sábado, 29 de abril de 2017

A República confessional (José de Souza Martins)

A crescente imposição de manifestações confessionais nas casas legislativas - as câmaras municipais, as assembleias estaduais, a Câmara e o Senado - é também crescente violação da Constituição Federal no relativo à separação republicana entre Estado e religião no Brasil.
Sempre há devotos de determinados credos que julgam ter recebido o mandato de violar a lei em nome de sua religião, para dar o testemunho de sua fé. Não obstante um decreto de 1890, já antes da Constituição de 1891, tenha livrado o Estado brasileiro da tutela religiosa e estabelecido que, no Brasil, com a República, religião é assunto estritamente privado e pessoal, condição essencial da liberdade de consciência.
Dos parlamentares, o que se espera é que nas casas legislativas deem testemunho da honestidade, da decência e do respeito à Constituição, às leis e aos direitos de todos. Na República, a lei acabou com a concepção estamental de que alguns são mais iguais do que outros. Ninguém é dono ou tutor da consciência alheia, como é na escravidão e no patriarcado.
Segui de perto em São Paulo, em 1954, o VII Congresso Mundial de Evangelismo, quando a capital e o subúrbio foram invadidos por numerosos pregadores americanos fundamentalistas (a eles se reduzia o mundial), para lançar aqui um suposto reavivamento religioso. Usaram os templos das igrejas protestantes tradicionais. Onde não os havia, montaram as tendas da cura divina em terrenos baldios.
Quando se foram, haviam abalado convicções dos membros das igrejas tradicionais. E haviam convertido numerosos católicos nominais, recém-migrados da roça, aqueles cujo catolicismo resumia-se a duas visitas à igreja, para o batismo e o casamento. Presenciei sessões de milagres em inglês numa igreja do Cambuci. Ouvi gente falando línguas estranhas, um dos dons do Espírito Santo.
Ficou a semente de um evangelismo de guerra santa, de fim dos tempos, de satanização de todas as religiões que não se pautassem pelos valores da nova religião. Era o início de uma revolução religiosa que desencadeava profunda transformação na religiosidade do povo brasileiro para a tomada ideológica do poder pela nova forma de crença, como se veria depois e cada vez mais se vê. A meta é transformar a República em República confessional.
Na culta Araraquara, no começo deste ano, finalmente, ocorreu um legítimo ato de insurgência contra essa violação da Constituição num dispositivo do Regimento da Câmara Municipal, o artigo 148. Ele ordena a leitura de seis versículos da Bíblia no início de cada sessão, por um vereador, "obedecendo a sequência da ordem alfabética". Quem não o fizer, sai da lista em que não pediu para entrar e arrisca-se à estigmatização. O artigo inteiro viola a Constituição Federal quanto à laicidade do Estado. A vereadora Thainara Faria, do PT, de 22 anos de idade, estudante de direito, católica praticante, negra, recusou-se a seguir o rito inconstitucional. Corretamente, considerou errado colocar suas convicções pessoais no ambiente da Câmara.
Ela poderia entrar com ação judicial para fazer valer, também na sua Câmara Municipal, o princípio da Constituição relativo ao caráter laico do Estado brasileiro. Poderia, se quisesse, enquanto a ação não fosse julgada, fazer a leitura prevista de versículos. Eu começaria repetindo de cor, seis vezes, o versículo 21 de Mateus 22: "Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus", por meio do qual o próprio Cristo legislou sobre a separação entre religião e governo.
Em outra sessão, quando tocasse novamente a letra do meu nome, eu leria seis versículos daquele aritmético capítulo 1, do livro de Números: "21. Foram contados deles, da tribo de Rúben, quarenta e seis mil e quinhentos. 23. Foram contados deles, da tribo de Simeão, cinquenta e nove mil e trezentos". Até o versículo da soma do número de filhos das tribos de Israel com mais de 20 anos de idade: "46. Todos os contados eram seiscentos e três mil e quinhentos e cinquenta." Se ainda assim tardasse a Justiça a remover o artigo inconstitucional, eu iria para os Cantares de Salomão, o belo e poético livro erótico da Bíblia, começando pelo Capítulo 1: "9. A uma égua dos carros de Faraó eu te comparo, ó amada minha; 13. O meu amado é para mim como um saquitel de mirra, que repousa entre os meus seios". É bíblico.
Thainara Faria fez uma afirmação que é um versículo de civismo: "Mas estou aqui para servir ao povo e à Constituição. E lá está previsto que o nosso Estado é laico...". Os membros dos legislativos do Brasil inteiro deveriam repetir isso em coro, como um jogral, na abertura das sessões das respectivas Câmaras. E, como Deus na criação, biblicamente, veriam que isso é bom. É republicano.
Valor Econômico (28/04/17)

