Boa parte dos conflitos sociais e das lutas de classes assume hoje a forma de “guerras discursivas” e disputas de narrativas. Dizer isso é reiterar uma espécie de cláusula dos estudos sociais, nos quais a linguagem ganhou posto de honra.
Numa sociedade estruturada em redes sociais ativas e influentes, tudo o que se passa nelas reflete o que circula à boca pequena, e vice-versa. Nem tudo, porém, presta ou tem mérito. Suspeita-se mesmo que parte importante das “narrativas” é composta de lixo, dejetos e fragmentos de verdade, que vão sendo despejados sobre uma multidão de pessoas nem sempre preparadas para processar o que recebem. A oferta é abundante, mas de má qualidade.
Muitas narrativas são construídas à base de mentiras, meias-verdades e desinformação. Na luta política, elas são feitas para persuadir emocionalmente, ou seja, mobilizar, normalmente contra e não a favor. Para sustentar, por exemplo, que o projeto de terceirização aprovado pela Câmara é contrário aos interesses dos trabalhadores, faz-se um exercício de demonização apoiado em duas premissas: (a) a medida seria “contra todos” e (b) estaria destinada a acabar com certas conquistas sociais importantes, como, por exemplo, 13.º salário, férias, seguro-desemprego, verbas rescisórias e licença à gestante, terminando por se chocar com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Trata-se de uma mentira. Ela insufla os ânimos e faz com que muitas pessoas se mobilizem para “lutar por direitos”, sem nem sequer se dar ao trabalho de avaliar se eles estão de fato sob ameaça. Não analisam o texto em questão, nem consideram que ele ainda não foi convertido em lei, que o presidente poderá alterá-lo, suavizando-o ou não, e assim por diante.
A atitude de disseminar falsidades tem um duplo vetor. Por um lado, mobiliza, mas mediante exageros e distorções. Por outro, em decorrência, cria falsas expectativas nas pessoas e reforça a ignorância delas. Tem, também, uma dimensão crua, rasteira, passional, e uma dimensão mais sofisticada, escudada em estudos acadêmicos, pesquisas e números que, devidamente esmerilhados, provariam qualquer coisa.
Os que se valem desta atitude, por sua vez, alegam estar combatendo mentiras disseminadas pelo governo, como por exemplo a que estabeleceria a tese (falsa) de que a terceirização criará empregos, como num passe de mágica.
O “terrorismo verbal” de um polo alimenta o “terrorismo verbal” do outro. Sem a terceirização, não teremos crescimento, diz um; com a terceirização, diz outro, a “precarização” será inevitável.
Com isso, a noite desce sobre todos, tenebrosa, espalhando suas sombras de medo, insegurança e incerteza.
Desaparecem as mediações, inclusive de sentido. Perde a democracia, que requer cidadãos politicamente esclarecidos, e o conflito social fica sem potência positiva, diluindo-se em choques inconsequentes. A impressão é de tensão crescente, mas no fundo tudo não vai além de escaramuças sem maiores efeitos.
Os ativistas das redes sociais caem facilmente nessa esparrela. Seja porque não têm tempo para pensar e vão ao embalo das provocações, seja porque gostam de “causar” sem medir as consequências, seja porque estão dispostos a contribuir para o embrutecimento geral por acreditarem que com ele farão a luta avançar. Ou simplesmente porque aceitam tudo o que leem desde que venham de fontes que legitimam ou tragam certas palavras simbólicas reconhecíveis de um jato.
Deveríamos limpar o terreno e melhorar o desempenho das “narrativas”, no mínimo fazendo com que elas não se descolem demais do bom senso e da realidade factual. Quando mais dramático o tema, quanto mais importante for para vida das pessoas comuns, mais cuidado e seriedade deveria haver na argumentação.
Ganharíamos todos.
Fonte: O Estado de São Paulo (1/04/17)
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