O acirramento da crise e a agonia do presidente Temer trouxeram de volta um termo caro ao vocabulário político brasileiro: sarneyzação. Essa palavra tem origem não no conjunto do governo Sarney, pois ele teve um momento de grande euforia e apoio popular, com o Plano Cruzado. O sentido da sarneyzação vem principalmente do fatídico ano de 1989, o último do mandato, quando o chefe do Executivo federal se tornou tão fraco politicamente que foi transformado na grande Geni do país - aquela em que todo mundo jogava pedras, como dizia a música de Chico Buarque. O efeito político disso se fez sentir na mais fragmentada e oposicionista disputa presidencial de nossa história. Será que caminhamos para o mesmo rumo?
A imagem da eleição de 1989 torna-se ainda mais forte por conta do crescimento do discurso antipolítico e, especialmente, da possibilidade de que algum outsider em relação ao sistema ganhe a próxima disputa presidencial. O último Datafolha aponta essa possibilidade. Em comparação, no primeiro pleito para presidente da redemocratização, Collor e Lula faziam esse papel, embora ambos já tivessem história partidária, sendo que o primeiro já fora governador de Estado e o segundo, criador de um partido. Só que os dois construíram uma campanha eleitoral personalista e crítica aos políticos tradicionais - estes eram os "marajás" para Collor, e o que faziam "maracutaia", para Lula. Contribuía para esse clima a crise da Nova República e das agremiações que o alicerçavam - o PMDB e o então PFL (hoje DEM) -, bem como a fragilidade do presidente Sarney.
É preciso analisar melhor os dois períodos para entender o que há de semelhante e quais são as diferenças entre 1989 e os dias atuais. A grande semelhança é a combinação de uma crise do sistema político com um quadro econômico deteriorado. Observando essas variáveis, à primeira vista temos um quadro político pior hoje, porque a soma da Operação Lava-Jato com as denúncias contra o presidente Temer reduziram sobremaneira a legitimidade dos políticos. Apesar de ter havido também escândalos no Governo Sarney - basta lembrar a célebre reportagem do jornalista Jânio de Freitas sobre a Ferrovia Norte-Sul -, esses fatos não tinham tanto eco quanto atualmente, particularmente em razão do aumento do poderio dos órgãos de controle.
Em termos econômicos, a recessão nos coloca atualmente em maus lençóis na comparação, mas a hiperinflação de outrora tinha um enorme efeito negativo para a estabilidade econômica como um todo e, mais fortemente, contra os mais pobres - os quais, aliás, estão mais protegidos hoje, graças ao desenvolvimento das políticas sociais nos últimos 20 anos e por conta de programas como o Bolsa-Família. Sem dúvida alguma, o cenário atual é desolador, principalmente quando se olha para o tamanho do desemprego, mas a desigualdade era maior - e mais cruel - em 1989.
Só conhecemos, por ora, o final da história do período anterior. E, nele, o vencedor foi um candidato por um partido nanico - você se lembra do PRN? -, com um discurso bonapartista que levou Collor a acreditar que poderia governar sem o Congresso. O resultado dessa aventura conhecemos. Não se pode dizer que aprendemos tudo o que deveríamos com o impeachment de Collor, pois Dilma também foi inábil com o Legislativo, o que abriu as portas, entre outros fatores, para sua queda.
As políticas de Collor para sair da crise econômica foram atabalhoadas. Ele tentou fazer uma reforma do Estado que o desorganizou por completo. Fez experimentos econômicos estapafúrdios. Vigorou um voluntarismo sem base técnica, acoplado a um discurso salvacionista e messiânico ("não me deixem só", dizia o comandante maior da nação). Depois desse período presidencial, obviamente que houve erros, mas ao longo do tempo igualmente aconteceram melhorias incrementais em diversas políticas públicas. Com todo esse processo reformista das últimas décadas, o país melhorou em relação a 1989, inegavelmente. Isso não impediu, como já fora citado, a recorrência de problemas no governo Dilma, que não só falhou na seara política, como o fez também na política econômica.
É verdade que o conhecimento da história e os avanços ocorridos no país nas últimas duas décadas podem dificultar a mera reprodução de tudo que ocorreu em 1989 e ao longo da presidência Collor. Mas nada garante que conseguiremos escapar de uma nova encruzilhada política, principalmente porque há fatores que permitem vislumbrar a criação de um cenário similar de desgoverno, fragmentação eleitoral que gera candidatos antissistema e a existência de um debate político artificialmente polarizado, algo que dificulta a discussão embasada de um novo projeto de país.
