Crises não são fenômenos que se estendem indefinidamente, sem mudar de ritmo e sem sofrer alterações. Aceitar isso seria admitir a completa morte dos atores ou o “fim da história”.
Pode-se encontrar, porém, situações em que um quadro de crise se confunde com a estrutura da vida, seja assumindo a forma de um “caos estabilizado” (Beck), seja como parte de um processo de “revolução passiva” (Gramsci): as coisas mudam, mas tem-se a impressão de que são as mesmas, até porque a correlação de forças não se altera. Mudanças moleculares, que aos poucos reconfiguram as estruturas. É como dizer que uma estrutura se alimenta de suas próprias contradições e turbulências para alcançar equilíbrio, que por isso mesmo se torna um equilíbrio permanentemente precário. Revoluções sem revolução.
O cenário das sociedades contemporâneas se aproxima bastante disso. Nele, a vida está em permanente xeque-mate e a mudança contínua, intensa, ininterrupta, se faz sem direção política. As sociedades são “forçadas” a mudar e, nessa medida, são sacudidas por transformações que não conseguem ser controladas e provocam terremotos sucessivos na dimensão existencial e institucional. Tais terremotos abalam os equilíbrios políticos e desmontam os arranjos associativos com que se fazia política, como é o caso dos partidos políticos. Estes passam, então, a perder capacidade de orientar o processo político, com o que a crise se prolonga, mesmo que de modo atenuado e disfarçado, em suma, conseguindo ser “administrada”.
As forças econômicas dominantes e as forças mais bem organizadas controlam a situação, mas não inteiramente. Abrem-se espaços para outsiders ou para “radicais fundamentalistas”, que tendem a se fortalecer. Mas o sistema se mantem.
A França atual, com a vitória de Macron, o crescimento da direita nacionalista de Le Pen e da esquerda radical de Mélenchon, a derrocada do Partido Socialista e dos Republicanos, oferece um exemplo perfeito disso, mas não é o único. O Brasil entra em lugar de destaque nessa configuração.
Quando as forças que estão envolvidas em uma crise se articulam, podemos ter três desfechos típicos. Um desfecho virtuoso significaria a fixação de um entendimento comum sobre o day after, com o devido cálculo de ganhos e perdas de longo prazo. Ela depende de uma reposição do pacto político, devidamente requalificado e aberto para a sociedade. Um desfecho funcional, por sua vez, aconteceria quando o “acerto” entre as forças se faz de forma superficial, sem projeto, com o único propósito de manter a governabilidade do sistema e o equilíbrio de forças tal como está. Seria um desfecho conservador, paralisante, sem avanço nenhum. Por fim, um desfecho deletério traria consigo algum tipo de retrocesso, que no limite poderia significar a suspensão da democracia e das liberdades.
Na situação brasileira atual, a probabilidade maior não é um desfecho regressista, que faça o carro da História dar marcha a ré. O Brasil deseja seguir em frente, precisa fazer isso, não há forças que consigam quebrar esta imposição da realidade ou levar o país para o lado das trevas. Também não há forças para um desfecho virtuoso, progressista, ao menos no curto e médio prazo. O mais provável é que se tenha um desfecho funcional: os nichos de poder político articulam-se com os setores econômicos dominantes e com o corporativismo associativo para manter o sistema de pé, valendo-se para tanto da “suspensão” da conflitualidade mais intensa em favor de uma “paz” em que todos ganhem alguma coisa.
O eixo do acordo é facilmente delineável: flexibilização das reformas e arrefecimento (não a desmontagem) da Operação Lava Jato. Neste caso, a cabeça de Temer passaria a ter outro valor relativo, tornando-se até certo ponto indiferente.
Enquanto as cozinhas do Congresso, do Palácio e do STF funcionam a todo vapor para preparar tal solução, as forças democráticas ficam à margem, sem incidência e, pior, sem disposição para disputar o centro do palco.
Fonte: O Estado de São Paulo (05/06/17)
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