Quando começou a escrever "Ruling the Void" (governando o vácuo), em 2007, o politólogo Peter Mair tocou no ponto nevrálgico da crise que atinge a democracia em todo o mundo. Especialista em política comparada, chegou a uma visão sombria sobre a trajetória dos sistemas partidários nas sociedades contemporâneas.
"A era da democracia de partidos passou. Embora os partidos permaneçam, eles se tornaram tão desconectados da sociedade mais ampla e buscam uma forma de competição tão sem sentido que não parecem mais capazes de sustentar a democracia na sua forma presente", afirmou.
Mair chamava a atenção para um dos problemas cruciais da grande transição que vivemos no século 21, o do esvaziamento da democracia representativa.
Este é o subtítulo que deu a seu ensaio: "Ruling the Void: The Hollowing of Western Democracy" (Verso Books, 2013; governando o vácuo: o esvaziamento da democracia ocidental). Ele trabalhou nesse livro até 2011, quando morreu sem poder completá-lo.
O resultado desse projeto foi publicado postumamente. Nele, o autor examina a mudança na natureza dos partidos políticos e o impacto negativo que isso provoca na permanência, na legitimidade e na efetividade da democracia representativa contemporânea.
Ele vê com preocupação a emergência de uma noção de democracia destituída de seu componente popular e o aumento da desconfiança na política, nos políticos e nos partidos. Esse processo trouxe a própria democracia para a agenda de debates na imprensa e na academia, a ponto de hoje falar-se de seus problemas e dos caminhos para sua revitalização mais do que em qualquer outro momento no passado.
Para Mair, o renovado interesse pelos problemas da democracia revela menos a intenção de revigorá-la, aproximando-a dos cidadãos, e mais o desejo de desencorajar a participação popular.
A crise da representação se agrava com a oligarquização dos partidos, dominados por grupos políticos que se perpetuam no poder e usam a estrutura da sigla não para canalizar demandas e valores das pessoas que pretendem representar, mas como trampolim para outros cargos e posições.
O caso da Lava Jato mostra que, no Brasil, esse controle de cargos também teve por objetivo negociar transações milionárias e ilegais.
Ao não se sentirem representados, os cidadãos viram as costas para a política e para as agremiações. Dissemina-se o sentimento antipolítica; os eleitores passam a buscar forasteiros –o "não político", o "gestor" e o "magistrado", entre outros– e se afastam cada vez mais da trilha democrática, pela esquerda ou pela direita.
Mair e vários outros críticos dos rumos adotados pela democracia partidária nas últimas décadas atribuem à social-democracia a responsabilidade principal pela crise de representação.
A culpa maior, por assim dizer, seria dos partidos de esquerda e centro-esquerda, que fracassaram em apresentar um paradigma de democracia popular e políticas públicas compatíveis com as transformações da sociedade.
Essas mudanças redesenharam as forças sociais, redefiniram os setores despossuídos e criaram novas necessidades. Tudo isso em um quadro de forte redução da capacidade de gasto discricionário por parte dos governos.
O Estado de bem-estar social, que se tornou o centro de gravidade das políticas da esquerda democrática, amadureceu. Hoje, uma porção muito maior da população partilha o orçamento de pensões e benefícios sociais criados ao longo do século 20. A demografia mudou, porém; as pessoas vivem mais e recebem esses recursos por mais tempo, enquanto encolhe a base de contribuintes.
Esse é o aspecto central dos ensaios recolhidos por Armin Schäfer e Wolfgang Streeck para o volume sobre a política na era da austeridade, "Politics in the Age of Austerity" (Polity Press, 2013).
Uma tendência geral de limitação orçamentária obriga os governos de qualquer persuasão a fazer escolhas responsáveis ou prudentes, o que costuma torná-los menos capazes de atender a seus eleitores, afirma Peter Mair ("Smaghi versus the Parties: Representative Government and Institutional Constraints", Smaghi versus os partidos: governo representativo e condicionantes institucionais).
A combinação entre essa restrição de recursos e o desgosto com as práticas políticas produz um descolamento perigoso entre as aspirações da sociedade e a satisfação com a democracia.
Um dos resultados é o aumento da alienação eleitoral, com índices baixos de comparecimento ou taxas altas de votos nulos ou em branco. O fenômeno se repete em regimes presidencialistas e parlamentaristas e em todos os sistemas, seja majoritário-distrital, seja proporcional, seja misto.
Vivemos, praticamente no mundo inteiro, um ciclo político-econômico-social que distancia cada vez mais o público da política.
Os governos liberal-democráticos adotam medidas de austeridade e reduzem os gastos sociais, com a consequente perda de apoio de boa parte dos eleitores.