O fator que pode gerar mais incertezas para 2018 é a sarneyzação do governo Temer. Hoje o presidente tem 7% de aprovação, enquanto Sarney tinha 5% ao final do seu mandato, mas ainda há tempo para Temer alcançar ou ultrapassar esse recorde negativo. Tal cenário de desgoverno estimula o surgimento de vários candidatos, especialmente aqueles que se dizem contra tudo que está aí. Não sei se surgirão quase 20 presidenciáveis como em 1989 (provavelmente não), porém, a pulverização será com certeza a maior desde o pleito de 1994.
Num cenário de sarneyzação, quem tiver dado suporte político ao atual presidente, mesmo que pule do barco antes de sua derrocada, será muito atingido eleitoralmente. O argumento da governabilidade, usado principalmente pelo PSDB, tende a perder força quanto mais se caminha para o desgoverno. O engraçado é que o medo que muitos governistas e setores sociais têm do dia seguinte de uma possível queda de Temer, algo que poderia gerar eleições diretas e fortalecer políticos como Lula, os faz continuar numa trilha de enfraquecimento progressivo. Estão correndo para o precipício, em nome de evitar o mal do curto prazo.
O fato é que a sarneyzação dificulta uma resposta eleitoral de cunho mais centrista em 2018 e fortalece os candidatos mais próximos dos extremos. Manter o presidente Temer no poder tende a favorecer esse quadro eleitoral, tanto mais quando se somam dois outros fatores: a polarização e o descrédito dos políticos, por conta da avalanche de acusações relativas à corrupção. Para aqueles que defendem, seja mais para a centro-esquerda, seja mais para a centro-direita, uma renovação de nomes e propostas para a próximas eleições, o caminho a seguir é descolar-se por completo do governo Temer, fugir das visões dicotômicas e artificiais no debate político e agregar em suas fileiras o máximo possível de pessoas que não estejam na berlinda no campo ético.
O risco de fortalecimento dos discursos mais demagógicos em 2018 vai depender do quanto as forças políticas e sociais vão ser capazes de propor uma reestruturação mais ampla do sistema político e do modelo da administração pública brasileira. Por isso é muito estranho ouvir políticos sensatos e empresários defenderem agora que se façam reformas, em quaisquer medidas e de qualquer maneira, independentemente da situação política e ética do governo Temer. O que precisa ser profundamente alterado é a pemedebização da estrutura estatal do país e são exatamente as forças que sustentam esse fenômeno que estão por trás do atual presidente. Falta, no momento, uma visão de longo prazo para a elite brasileira, mas também para parcela da oposição, em especial a petista, que precisa pensar menos de forma personalista e mais em termos institucionais, se quisermos sair da crise política, econômica e social.
O que os principais líderes da campanha de 1989 propunham, de forma sincera ou não, era combater a pemedebização do país. Passada a desastrosa experiência de Collor, o razoável sucesso reformista de FHC e Lula, e chegando ao imbróglio da era Dilma-Temer, percebe-se que o Brasil avançou em vários quesitos, mas ainda não se livrou do modelo patrimonialista que o PMDB e afins estabeleceram como o modus operandi básico do sistema político. É isso que o pleito de 2018 poderia tematizar como forma de exorcizar o fantasma de 1989.
Nessa mesma linha, é preciso ressaltar, para concluir o argumento, que a sarneyzação favorece a reprodução dos piores aspectos da eleição de 1989, mas que a saída de Temer do poder, embora seja uma maneira de evitar a trilha para o precipício, não é suficiente. Retirar o atual presidente do seu cargo é aprofundar a transformação do país, sem dúvida. Contudo, é preciso ter um projeto institucional e de modelo de políticas públicas que evite que, de tempos em tempos, o passado ronde nossa porta com as suas facetas mais sombrias, como num filme de terror, em que o mordomo é o presidente da República.
PS: para exorcizar o pessimismo, quero parabenizar os dez anos do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa (PAIC), que o Ceará adotou com enorme sucesso, sendo líder nessa política no Brasil. As lideranças desse programa adotaram as melhores soluções técnicas, que se tornaram modelo para o país, mas o anteparo político foi peça-chave. Sem boas soluções comandadas por políticos, não sairemos da crise atual.
Fonte: Valor Econômico (30/06/17)
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