- "O Triunfo da Razão Cínica" foi escrito em 2003, pouco mais de um ano após a posse de Lula para o seu primeiro mandato de Presidente da República. Sem dúvida, constitui uma crítica dura ao PT, que conhecia "por dentro" como seu militante e fundador.
Este artigo tem méritos especiais. Dois aspectos, entretanto, quero destacar: (1) ao escreve-lo, Benjamin lutou corajosa e lucidamente para que não fossem traídos valores fundamentais da esquerda democrática; (2) que os sinais da degenerescência do PT já estavam presentes há quinze anos atrás, sem o que Benjamin jamais poderia tê-los observado. Se o artigo, então, já era clarividente, agora, diante dos fatos reconhecidos por quase todos, passou a ser um documento histórico-atual de leitura obrigatória! -
O TRIUNFO DA RAZÃO CÍNICA
O Partido dos Trabalhadores está morrendo. Nele não resta mais nenhum espírito transformador, nenhuma autenticidade, nenhum impulso vital. Não tem princípios a defender. Não tem mais referências sobre coisa alguma, pois suas posições históricas - sobre a previdência, os transgênicos, a política econômica, o FMI ou qualquer outro assunto - estão sempre prontas a ser sacrificadas no balcão em que se fazem as negociações do momento.
O PT não tem, nem pretende mais ter, projeto de sociedade. Tem apenas projeto de poder. Esta volúpia desenfreada, sem ideal, cria o ambiente propício ao cinismo e à corrupção crescentes, a que estamos assistindo, pois a melhor maneira de manter-se em cima é copiar os poderosos e aliar-se com eles. Hoje, o militante de que o PT precisa, o que é valorizado pela direção, é o carreirista obcecado pelo sucesso rápido e a trajetória meteórica, disposto a dizer amém, pronto a desmentir amanhã, por qualquer pretexto, aquilo que defendia até hoje.
Os que construíram o partido e não se corromperam, nele não têm mais lugar. Tornaram-se um estorvo. São enxovalhados. Estão sendo substituídos por filiados pela Internet e por gente arrebanhada pelos esquemas políticos tradicionais. Esquemas caros, como se sabe, pois esvaziados da militância voluntária que impulsionou o partido quando ele era jovem. Para financiar essa operação e esse novo modo de ser, é cada vez mais tênue, no andar de cima, a separação entre política e negócios. Candidatos a deputado, até ontem meros assalariados, falam abertamente em levantar R$ 10 milhões ou R$ 20 milhões para suas campanhas, sabe-se lá de que forma. Candidatos a cargos mais altos aventuram-se em todos os tabuleiros. São as regras do jogo. Não há mais pudor. Todos caminham nus pelos salões.
O PT tornou-se uma via de ascensão individual para a afluência material e o poder. Multiplicam-se as pessoas que se tornam subitamente importantes, e que se sentem assim, sem ter história nem biografia, sem ter passado nem futuro. Pobres de espírito, sempre ocupados nas articulações do momento - para a próxima convenção, a próxima nomeação ou a próxima eleição -, não lêem um livro, não se dedicam a conhecer bem assunto nenhum, não são solidários às dificuldades do povo brasileiro, não pretendem ser fiéis a uma idéia de nação. Suas lealdades se esgotam nos limites do grupo de interesse a que estão vinculados. Valores como humildade, perseverança e ideal estão definitivamente fora de moda. Tudo agora é cálculo. Liberado para florescer, o oportunismo tem pressa. Tempo é poder. Tempo é dinheiro.
A crise do PT é a mais profunda crise da esquerda brasileira. Para o bem e para o mal, foi o PT a vanguarda política da nossa esquerda nos últimos vinte anos, e dentro dele foi vanguarda a Articulação. Além de perseguir com coerência uma estratégia política e controlar com competência os principais aparatos de poder, ela propunha a toda a esquerda uma forma de luta estratégica, que, uma vez vitoriosa, seria capaz de abrir um período novo de ação política em nosso país: a eleição de Lula à Presidência. Participávamos de múltiplas iniciativas militantes no cotidiano, e a cada quatro anos renovávamos nossa esperança em uma possibilidade especial, a de colocar Lula lá.