Os governos de esquerda, por sua vez, incapazes de desenvolver propostas redistributivas compatíveis com o orçamento do Estado contemporâneo, gastam além da conta, quando não resvalam para o puro populismo, e enfrentam crise de endividamento e quebra da confiança do mercado financeiro dominante. Se buscam agir dentro dos limites do possível, não conseguem suprir toda a demanda social, e os cidadãos em desvantagem é que deixam de confiar neles.
Num movimento pendular, são em geral sucedidos por um governo de austeridade, que acarreta mais desemprego e mais perdas. A economia em transição não gera dinamismo suficiente para retornar ao pleno emprego nem para recuperar totalmente a renda real do conjunto da população.
A diferença é que as soluções da direita liberal-democrática cumprem seus objetivos e restauram as condições de funcionamento regular da economia, ainda que a alto custo social. As da esquerda democrática não resolvem os problemas que se propõem a resolver e criam novos, com custos sociais que atingem sua própria base.
O sociólogo Claus Offe, em ensaio para essa mesma coletânea ("Participatory Inequality in the Austerity State: A Supply-Side Approach", desigualdade de participação no Estado da austeridade: uma abordagem pelo lado da oferta), fala em governos sitiados, que não aumentam impostos porque não querem afetar a economia real, já em dificuldades crescentes.
Administrações de inclinação social, por outro lado, não conseguem cortar despesas porque a própria necessidade de diminuir o peso da carga tributária produz orçamentos cada vez mais comprometidos com gastos que não podem ser reduzidos.
Em resposta, os cidadãos deixam de acreditar na possibilidade de controle democrático sobre as políticas governamentais.
Esse ciclo, escreve Offe, agrava o dilema democrático. A desigualdade na repartição de recursos sociais, econômicos e educacionais (cognitivos) reforça as distorções eleitorais: após uma rodada de piora distributiva, os setores mais prejudicados têm ainda menos vontade de participar das votações.
Como os governos são vistos como responsáveis pelo aumento das desigualdades, cresce o sentimento de que o sufrágio não faz diferença.
Desse modo, a alienação eleitoral, que incide com força proporcionalmente maior sobre os setores mais insatisfeitos e descrentes, reduz a possibilidade de renovação política, o que, por sua vez, realimenta a alienação eleitoral.
Dado esse cenário, o que farão os cidadãos que se abstêm nas escolhas eleitorais, descreem dos governos de todos os matizes e não acreditam que as instituições sejam capazes de oferecer soluções efetivas para seus problemas?
Parte encara esses duros fatos e enfrenta os riscos de se virar por conta própria. É essa fatia da população que termina servindo de base social para as teorias pós-democráticas, que miram um futuro de democracia despolitizada, sem povo, apenas guardiã dos direitos constitucionais e dirigida com eficácia, mimetizando a gestão privada.
Outra parte recorre a protestos como os realizados nas periferias pobres de Paris e Londres ou a manifestações com objetivos difusos, que somam demandas díspares de parcelas heterogêneas da sociedade, como se viu nas manifestações de 2013 no Brasil, e não criam apoio sustentado para movimentos políticos mais consistentes.
Nenhum analista imagina que esse estado de coisas seja durável, o retrato do futuro para sempre. Todos veem esta como uma situação transitória.
Em meu ensaio *"A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século XXI" [Companhia das Letras, 2017, 416 págs., R$ 59,90, R$ 39,90 em e-book]*, argumento que este é um quadro de transição radical e longa, que vai alterar nossas vidas muito profundamente e de formas ainda imprevisíveis.
Terminada a transição, é certo que o mundo será em tudo bastante diferente: na sociedade, na economia, na política, no clima e no ambiente. Não se sabe, contudo, o que resultará desse processo; o desfecho dependerá das escolhas que os distintos povos da sociedade global em formação farão nos próximos anos e décadas.
Daí por que é central a questão da democracia e da participação eleitoral justa e igualitária. Trata-se dos instrumentos de que a sociedade dispõe para fazer essas escolhas. Não haverá oligarquias ilustradas que possam fazer legitimamente essas escolhas por nós. A qualidade do jogo democrático, daqui para a frente, será decisiva para o futuro do mundo pós-transição.
Não é difícil ver que essas questões estão dolorosamente presentes na vida política brasileira, nas últimas duas décadas.
A campanha de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) pelo segundo mandato presidencial, em 1998, foi marcada pela crise do real e pela necessidade de realizar os já àquela época chamados ajustes fiscais. A reforma da Previdência era item saliente da agenda do governo e não passou por margem mínima no Congresso.
Na disputa de 2002, Lula (PT) divulgou sua "Carta ao Povo Brasileiro", na qual se propunha a manter a política de estabilidade e a responsabilidade com as contas públicas. O petista também fez sua reforma da Previdência, no setor público, estabelecendo idade mínima para as aposentadorias.