A esquerda, o silêncio e a religião (Eugênio Bucci)

“Na JEC, os assistentes apresentavam o Cristo como o macho, o forte, o homem, o cara que veio para fazer uma revolução, não uma revolução em termos políticos, mas de qualquer maneira uma revolução, pessoal, humana, de salvação. Isso continha uma mística tremendamente forte para nós. Essa era a religião que nós estávamos querendo. Isso teve um aspecto muito, muito positivo. (...) Foi com esse embalo místico que chegamos à AP: temos uma missão, somos uma geração com uma missão salvadora.”
Herbert José de Souza, o Betinho, no primeiro volume da obra coletiva Memórias do Exílio, publicada em 1976
Por que tantos militantes de esquerda têm tanta dificuldade em criticar a figura de Lula? De onde vem a barreira intelectual? Por que a idolatria, embora cansada, não arreda pé? Ou, quem sabe, o que existe aí é dependência psíquica?
Para encarar essas perguntas, uma esfinge do nosso tempo, começo invocando o passado. Começo pelo testemunho de Betinho, registrado no texto De Muitos Caminhos, que está no primeiro volume de uma coletânea organizada por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos, sob a orientação de Paulo Freire, Abdias do Nascimento e Nelson Werneck Sodré. Publicada originalmente em Portugal, em 1976, a obra foi também impressa em São Paulo, pela Editora e Livraria Livramento Ltda., em 1978. É um documento precioso e, em muitos aspectos, incrivelmente revelador.
No caso de Betinho, é revelador o nexo que ele aponta entre a ação política e o cristianismo. A Ação Popular (AP), nascida da Juventude Estudantil Católica (JEC), trazia em seu código genético inspirações católicas e marxistas. Foi criada em 1962, teve peso no combate contra a ditadura militar e, nos anos 70, seria absorvida pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), que não era chegado a sacristias. Por aí – embora não tenha sido só por aí –, ramificações do cristianismo acabaram por dar às mãos ao materialismo raso dos que adoravam Joseph Stalin, também chamado de “guia genial dos povos” ou algo por aí.
Também para o Partido dos Trabalhadores, o PT, gerado nas greves operárias do ABC paulista do final da década de 70, afluíram correntes católicas de esquerda, incluindo setores das célebres comunidades eclesiais de base. Além dos cristãos, acorreram para a sigla operária fileiras stalinistas e trotskistas (o Brasil é o país da mestiçagem dos contrários – sobretudo da mestiçagem religiosa). Por todos esses “muitos caminhos”, no dizer de Betinho, as ideologias se travestiam de profissão de fé e vice-versa.
Por certo, essa fusão – ou confusão – de fé religiosa e militância política não é marca distintiva dos socialistas. A direita também tem disso. Ouvindo Donald Trump falar, a gente tem a sensação de estar diante de um fundamentalista ultraortodoxo que não se manifesta como agente político, mas como pregador disposto a combater os infiéis com a mais sacrossanta violência.