Durou menos de um ano a transição de um auge a uma crise. Hoje, a Articulação tem um poder que a esquerda nunca teve, mas não é vanguarda de mais nada, nem para o bem nem para o mal. É, simplesmente, outra coisa: um grupo que ocupa posições de mando em um Estado corrompido e conservador, forte para premiar e punir, fraco para transformar. Adaptado a ele, usa essas posições para negociar tudo com todos. Falar de um "governo em disputa" era um erro há nove meses. Hoje é apenas cumplicidade com o charlatanismo.
A cooptação do PT pelo sistema de poder é a mais vergonhosa de todas, pois vem desassociada de qualquer ganho real para a base social que ele deveria representar. Ao contrário, ele aceitou ser o algoz dessa base: a contar do início do governo Lula, teremos um milhão de novos desempregados em fevereiro de 2004, e os rendimentos do trabalho estão em queda livre. A Previdência pública foi desmontada, e anuncia-se para breve o acerto de contas com a legislação trabalhista. Comparativamente a isso, a social democracia européia teve uma trajetória brilhante.
Nenhum de nós pede que Lula faça uma revolução. Nenhum desconhece o cenário, nacional e internacional, que nos cerca. Pedimos apenas decência, espírito republicano e compromisso com um capitalismo regulado. Basta isso para que sejamos chamados de radicais, num país em que política e indecência sempre foram mais ou menos a mesma coisa, em que o Estado sempre foi um espaço de negociatas e em que, em vez de capitalismo, prevalece a bandalha. Insistimos nessas três coisas, porque por menos do que elas a própria atividade política já não vale a pena. Por menos, é melhor ir para casa.
O que nos afasta do PT não são posições adotadas nessa ou naquela questão. São valores e princípios. É esse ilimitado pragmatismo de quem, uma vez no poder, não pode correr risco nenhum, nem mesmo o risco de dizer a verdade. No lugar da verdade, marketing, dissimulação e engodo, uma enorme operação de deseducação política do povo brasileiro. No lugar de uma ação coletiva, de baixo para cima, um líder que desmobiliza e que, como todo medíocre, começa a se considerar semideus. No lugar de um projeto, espertezas, um discurso para cada interlocutor. No lugar de diálogo, ameaças, chantagens, nomeações, demissões. No lugar da luta de idéias, movimentos sempre nas sombras. É o triunfo da razão cínica.
O chefe disso chama-se Luís Inácio Lula da Silva. Sua principal herança, para a esquerda brasileira, não será formada a partir de acertos e erros aqui e acolá, naturais na trajetória de qualquer pessoa. Sua herança mais duradoura será construída pela sistemática sinalização de valores negativos, que ele ajudou a difundir amplamente nos últimos anos. Isso é que é imperdoável. Arrogante com os "de baixo" e subserviente aos "de cima': desqualifica-se, pois o que se espera de um líder popular é exatamente o contrário: que seja humilde com os de baixo e firme com os de cima. Aos pobres, "seus filhos': pede infinita paciência, enquanto atende com presteza aos reclamos dos ricos, os financiadores de campanhas. Desemprega um milhão de brasileiros e anuncia-se como aquele que resgata a auto-estima do Brasil. Considera-se corajoso porque tira direitos de enfermeiras, professores e barnabés, conduz serviços essenciais ao colapso, enquanto se dispõe a pagar pontualmente mais de R$ 150 bilhões em juros aos rentistas só neste ano. É o novo líder dos trezentos picaretas que denunciava. Logo lhes entregará mais ministérios.
Seu governo passará, mas sua liderança deixará na esquerda um extenso e duradouro legado: milhares de pessoas despreparadas e sem valores, que aprenderam no PT que fazer política é gerenciar interesses. Esses ficarão ainda por muito tempo, na forma de uma geração de gente perdida, que nunca lutou e foi derrotada. É isso que dói.
Fonte: Artigo publicado na revista Caros Amigos n. 80, novembro de 2003.
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