É preciso olhar com cuidado e respeito a decisão tomada pelo PSDB de permanecer apoiando o governo Temer.
Tratou-se de uma decisão partidária, tomada em uma época de partidos políticos divididos, frágeis e autocentrados, obcecados com a questão da conquista do poder.
Partidos são estruturas associativas complexas, que se dedicam, em primeira instância, à conquista e ao manejo do poder político. Dedicam-se também a organizar, educar e direcionar grupos, classes, interesses da sociedade, sendo que os mais coerentes fazem disso a sua razão de ser.
O PSDB nasceu coerente, com um olhar concentrado no social, na intelectualidade, na tarefa de formular uma proposta para o país. Progressivamente, foi-se convertendo em uma máquina voltada para o poder, o governo, a “conquista do Estado”. Dobrou-se ao pragmatismo e ao “realismo”, como de resto também fez seu irmão-inimigo, o PT.
O poder político, como se sabe, gera muitas taras e muitos problemas. Invariavelmente, atrai pelo que oferece: possibilidades de intervenção mediante políticas públicas, mecanismos de governo da sociedade, acesso aos instrumentos de uso legítimo da força. Mas o poder também seduz e cega, graças à exacerbação daquilo que lhe é inerente: prestígio, benesses, favores, prebendas, convívio com VIPs e poderosos, luxos palacianos, mordomias, homenagens.
Partidos que se deixam contagiar pela “ética da responsabilidade” de que falava Max Weber, não precisam ficar vazios de “ética da convicção”, nem precisam fazer com que toda a sua convicção se reduza ao amor pela responsabilidade. Uma boa dose de ardor cívico, paixão política, ideologia e identidade é indispensável, ajuda os partidos a não passarem com armas e bagagens para o lado escuro da força.
A lógica do poder
O PSDB nasceu socialdemocrata e até hoje alega ser essa a sua opção. Mas foi-se distanciando a pouco e pouco daquilo que engrandeceu a socialdemocracia: o reformismo social, o vínculo com grupos organizados da sociedade (sindicatos, sobretudo), uma ideia de socialismo democrático, um projeto para os mais frágeis e subalternos, a luta incansável para melhorar a condição de vida e reduzir as desigualdades.
Foi, assim, perdendo vigor, passando a se distanciar da sociedade e a se orientar pela lógica do poder. Tal inflexão ganhou corpo quando o partido se tornou oposição aos governos do PT. A cada derrota eleitoral no plano federal, o PSDB mais se refugiava na fortaleza paulista e mais abria mão de sua identidade ideológica e programática, explodindo em divisões e disputas internas. Muitos caciques e poucos índios. Depois da derrota de Aécio em 2014, o partido entrou em parafuso.
PSDB e PT alimentaram consciente e incansavelmente uma polarização desencarnada, sem ideias nem ideais, que os ajudou a permanecer no ringue e terminou, com o tempo, por fazer com que ambos se convertessem em caricaturas de si mesmos.
O PSDB impulsionou o impeachment de Dilma. Fez isso em nome da estabilidade, da governança, da austeridade, da “salvação nacional”. Deu todo apoio à ideia de se ter um governo de transição que, mantendo de pé uma “pinguela” reformista, atravessasse a pior fase da crise e entregasse o país em melhores condições para o presidente a ser eleito em 2018. Deixou todas as digitais no processo, mas pouco fez para influenciar ou direcionar o governo Temer.
Em nome da transição
O governo de transição tinha méritos próprios e razão de existir. Mas foi organizado e administrado sem determinação, deixando-se impregnar pelos interesses escusos do Congresso Nacional, pela preocupação em esvaziar a Lava Jato e recompor oligarquias e práticas clientelistas, trocando a grande política pela pequena política. Um governo de perfil “parlamentar”, que se valeu da formação de uma extensa base de apoio congressual, que em parte derivou da atuação de alguns estrategistas palacianos e em parte decorreu da convergência “natural” dos parlamentares para as proximidades do poder. Formou-se assim uma base pouco confiável, sem grandeza e sem projeto, que se refletiu na composição ministerial do governo Temer e lhe transferiu turbulência.