Dilma Rousseff (PT), no seu primeiro mandato, regulamentou a reforma de Lula. No segundo e incompleto período presidencial, fez mudanças no sistema de pensões, após ter reconhecido a inevitabilidade do ajuste fiscal –cuja premência negara como candidata.
A política econômica de Michel Temer (PMDB) baseia-se nos mesmos pilares. Suas prioridades são o equilíbrio orçamentário e a reforma da Previdência.
As crescentes limitações de recursos do Estado brasileiro são evidentes por si mesmas. Elas se agravam pelas enormes distorções técnicas e políticas de nosso processo orçamentário e pelo recurso recorrente à elevação de impostos, por vezes disfarçados de contribuição. Em decorrência, temos uma carga tributária brutal, desigual e complexa. Ficou difícil taxar ainda mais os contribuintes sem estrangular a economia e a sociedade.
Temos um Leviatã anêmico, grande, burocrático e ineficaz. Um quadro educacional em frangalhos, que contribui para o aumento das desigualdades sociais e políticas. Um sistema de saúde em colapso, que deixa a população a descoberto e sob risco de conviver com surtos epidêmicos, como os de dengue, zika, chikungunya e, recentemente, febre amarela.
As coalizões que se sucedem no poder, independentemente da orientação ideológica do partido presidencial, mostram-se incapazes de extirpar distorções no gasto público que premiam setores ineficientes, obsoletos e de impacto nocivo no meio ambiente.
As reformas já feitas não eliminaram os privilégios incrustados no Orçamento e no sistema de seguridade, atingindo sempre e somente os menos favorecidos e o cidadão mediano.
A Terceira República, inaugurada com a promulgação da Constituição de 1988, reafirmou o presidencialismo de coalizão como modelo político-institucional para o país, após a ditadura militar (1964-1985). A incapacidade de o partido que elege o presidente fazer a maioria não decorre de regras eleitorais, mas da realidade social de uma nação continental, heterogênea e desigual.
A fatia do Congresso Nacional que o partido presidencial consegue obter nas eleições diminuiu em relação ao padrão na Segunda República (1946-1964).
Essa redução se deveu a fatores sociológicos –como urbanização, industrialização, elevação dos níveis educacionais– e políticos –principalmente o aumento do número de partidos (em razão da liberalidade das regras de criação de legendas), a facilidade na distribuição de recursos públicos para seu financiamento corrente e a ausência de freios e contrapesos sobre o uso dessas verbas.
Na Segunda República, tínhamos um sistema de fragmentação moderada em comparação com outras democracias, como mostrei em meu artigo "Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro" ("Revista Dados", vol. 31, nº 1, 1988, págs. 5-32).
Hoje, com quase 30 anos de Terceira República, temos o sistema partidário com maior fragmentação entre todas as democracias, como mostra Jairo Nicolau em livro recente sobre o sistema partidário-eleitoral brasileiro, "Representantes de Quem? Os (Des)caminhos do seu Voto da Urna à Câmara dos Deputados" [Zahar, 2017, 176 págs., R$ 39,90, R$ 19,90 em e-book].
Tanto pior, a hiperfragmentação coincide com a máxima deformação dos partidos, que convergiram para um padrão comportamental comum: clientelista e de formação de coalizões de comparsas em lugar de coalizões de propostas.
Cria-se ambiente propício para o recurso frequente e desabusado ao financiamento ilegal e à propina para fins políticos e de enriquecimento ilícito, buscando a perpetuação das oligarquias no poder.
A oligarquização, o descolamento das bases sociais e do público em geral e o casamento espúrio com financiadores ou grupos de interesses levaram ao completo esvaziamento de nossa estrutura partidária. Se conhecesse o caso brasileiro contemporâneo, Peter Mair teria outra dimensão de vácuo representativo, que talvez ensombreasse ainda mais sua visão.
A hiperfragmentação engendra a necessidade de uma coalizão de dimensão tal que excede a capacidade de manejo político articulado, tornando o presidencialismo refém de facções partidárias e pequenas legendas.
O fundo partidário, ao distribuir recursos de acordo com o tamanho da bancada da Câmara dos Deputados eleita na legislatura anterior, perpetua o poder das oligarquias.
Ao dar fatia generosa de dinheiro para todas as siglas, banca aventureiros dispostos a viver de legendas vazias e arrivistas políticos que achacam o governo.
Essa não é a fonte do deficit público, da corrupção ou do toma lá, dá cá, mas contribui significativamente para elevá-los a potências nunca antes imaginadas.