A opinião, quando elevada a fator de coesão de um grupo, de uma turma, de um partido (como de uma igreja), confere à ação coletiva um aspecto de movimento religioso. Em toda parte é assim. Em todas as ideologias. Tanto que Yuval Noah Harari, autor do best-seller mundial Homo Deus (publicado no Brasil pela Companhia das Letras), diz que até mesmo o humanismo é uma religião, assim como o socialismo e o liberalismo. Quanto a isso, portanto, nada de novo sob o Sol.
Mas o tema deste artigo não é a religiosidade na política em geral. Só o que pretendo discutir aqui é a possibilidade de uma relação entre as perguntas que estão lá no primeiro parágrafo – por que Lula parece ser esse mito intocável aos olhos de seus seguidores? – e uma religiosidade específica, menos abrangente e mais localizada: a religiosidade presente nessa política de silêncios obsequiosos do PT e de seus grupos satélites.
Não que Lula seja a reencarnação do “Cristo forte” de que falava Betinho. Dizer isso seria fazer piada e, ainda que não sejam poucos os que cederam ao fascínio de ver no carisma de Lula a imagem-síntese de uma “revolução pacífica” que estaria em marcha, não é o caso de fazer piada. Falando sério, a dificuldade de núcleos de esquerda de fazer a crítica de determinadas condutas de Lula não vem de uma visão primitiva de que ele seja santo, mas do medo mudo de que tratá-lo como um simples ser humano (“um brasileiro igualzinho a você”, lembra?) ponha a perder toda a “mística” que se ergueu dele.
Aliás, a desculpa “tática” que alguns dão tem que ver com isso. Criticar Lula seria fazer o jogo da direita e enfraqueceria a causa, dizem eles. Acontece que a desculpa “tática” é, também ela, religiosa: qualquer seita reage assim para proteger seu profeta, o que não deixa de ser compreensível. A dimensão divina do profeta funciona como o alicerce das crenças: se ela for abalada, toda a catedral virá abaixo.
O que é particularmente triste é ver o PT se resignando à condição de seita e desistindo da crítica política. É triste porque, embora sempre exista um pouco de religiosidade na ação política, uma agremiação de esquerda que se contenta em se comportar como seita abandona a própria identidade da esquerda, baseada na contestação.
A própria ideia moderna de esquerda é produto da contestação intelectual, é produto da potência crítica dos que pensaram contra a ordem. Logo, uma esquerda sem crítica não é esquerda. É só uma igrejinha. No diminutivo.
É interessante notar, hoje, que a Igreja Católica tem mais facilidade em discutir o dogma da “infalibilidade papal” do que o PT em pôr em pauta eventuais “erros” – falar em “crimes” seria pedir demais – cometidos pelo seu líder maior. O Vaticano até convive com a ideia de um papa que erra. O PT, parece que não.
Em tempo, Betinho fez a crítica do seu passado e se reinventou. O PT e seus apoiadores aflitos (ou envergonhados) insistem no caminho oposto. Por quantos séculos mais?
Fonte: O Estado de São Paulo (27/04/17)

