações declaradas, mas o PSDB não ficou à míngua.
Não resta dúvida de que a capacidade de mobilização de grande volume de recursos privados se tornou a variável-chave da competição política. Quem é mais apto a proliferar num ambiente assim? Certamente o político com menos escrúpulos para favorecer interesses particulares. Nada é mais simbólico dessa seleção darwinista adversa do que a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara de Deputados, posição ocupada no início da redemocratização por ninguém menos que Ulysses Guimarães. Nada é mais estarrecedor a esse respeito do que o envolvimento de altas autoridades no “toma lá, dá cá” do financiamento eleitoral.
É claro o porquê de a defesa dos interesses coletivos ter-se tornado a exceção na política. Interesses coletivos são difusos (não beneficiam nenhuma empresa, nenhum setor ou corporação em particular) e, por isso mesmo, é mais difícil mobilizar recursos em sua defesa.
Superar esse estado de coisas exige mais do que proibir as doações de empresas a partidos e candidatos, como fez o STF. Com desfaçatez, o Congresso reage à proibição cogitando da formação de um fundo eleitoral com mais de R$ 4 bilhões para financiar as eleições de 2018 (já se fala em R$ 6 bilhões) e namora o sistema da lista fechada, combinação ideal para as cúpulas partidárias. Tão ruim quanto é o namoro com o chamado “distritão”, sistema que faria das eleições uma disputa entre celebridades políticas, artísticas e religiosas.
A agenda é outra: acabar com as legendas de aluguel, com cláusula de barreira e/ou fim das coligações nas eleições parlamentares; baratear drasticamente as campanhas, pondo fim ao show biz do marketing político e caminhando para alguma forma de distritalização do voto nas eleições parlamentares para, além de reduzir custos de campanha, favorecer o controle do eleitor comum sobre seu representante. Recursos públicos para o financiamento eleitoral são necessários, mas apenas o suficiente para financiar campanhas mais baratas, e devem ser distribuídos segundo alguma regra que estimule os partidos a buscar contribuições de indivíduos (com limites fixos e não muito altos, de modo a evitar a vantagem dos candidatos ou doadores ricos). Para reduzir o estímulo ao caixa 2, transparência e regras gerais na formulação e aplicação de políticas públicas. Para coibir o caixa 2, punição.
Passos na direção de um País mais republicano, no caminho corajosamente aberto pela Operação Lava Jato.
Fonte: O Estado de São Paulo (15/07/17)
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