Corrupção e troca-troca de favores são elementos de nossa cultura política. Inserem-se nas regras de funcionamento do sistema, que incentivam intenso jogo de clientelismo e oportunismo no processo orçamentário e nas nomeações para cargos na máquina estatal.
Também aparecem nas licitações, com procedimentos puramente formais que acobertam o ataque aos cofres públicos por meio de sucessivos ajustes no preço final, gerando o sobrepreço que financiará as propinas e engordará o caixa de empresas sem méritos nem escrúpulos.
Essas negociatas provocam inversão terrível no papel da população. Esta, em tese, deveria ser fonte e objetivo das ações públicas. Na prática, não é origem nem destino, mas a base do financiamento do setor público e do setor privado a ele atrelado, além de destinatária da conta dos desmandos e dos sacrifícios da austeridade.
Não é natural nem necessário que seja assim, mas, nos últimos dias, o público brasileiro viu estarrecido duas gerações de donos da Odebrecht, uma das maiores empresas do país, cliente do orçamento oficial há décadas, detalharem o modus operandi da vasta máquina de corrupção política por eles montada.
Além de tratarem com naturalidade tenebrosas transações, mostraram que haviam transformado a geração de caixa para financiar a propina e sua distribuição em negócio sofisticado, estruturado com métodos de gestão empresarial.
As delações, agora sem o véu do sigilo, mostram a generalização do caixa dois e o uso de recursos de sobrepreço de obras públicas para bancar propinas via doações declaradas à Justiça Eleitoral.
Revelam que não havia fronteiras ideológico-partidárias. Era um arranjo pluralista. Os partidos e suas oligarquias igualaram-se na competição por essas verbas subtraídas ilicitamente do Tesouro.
Caberá ao Poder Judiciário fazer a limpeza criteriosa e dura dessa coalizão promíscua e ilegal entre partidos e empresários, políticos e gerentes. A correção desses desvios só será possível por meio da Justiça e dos órgãos de controle, como o Ministério Público.
Aumenta a judicialização da política, fato que Peter Mair havia previsto, em razão das distorções do sistema representativo.
A crise interna que o Brasil atravessa encontra-se com os tremores da grande transição mundial. Uma transição que combina mudanças tectônicas nas estruturas da sociedade global e transformações locais, de adaptação e aproveitamento das novas possibilidades que vão sendo abertas.
Enfrentamos um grande desafio. Precisaremos refundar nossa democracia, redesenhar nosso modelo político e renovar nossa elite política para que possamos surfar as ondas do tsunami de mudanças.
Quanto menos escolhas coletivas virtuosas formos capazes de produzir, mais penosa será a travessia. Quanto mais aproveitarmos os potenciais e recursos que temos –e não são poucos– para atravessar bem a transição e lançar os alicerces sólidos da sociedade que seremos no futuro, maior a possibilidade de sucesso.
O futuro não está dado. Ele será o resultado de um misto de escolhas e imprevistos. Quanto melhores as nossas escolhas, menor o risco de sermos colhidos indefesos pelos imprevistos.
Há movimentos incontroláveis nas camadas tectônicas da transição. Mas há espaço, como nunca houve em tempos recentes, para iniciativas, inovações e livres escolhas –particulares e coletivas, domésticas e globais– que darão as formas da sociedade humana no futuro.
Temos a vantagem de saber que nosso sistema político, nossas elites políticas e boa parte da elite empresarial não estão aptos a fazer boas escolhas em nosso nome.
Um caminho muito ruim seria a sensação de impotência diante desse quadro de espanto e frustração, com a opção pelo silêncio político e pela alienação eleitoral. Pior ainda seria o recurso ao protesto violento e sem foco, às divisões polarizadas estéreis.
Nesses tempos líquidos, como os chamava o sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017), de incerteza, imprevisto e inquietude, não há possibilidade de consenso. Mas há espaço para a concorrência plural e democrática de projetos para o país, para que possamos escolher, coletivamente, os rumos que queremos para ele depois desse colapso moral e político que desafia nossa democracia.
Já superamos grandes perigos com sucesso. Afastamos a ditadura e construímos a Terceira República, a mais democrática de nossas experiências republicanas, com todas as falhas que temos visto. Vencemos a hiperinflação. Reduzimos a pobreza e a desigualdade.
Agora temos duas novas tarefas coletivas pela frente. Revigorar nossa democracia, tornando-a menos vulnerável à corrupção e ao controle oligárquico, e definir os modos pelos quais atravessaremos a grande transição do século 21.
Não é uma coisa que se possa fazer com a simples mudança de regras eleitorais.
(*) Sérgio Abranches, sociólogo, é autor do livro "A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século XXI" (Companhia das Letras, 2017)
Fonte: Ilustríssima/FSP (23/04/17)