Os episódios recentes envolvendo a Venezuela e o Paraguai, ambos verdadeiros golpes nas regras democráticas, revelam sinais de esgarçamento do processo de democratização da região, iniciado na década de 1980. Obviamente que a situação dos países não é a mesma em todos os cantos, mas ressalte-se que em outros casos também têm emergido graves situações de crise política, com reflexos sobre a qualidade das instituições. Uma pergunta fica no ar: como consolidar as práticas democráticas construídas nos últimos trinta anos e expurgar o que se manteve de autoritarismo, principalmente para evitar o seu retorno na forma mais bruta? É preciso responder a tal pergunta pensando o quanto ela diz respeito ao Brasil.
Essa questão só pode ser colocada hoje, ressalte-se, porque, de um modo ou de outro, a democracia floresceu na região, após séculos de mandonismos os mais variados, como domínio colonial, escravidão, caudilhismos e outros. As formas mais modernas de autoritarismo se instalaram ao longo do século 20, com grande predominância de regimes militares a partir da década de 1950. A saída dessas sangrentas ditaduras não foi fácil, pois algumas duraram décadas e tiveram um alto grau de violência.
Algumas condições permitiram uma onda democrática longa na América Latina. A primeira foi o próprio desgaste de tantos anos de autoritarismo, com sequelas terríveis para a sociedade. Tinha se tornado cada mais complicado defender uma estrutura cada vez mais carcomida e comprometida com o desrespeito aos direitos humanos. Porém, isso só não bastaria. A mudança na ordem internacional, sobretudo na política externa americana a partir da presidência de Jimmy Carter, também foi fundamental, porque sem o apoio direto dos EUA ficou muito mais difícil manter governos ditatoriais na região.
É inegável que o fim dos regimes militares e o florescimento das democracias tiveram, ainda, uma relação muito forte com o ciclo econômico. A crise do final da década de 1970 e começo da década de 1980 dificultou a manutenção daqueles governos. Do mesmo modo, os ventos econômicos, principalmente (mas não só) no front externo, extremamente positivos da primeira década do século foram peças-chave na estabilidade do sistema. E agora, com a reversão do ciclo, as democracias terão uma base de sustentação mais frágil.
Deve-se ter muito cuidado, no entanto, com o economicismo. Afinal, a força de um regime democrático está em sobreviver às intempéries, incluindo aí as econômicas. Por isso vale realçar que grande parte do sucesso da democratização em solo latino-americano se deveu às escolhas políticas da população e da elite dirigente. A continuidade dos processos eleitorais, mesmo com pedras no meio do caminho, fez com que a maior parte dos cidadãos defendesse a democracia para manter seu direito de participar. Os políticos também tiveram um papel central, pois, em primeiro lugar, construíram instituições democráticas, mesmo que esse processo não tenha sido linear.
A construção das instituições não foi perfeita, como se percebe ao se constatar às falhas atuais dos sistemas políticos latino-americanos. Mas a elas se somou escolhas em prol dos direitos e do combate à desigualdade. A incorporação de milhões de pessoas ao jogo político e sua inclusão social foi um alicerce essencial para a manutenção das democracias da região. Pela primeira vez, e em meio a processos competitivos de eleição e "accountability", foi possível conjugar o pluralismo democrático com um projeto de igualdade a todos, algo que se tornou mais sólido quando as economias tiveram melhor desempenho.
O cenário atual é outro. Claro que os países, como dito anteriormente, não têm tido o mesmo resultado. Mas o fato é que tem sido cada vez mais difícil manter a tríade estabilidade democrática, crescimento econômico e combate à desigualdade. Na edição do ano passado do Latinobarômetro, mais importante enquete de opinião da região, foi revelado que o índice de confiança da população na democracia tinha, no geral, caído significativamente. Diante disso, o documento afirmava que "agora o déficit de confiança está ocorrendo num momento no qual se mesclam as baixas perspectivas econômicas com as altas demandas dos cidadãos em relação aos governos. Trata-se de uma combinação que se observa pela primeira vez desde 1995".
O que fazer para mudar essa situação? Primeiro, é preciso garantir a estabilidade básica do sistema democrático. Isso envolve a independência dos Poderes - algo que já não existe na Venezuela há um bom tempo -, o controle mútuo entre eles (evitando a tirania de um sobre os demais) e a responsabilização dos agentes públicos. É saudável que o sistema de Justiça ganhe força na região, dada sua fragilidade histórica. Não obstante, seus atores principais precisam ser responsáveis, transparentes e não aderir a uma posição arrogante e arbitrária. É bom ter Judiciário forte, mas o voto é a peça-chave da democracia.
