domingo, 25 de junho de 2017

A cultura das cartas de leitores (José de Souza Martins)

Há alguns anos, na periferia de São Paulo, participei de uma conversa com Noam Chomsky organizada pelo MST. Linguista de grande reputação, tem uma visão otimista do que representam os movimentos populares no Brasil, que o faz condescendente nas interpretações a respeito, privando-as do componente crítico que toda análise deve conter e que os ajudaria a fortalecer as causas que defendem.
Num certo momento, destacou a importância da internet como meio de criação do que definiu como jornais pessoais, que libertariam os leitores do suposto poder de controle de opinião por parte dos meios de comunicação convencionais. Cada qual poderia criar seu próprio jornal e difundi-lo como mídia alternativa, supunha ele. Chomsky não mencionou que, nos milhares de sites, blogs, páginas e periódicos artesanais que nos chegam, queiramos ou não, há poder, embora o dono do poder seja de outro tipo, político-partidário e ideológico ou religioso. Gente que quer mandar na nossa consciência.
Um intelectual solitário pode, sim, criar a informação cultural alternativa e difundi-la em proveito da democratização da sociedade e da emancipação de todos. Mas hoje a opinião desinformada de uma pessoa de escolaridade precária e de interesses não necessariamente sociais, pode difundir, graças à internet, informações falsas e danosas, como a que resultou no linchamento de uma inocente mãe de família no Guarujá por uma turba enfurecida.
Há na cultura popular e no senso comum uma lógica peculiar e pendular que define o que é falso e o que é verdadeiro, o que é crível e o que não o é. O senso comum é autodefensivo e necessariamente carente da objetividade que se supõe necessária ao alternativo da informação. Não é surpresa que nessa opinião se manifestem objeções às ciências, em particular às ciências sociais, notoriamente consideradas concorrentes ilegítimas da "sabedoria popular", os intelectuais tratados pelos leitores como ignorantes membros da elite, que não viajam de ônibus, ganham o que não merecem e não tem os padecimentos dos pobres. Quando um governante ou político de renome deprecia publicamente a universidade e os acadêmicos, como já vimos, expressa essa indigência ideológica.
Em 47 mensagens de reação a uma entrevista sobre a tatuagem infamante na testa de um jovem como castigo por roubo, que não cometeu, temos uma boa amostra dos conteúdos dessa modalidade de correspondência. Podem ser sintetizados na carta de uma mulher que escreveu duas vezes.
Sataniza a mãe do garoto. Questiona-lhe o direito de ter filhos. Conta sua própria história. Ficou viúva ainda jovem, criou quatro filhos no dever do trabalho, fazia pães para vender na rua e sustentar a família. Representa o trabalhador sofrido e pobre como modelo virtuoso de pessoa que não merece indiferença, mas admiração e apreço. Está tudo errado porque heroínas da ordem, como ela, não tem reconhecimento, enquanto bandidos como o garoto são cercados de compaixão e inocentados da culpa que lhes cabe. Trata-se da lógica do bem limitado, identificada na América Latina pelo antropólogo George Foster. Tudo existe em quantidades finitas: o dinheiro, a comida, o sexo, os próprios sentimentos. Portanto, se injustamente sobra compaixão para o garoto, mais injustamente ainda, falta para ela. Se há direitos humanos para ele, bandido, por que não há para ela, trabalhadora?
Dependendo do assunto, há nessas cartas de leitores fortes indicações de corporativismo, intolerância e autoritarismo que sugerem uma preocupante tendência. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e no período imediato a ela, o sociólogo alemão Theodor Adorno e uma equipe de especialistas em ciências sociais realizaram, na Universidade da Califórnia, Berkeley, ampla pesquisa sobre o tema na sociedade americana, que culminaria com a publicação de uma obra coletiva robusta e referencial, em 1950, "The Authoritarian Personality".
Os Estados Unidos envolveram-se na guerra contra o nazismo e o fascismo em outros países, mas havia fortes indícios de mentalidade e propensão fascistas entre os próprios americanos. A pesquisa procurou determinar e medir essa propensão. Os pesquisadores criaram a escala F, que mede a tendência e a vulnerabilidade de cada pessoa à propaganda nazifascista em decorrência de sua própria personalidade autoritária.
Nas seções de cartas de leitores dos periódicos brasileiros é possível encontrar fortes e agressivas indicações de intolerância, autoritarismo e fascismo com base nos nove indicadores da escala F. Se uma pesquisa similar fosse feita no Brasil, provavelmente descobriríamos que estamos mais próximos do abismo da inviabilidade da democracia do que imaginamos.
Fonte: Valor Econômico (23/06/17)

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