Tudo isso explodiu com as delações da JBS, que acertaram o presidente na testa.
O PSDB sofreu com as denúncias e o afastamento judicial de Aécio Neves, seu presidente. Viu seu espaço de manobra se reduzir ainda mais. Optou por permanecer no barco, mas sem ter forças para conduzi-lo. Dividiu-se entre “cabeças pretas” e “cabeças brancas”, sem conseguir esclarecer as razões da opção. Virou as costas para a opinião pública.
Recusou-se a aproveitar a oportunidade para se depurar e tentar retomar a imagem de antes. Largou por terra os princípios partidários. Escolheu dar sustentação ao governo Temer e nele permanecer sem exigir nada em troca e fazendo um cálculo de alto risco, qual seja, de que este será um governo com chances de acertar, quando tudo parece apontar em sentido oposto.
Precisamente por isso, o PSDB buscou se revestir de uma dose extra de maquiavelismo: melhor mesmo é que Temer fique, mas sem se fortalecer. Deste modo, o partido imagina acumular forças para 2018, radicalizando bom e velho estilo tucano, ou seja, dizendo que fica sem ficar e que apoia sem apoiar. Pensa que, assim, acalma os “cabeças prestas” e passa uma mensagem positiva para a sociedade.
Vetores em disputa
Dos cinco vetores em interação e disputa que hoje organizam a política nacional – democratização, moralidade, constitucionalismo, garantismo, responsabilidade –, o PSDB ficou com dois. Enfatizou a responsabilidade e o garantismo, no sentido de que um eventual processo de derrubada de Temer deve seguir ritos e ritmos próprios, não pode avançar a partir do clamor das multidões.
Poderia, porém, ter explicado melhor como a adesão à responsabilidade pode dispensar a democratização e a moralidade, sem avaliar o custo e as consequências de se ter um governo fraco, sem credibilidade e sob suspeita. Pouca serventia teve, nesse caso, a fresta mantida pelo partido, para o caso de “fatos novos” forçarem uma revisão da decisão.
O governo Temer poderá concluir seu mandato, mas dificilmente terá condições de se pactuar com a sociedade. Não entrará na História pela porta da frente. Talvez nem sequer consiga ver aprovadas as reformas que defende. Chegará ao final de 2018 extenuado, isso se novas denúncias não vierem a sangrá-lo em praça pública.
O PSDB fez sua aposta. Disse que se deixou levar pela “ética da responsabilidade”, mas na verdade foi motivado por expectativas futuras. Irmanou-se como nunca dantes ao PMDB, privilegiando a autopreservação. De tabela, ambos celebraram um pacto para esvaziar a Lava Jato e escapar de suas garras. Combate à corrupção, reforma política e qualificação da democracia saíram da agenda, podem ficar quem sabe para uma etapa posterior. Algo que, com pesos diferentes, também possibilita ao PT endossar o pacto, ou ao menos apreciá-lo. Em suma, falou-se em cautela e moderação, mas a decisão empurrou o partido de volta ao muro e lhe roubou a ousadia.
Seja como for, tendo-se em vista que a decisão tucana visou a que o partido obtenha benefícios futuros, ela só pode fazer sentido sob duas condições: que o governo Temer seja bem-sucedido e que o PMDB, em retribuição, entregue todas as suas pretensões ao PSDB, em nome de uma aliança de sangue.
O que sobrou da decisão tucana foi mais um tijolo na obra de desconstrução do PSDB. Algo que cobrará um preço, do próprio partido, que prolongou sua indefinição, e da política nacional, que pode ter perdido outro personagem que faria a diferença.
Ou será que a sociedade, a opinião pública, o eleitorado, perdoarão o partido nas próximas eleições?
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