O caixa comum (Fernando Limongi)

As delações dos executivos da Odebrecht ditaram o noticiário da semana passada, que se fechou com expectativas de novas bombas. Léo Pinheiro, da OAS, iniciou seus depoimentos e Palocci mandou sinais de que estaria disposto a abrir o jogo. Por enquanto, a Lava-Jato tem girado em torno das relações entre políticos e empreiteiras, mas há razões para supor que as grandes empresas também compravam decisões e facilidades em outros endereços da Praça dos Três Poderes. O Tribunal de Contas da União (TCU) já entrou na dança e, como no mundo político, os enrolados estão no topo e não na base.
Quanto aos políticos, basta consultar as prestações de contas entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para saber que suas fontes de recursos não se resumiam às empreiteiras. Há outros grandes doadores que, como a Odebrecht, seguiam uma estratégia pluripartidária, financiando a todos indiscriminadamente. Tomadas em conjunto, as campanhas de Dilma e Aécio declaram ter movimentado R$ 561 milhões. Deste total, nada mais nada menos que R$ 351 milhões vieram de doadores que apostaram em ambas as candidaturas. Dos R$ 350 milhões declarados por Dilma, R$ 210 milhões vieram de doadores que também regaram os cofres tucanos. Os números para Aécio são R$ 141 milhões provenientes de doadores comuns, mais da metade dos R$ 211 milhões reportados. Empreiteiras não são as únicas pessoas jurídicas a financiar o PT e o PSDB. A JBS, para citar o exemplo mais gritante, foi responsável por pouco menos de 20% do custo total das duas candidaturas.
A despeito da sua importância para a defesa jurídica dos envolvidos, do ponto de vista dos eleitores e de seu significado último, o número do caixa pelo qual doações polpudas nutriam as campanhas é irrelevante. Como explica Paulo Roberto Costa, cuja delação está disponível à consulta pública há mais de um ano, boa parte das doações contabilizadas oficialmente era gerada em concorrências superfaturadas. A empreiteira recebia dos cofres públicos mais do que a obra valia e retornava o dinheiro para o partido ou o candidato, na forma de contribuição oficial de campanha.
De acordo com a delação de Marcelo Odebrecht, as doações não contabilizadas serviam à estratégia da empresa que, abastecendo todos os lados, conseguia esconder dos partidos suas predileções políticas. As delações revelam também que, muitas vezes, os políticos preferiam o caixa dois ao um por razões similares, isto é, para obter maior controle sobre a distribuição dos recursos, repassando dinheiro à sua facção sem interferência do partido.
Ao que as delações indicam, a independência das facções era maior no PMDB, composto por pelo menos quatro tesourarias independentes. Duas facções tinham assento no Senado. A primeira, reunida em torno do ex-presidente Sarney, era alimentada pelo controle de ministérios chaves, como o de Minas e Energia. A segunda, comandada por Renan e Jucá, se especializara na aprovação de medidas provisórias urdidas pela presidência. Os dois outros grupos pemedebistas tinham assento e trânsito na Câmara. O mais antigo gravitava em torno da tríade Temer-Padilha-Moreira, enquanto Eduardo Cunha liderava um grupo insurgente, que se consolidara após a entrada do PMDB para o governo Lula, e que estendera seus tentáculos a Furnas, Petrobras e Caixa Econômica Federal. Cada um destes grupos tinha arrecadação centralizada e fazia repasses internamente a seus membros.
Tome-se o famigerado jantar no Palácio Jaburu em que Marcelo Odebrecht garantiu recursos a Paulo Skaf. Não que qualquer dos convivas duvidasse que se tratava de um típico candidato pato-manco - na tradução livre de lame-duck. A tríade Temer-Padilha-Moreira esperava reforçar a bancada paulista do partido via transferência de votos. Marcelo Odebrecht, pelo que se sabe, não pediu nada em troca, mas, com certeza, sabia que, adiante, sua generosidade seria recompensada. Paulo Skaf parece não ter incluído a doação na sua prestação de contas. Faria alguma diferença se o tivesse feito?
As razões para a sobrevivência do caixa dois podem ser mais complexas do que as citadas acima. Inclusive, podem não ser essas. Não importa. O fato é que a origem de parte considerável das contribuições declaradas das campanhas não se distingue do caixa dois. As relações entre financiadores e financiados é a mesma, tenha ou não o dinheiro feito parte da prestação de contas entregue ao TSE.
A Odebrecht, sabemos, doava tanto via caixa um como via caixa dois. A empresa não contribuiu para as campanhas de Dilma e Aécio por acreditar nos projetos políticos do PT ou do PSDB. Não foram os programas ou as ideias dos candidatos que abriam seus cofres. As contribuições visavam garantir que as prioridades da empresa viessem a ser atendidas, independentemente das preferências dos eleitores.
Ao se defenderem, quando afirmam que receberam apenas doações legítimas, políticos querem nos fazer crer que acreditavam na imparcialidade de seus financiadores, que estes agiriam como verdadeiros filantropos ou beneméritos. Nem todas as ajudas a "título de contribuição para a campanha" envolviam trocas concretas. Mas, como as delações deixam claro, presentes alimentam amizades, geram reciprocidade, deixam dívidas e créditos a receber.
A Lava-Jato revelou apenas uma parte das relações entre empresas e o Estado. O espectro das primeiras não se limita às empreiteiras e, muito menos, o Estado se restringe aos líderes políticos. A lista dos grandes doadores oficiais onde, além das empreiteiras e da JBS, figuram pesos pesados do PIB nacional, traz indicações do que ainda pode vir. Da mesma forma, o envolvimento do TCU mostra que políticos não eram os únicos a tomar decisões que interessavam os doadores. Palocci se pôs a disposição para conversas mais livres com Moro a este respeito. Resta saber se o magistrado vai querer ouvi-lo.
(*) Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (24/04/17)

domingo, 23 de abril de 2017

A Democracia Sitiada ( Sérgio Abranches)