A melhoria da qualidade da gestão pública e das políticas públicas é outro grande desafio. Embora tenham expandido bastante os direitos, os governos da região têm, no mais das vezes, administrações públicas pouco eficientes e efetivas. Como mostra o relatório do Latinobarômetro de 2016, o Estado continua sendo central para o processo democrático, em sua atuação contra a pobreza, a desigualdade, na segurança pública, na educação, entre os assuntos principais. O aperfeiçoamento das políticas vai depender de maior profissionalização da burocracia, da adoção de instrumentos gerenciais mais modernos, da maior transparência governamental e do combate ao patrimonialismo e à corrupção.
É preciso que as regras valham igualmente para todos na América Latina. Essa noção ainda não foi assimilada pelas elites locais, pertencentes a diversos grupos políticos e ideológicos. O Paraguai já tinha alcançado o recorde mundial de como tirar presidentes com mais celeridade ao fazer o impeachment de Lugo - processo que não cumpriu os requisitos mínimos do Estado de direito. Agora, tenta instaurar a reeleição presidencial num jogo completamente divorciado da sociedade e no qual alguns "são mais iguais do que os outros". O fato é que ou as instituições tratam a todos igualmente, qualquer que seja o seu lado político, ou isso atravancará a construção de longo prazo da democracia latino-americana.
O sucesso da economia, não só em termos de crescimento, mas também no que tange à capacidade de redistribuir renda e garantir direitos, favorece a estabilidade democrática, embora não seja capaz de resolver sozinho essa questão. De todo modo, a melhoria no ambiente econômico é essencial para o futuro político da América Latina. Tanto melhor será essa trilha se ela for casada com a inclusão social no seu sentido mais amplo, abarcando os vários tipos de desigualdades presentes na região.
Toda essa lista de desafios terá de ser enfrentada superando as polarizações políticas constituídas nos últimos anos. Muita coisa melhorou na política dos países latino-americanos se levarmos em conta a sua história. Evidentemente que ainda há muitos problemas e vícios. Para lidar com essa situação, o modelo polarizado que se dissemina pela região olha mais pelo retrovisor, em vez de tentar encontrar novas agendas e formatos de se fazer a política.
O Brasil está no contexto latino-americano e tem várias semelhanças com seus vizinhos. Há também diferenças, é claro. Se pensarmos numa escala democrática, o regime brasileiro está mais avançado que a maioria dos países da região em relação à qualidade das instituições públicas (políticas e de políticas públicas), embora esteja muito mal no ranking relacionado ao apoio da população à democracia, quesito no qual o país está na rabeira, conforme o último Latinobarômetro. Essa perda de confiança tem forte vinculação com a combinação entre crise política e recessão. Resolver ambas é essencial para voltarmos ao casamento virtuoso que tivemos entre 1993 e 2013, juntando estabilidade econômica, democratização e combate à desigualdade.
Ter bom desempenho econômico e melhorar a qualidade das políticas governamentais são importantes para voltarmos à trilha de aprofundamento democrático. Mas há fatores políticos que são molas propulsoras dessa melhora e é necessário atuar sobre eles. Um deles é fazer com que as regras democráticas valham igualmente para todos e aí entra a discussão sobre a chapa Dilma-Temer no TSE.
Evidentemente que é preciso garantir o direito de defesa e o devido processo legal, não se esquecendo que essa questão já está há mais de dois anos no Tribunal. O importante é saber o seguinte: se os fatos claramente mostrarem que é preciso cassar a dupla de candidatos, pois houve ilicitudes graves, o que fazer? Se pensarmos nos aspectos estruturais da democracia e nos efeitos de longo prazo dessa decisão, o certo é tratar igualmente a todos e fazer com que a lei seja cumprida. Se a resposta não for nessa linha, é provável que o Brasil mantenha, em seu futuro, muitas das características que estiveram presentes em toda a história latino-americana, de modo que a democracia continuará sendo um mal-entendido entre nós, para lembrar da frase célebre de Sérgio Buarque de Holanda.
Fonte: Valor Econômico (07/04/17)
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