domingo, 25 de junho de 2017

Reencarnações do ademarismo (Eugênio Bucci)

À custa de golfadas de mau gosto, a República do Brasil se repete não como farsa, mas como paródia. Bordões de antigamente ressurgem, regurgitados, com um sentido ainda mais cínico. É o que se dá com a máxima ademarista do “rouba, mas faz”, um dos mitos fundadores da política pátria.
Dia sim, dia não, a velha máxima vem abduzir a agenda nacional. Não faz uma semana, houve até a necessidade de que alguém esclarecesse que a doutrina do “rouba, mas faz” não foi o Maluf que fez. Embora a mística ademarista pareça, por vezes, viajar de carona em hostes malufistas, a autoria da receita “rouba, mas faz” é anterior ao condenado de Paris. Talvez seja anterior ao próprio Ademar de Barros, que apenas teria encarnado, com seu discurso e sua prática inconfundível, um princípio já enraizado na malandragem que nutria desejo pelo fraque e pelo voto.
Em governos mais recentes, que acenavam do palanque com a mão esquerda e contavam as cédulas com a direita (não apenas cédulas eleitorais), o “rouba, mas faz” ganhou nova acepção: “rouba, mas faz obra social”. Como supostamente faziam “obras sociais”, os adeptos desse ademarismo reciclado teriam autorização tácita para financiar de modo, digamos, “não contabilizado” a subsistência luxuosa dos agentes e operadores das alegadas realizações “progressistas”. Forjou-se assim o “ademarismo canhoto”, cuja eficácia eleitoral se mostrou poderosa, embora tenha sido institucionalmente corrosivo.
Outra variante surge agora, no desembalo do governo Michel Temer. Os protagonistas da gestão que aí está não se esforçam quase nada em denotar lisura e conduta ilibada. Em compensação, declaram-se integralmente empenhados em fazer aprovar as tais reformas. Estaríamos vivendo, então, como já foi apontado, sob a égide do “rouba, mas faz reforma”.
Podemos fazer um adendo. Como as reformas são de perfil ultraliberal – ou mesmo “neoliberal”, como vem sendo dito –, o ideário político que se vai delineando no interregno Temer poderia ser apelidado de “neoliberademarismo” (com o perdão da brutalidade vocabular). O “neoleberademarismo” funciona. No mínimo, funcionou para segurar até aqui o governo de Michel Temer, o que, convenhamos, é uma proeza.
Aliás, o próprio significado da palavra “reforma” passou por uma reforma radical. Até há bem pouco tempo o substantivo “reforma” servia como contraponto ao substantivo revolução – e era um termo de esquerda. Os “reformistas” eram socialistas sinceros, apenas não apostavam no uso da violência para, como gostavam de dizer, “transformar a sociedade”. Os reformistas eram ex-revolucionários adaptados a novos tempos. Os reformistas tinham rompido com o leninismo, não acreditavam mais em organizar o levante armado das massas e duvidavam da estratégia de “pegar em armas”. Preferiam investir na via eleitoral, dentro da legalidade burguesa, e disputar a “hegemonia”, mais ou menos como propôs Antonio Gramsci.
Agora, a palavra “reforma”, que antes integrava o léxico da esquerda, migrou para a direita. Defender a reforma (ou “as reformas”) no Brasil atual é alinhar-se com Michel Temer, o reformista mais aguerrido. De direita.
O dicionário político contemporâneo vem dando uma pirueta atrás da outra. A palavra revolução virou slogan de propaganda de automóvel na TV – e na lembrança de uns poucos é uma saudade remota. Nos anos 1980, que já vão longe, Daniel Cohn-Bendit, o “Dany le Rouge”, líder das ruas revoltosas de Paris em maio de 68, escreveu um livro para celebrar essa saudade: Nous l’avons tant aimée, la révolution. No Brasil, na mesma época, Fernando Gabeira lançou um livro em que ele e Cohn-Bendit dialogavam sobre a mesma nostalgia: Nós que amávamos tanto a revolução.
Pobre esquerda. Sem o monopólio sobre a palavra reforma, e sem ilusões na palavra revolução, bifurcou-se: uma corrente ama a reforma socializante, que anda em baixa; a outra é essa que está aí a nos dever um novo livro: Nós que roubávamos tanto a revolução. E como roubaram.
Chegamos aqui a uma variante mais complexa. Os chupins da utopia alheia configuraram uma categoria política não mais canhota, mas canhestra: o ademarismo-leninismo. Em meio a tantas e tamanhas reviravoltas semântico-políticas, fragmentos ressequidos do pensamento instrumental de Vladimir Ilitch Ulianov Lenin comparecem hoje ao submundo de ademaristas que acham que são leninistas. Haja comédia de mau gosto.
Francamente, Lenin não merecia isso. Sabemos que ele jamais cultivou virtudes burguesas e não dava a mínima para os limites da legalidade. Sabemos que seus métodos sanguinários só produziram o desastre. Mesmo assim, Lenin foi moralmente superior aos ademaristas que o veneram secretamente. Nunca lhe ocorreu transformar o partido bolchevique em máquina de assaltar o erário.
Em seu Esquerdismo, doença infantil do comunismo, publicado em 1920, Lenin admitiu expressamente que os comunistas deveriam conjugar a atividade legal (pública) e a atividade ilegal (clandestina), mas, para ele, a política definia-se pelas ações legais, públicas, e não pelas ações clandestinas. Ao comentar o caso do agente policial Roman Malinovski, que se infiltrou no partido e chegou a fazer parte do comitê central, ele reafirma que o que vale é a política implementada publicamente. Por isso, ele diz, até mesmo Malinovski, um espião inimigo, “se viu obrigado a contribuir para a educação de dezenas e dezenas de milhares de novos bolcheviques, através da imprensa legal (do partido)”.
Para Lenin, deixemos claro, a finalidade mais alta do partido era a política aberta, pública. Para o ademarismo-leninismo, ao contrário, a atividade pública do partido não passa de um atalho para a efetivação do roubo continuado. O que importa é privatizar o que é público, mesmo que para isso seja preciso fazer uma coisinha ou outra.
À direita e à esquerda, quem diria, o ademarismo virou uma unanimidade nacional.
Fonte: O Estado de São Paulo (22/06/17)

Nenhum comentário:

Postar um comentário