Não faz sentido subestimar a controvérsia sobre a reforma política, até porque, todos sabem, o País dela precisa, e muito. São bem-vindas as ideias sobre a racionalização do sistema partidário, o financiamento da democracia, as mudanças na forma de captar o voto e transformá-lo em cadeiras parlamentares, ainda que a divergência sobre cada um desses tópicos não seja pequena e pareça ilusória a aposta numa grande reforma, advinda de uma Constituinte exclusiva, em desfavor de mudanças mais precisas e controláveis, mas capazes de encurtar o presente abismo entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos, ruas e instituições.
Não custa lembrar que a crise das democracias está longe de ser exclusividade nossa, ignora limites geográficos e mecanismos eleitorais. O voto distrital americano ou inglês, o distrital misto alemão ou o proporcional em outros países não têm imunizado as respectivas democracias contra surtos perturbadores de populismo – com sua guerra fingida contra as “elites” – e tentativas de dilapidação das instituições. E há mesmo razão para desconfiar de patologias mais graves. Afinal, depois de Trump ou Putin, não se sabe o que será da verdade ou, para ser menos enfático, o que acontecerá às “narrativas” bem argumentadas que pressupõem um universo comunicativo compartilhado por pessoas diferentes entre si, mas sensatas e razoáveis.
Há, pois, um vasto problema de cultura política sob a superfície imediata de nossos problemas. Decerto, eleições proporcionais com lista aberta, sem nenhum tipo de barreira, incentivam a fragmentação partidária e tornam opacas as relações entre quem vota e quem deveria representá-lo. Decerto, ainda, a desastrada emenda da reeleição, aprovada sem a cláusula que limita sua possibilidade a dois mandatos, segundo o modelo norte-americano pós-Roosevelt, submete-nos à tutela de líderes carismáticos que, sejam quais forem e seja lá o que representem, terão o condão de nos assombrar por um tempo superior ao de uma geração histórica, freando a renovação e infantilizando a cidadania.
Tomando o pulso das modernas democracias, o que se encontra é um terreno minado por polarizações radicais. As sociedades estão divididas de forma talvez inédita, uma vez que se associam, em caráter explosivo, novas e crescentes desigualdades e “guerras de valores” aparentemente inconciliáveis. Parece impossível reconstituir algum tipo de unidade moral, ainda que em termos minimalistas. O lema de nossos dias, America first, com seu poder de contaminação, prenuncia um recuo de poderosas elites nativas para o campo puramente econômico-corporativo. Pode-se supor que o interesse material bruto pretenda tomar a frente e relegar a (grande) política a papel secundário.
Na polarização irracional, um papel destacado tem cabido às redes sociais. Evidentemente, elas alteraram nossa percepção do mundo e vieram para ficar. Abriram imensas possibilidades para a vida democrática ao pôr quase tudo ao alcance de quase todos. Alimentam o ativismo digital, suscitam a participação, fazem circular a informação em fração de segundos. Mas, como tem sido a experiência global e, obviamente, também a brasileira, carregam consigo riscos evidentes de uniformização e sectarização de grupos sociais inteiros.
As seitas descobriram a internet e suas redes – esse o perigo que tocamos com as mãos e contribui para a criação de mundos comunicativos separados uns dos outros por barreiras invisíveis, mas nem por isso pouco eficazes. Um professor de Harvard, Cass R. Sunstein, adverte-nos em livro recente (#Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media, editora da Universidade de Princeton) sobre a realidade monocórdica dos “casulos de informação” e das “câmaras de eco”, ambientes artificiais em que se exaspera a tendência humana à “homofilia”, o amor ao que é igual a si mesmo e a aversão ao que é diferente.
Narciso sempre acha feio o que não é espelho e certamente não entende outra voz além da sua. Nas “câmaras de eco”, o que cada indivíduo ouve é sua própria opinião amplificada exponencialmente pelos demais. O vozerio ensurdecedor não esconde que se está no reino do pensamento único – seja “progressista”, seja “reacionário”. E assim é porque se vive em guetos de comunicação, não em cidades virtuais em que haja esquinas livres, encontros inesperados e convivência de opostos. Experiências e valores compartilhados estão como que proibidos a priori, eles que dão substância à ideia democrática por excelência de recíproco reconhecimento da legitimidade entre adversários, mesmo afastados uns dos outros.
Tais preocupações não são abstratas, pois, de fato, permeiam a crise brasileira. Em princípio, seria papel da esquerda, que jamais encabeçou os recorrentes regimes autoritários entre nós, portar a boa-nova democrática, rejeitando a contraposição binária, a lógica infernal de amigos e inimigos irredutíveis. Não foi assim. Ao contrário, empregaram-se categorias anacrônicas, imaginou-se fabulosamente “tomar o Estado”, em vez de bem governar e promover mudanças reais – e hoje se chega a lamentar, em autocrítica capenga, o “erro” de não ter substituído partidariamente estruturas públicas do sistema de controle.
E de tanto gritar “direita” diante de qualquer crítica, acabou-se por criar uma virulenta direita real – e virtual –, tão doutrinária e hostil à ideia de uma “casa comum” quanto a esquerda que esteve no poder.
No fundo, temos em ambos os casos o enclausuramento nas próprias “verdades”, o vezo de liquidar o inimigo – menos mal que, por ora, só retoricamente –, a incapacidade de produzir grupos com função dirigente “intelectual e moral”, para usar expressão antiga. Sair do círculo vicioso desta esquerda e desta direita, relegando-as às margens, será a missão dos democratas, sem exceção. Estamos proibidos de falhar.
Fonte: O Estado de São Paulo (16/04/17)
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