Quando começou a escrever "Ruling the Void" (governando o vácuo), em 2007, o politólogo Peter Mair tocou no ponto nevrálgico da crise que atinge a democracia em todo o mundo. Especialista em política comparada, chegou a uma visão sombria sobre a trajetória dos sistemas partidários nas sociedades contemporâneas.
"A era da democracia de partidos passou. Embora os partidos permaneçam, eles se tornaram tão desconectados da sociedade mais ampla e buscam uma forma de competição tão sem sentido que não parecem mais capazes de sustentar a democracia na sua forma presente", afirmou.
Mair chamava a atenção para um dos problemas cruciais da grande transição que vivemos no século 21, o do esvaziamento da democracia representativa.
Este é o subtítulo que deu a seu ensaio: "Ruling the Void: The Hollowing of Western Democracy" (Verso Books, 2013; governando o vácuo: o esvaziamento da democracia ocidental). Ele trabalhou nesse livro até 2011, quando morreu sem poder completá-lo.
O resultado desse projeto foi publicado postumamente. Nele, o autor examina a mudança na natureza dos partidos políticos e o impacto negativo que isso provoca na permanência, na legitimidade e na efetividade da democracia representativa contemporânea.
Ele vê com preocupação a emergência de uma noção de democracia destituída de seu componente popular e o aumento da desconfiança na política, nos políticos e nos partidos. Esse processo trouxe a própria democracia para a agenda de debates na imprensa e na academia, a ponto de hoje falar-se de seus problemas e dos caminhos para sua revitalização mais do que em qualquer outro momento no passado.
Para Mair, o renovado interesse pelos problemas da democracia revela menos a intenção de revigorá-la, aproximando-a dos cidadãos, e mais o desejo de desencorajar a participação popular.
A crise da representação se agrava com a oligarquização dos partidos, dominados por grupos políticos que se perpetuam no poder e usam a estrutura da sigla não para canalizar demandas e valores das pessoas que pretendem representar, mas como trampolim para outros cargos e posições.
O caso da Lava Jato mostra que, no Brasil, esse controle de cargos também teve por objetivo negociar transações milionárias e ilegais.
SOCIAL-DEMOCRACIA
Ao não se sentirem representados, os cidadãos viram as costas para a política e para as agremiações. Dissemina-se o sentimento antipolítica; os eleitores passam a buscar forasteiros –o "não político", o "gestor" e o "magistrado", entre outros– e se afastam cada vez mais da trilha democrática, pela esquerda ou pela direita.
Mair e vários outros críticos dos rumos adotados pela democracia partidária nas últimas décadas atribuem à social-democracia a responsabilidade principal pela crise de representação.
A culpa maior, por assim dizer, seria dos partidos de esquerda e centro-esquerda, que fracassaram em apresentar um paradigma de democracia popular e políticas públicas compatíveis com as transformações da sociedade.
Essas mudanças redesenharam as forças sociais, redefiniram os setores despossuídos e criaram novas necessidades. Tudo isso em um quadro de forte redução da capacidade de gasto discricionário por parte dos governos.

O Estado de bem-estar social, que se tornou o centro de gravidade das políticas da esquerda democrática, amadureceu. Hoje, uma porção muito maior da população partilha o orçamento de pensões e benefícios sociais criados ao longo do século 20. A demografia mudou, porém; as pessoas vivem mais e recebem esses recursos por mais tempo, enquanto encolhe a base de contribuintes.
Esse é o aspecto central dos ensaios recolhidos por Armin Schäfer e Wolfgang Streeck para o volume sobre a política na era da austeridade, "Politics in the Age of Austerity" (Polity Press, 2013).
Uma tendência geral de limitação orçamentária obriga os governos de qualquer persuasão a fazer escolhas responsáveis ou prudentes, o que costuma torná-los menos capazes de atender a seus eleitores, afirma Peter Mair ("Smaghi versus the Parties: Representative Government and Institutional Constraints", Smaghi versus os partidos: governo representativo e condicionantes institucionais).
A combinação entre essa restrição de recursos e o desgosto com as práticas políticas produz um descolamento perigoso entre as aspirações da sociedade e a satisfação com a democracia.
Um dos resultados é o aumento da alienação eleitoral, com índices baixos de comparecimento ou taxas altas de votos nulos ou em branco. O fenômeno se repete em regimes presidencialistas e parlamentaristas e em todos os sistemas, seja majoritário-distrital, seja proporcional, seja misto.
DIREITA, ESQUERDA
Vivemos, praticamente no mundo inteiro, um ciclo político-econômico-social que distancia cada vez mais o público da política.
Os governos liberal-democráticos adotam medidas de austeridade e reduzem os gastos sociais, com a consequente perda de apoio de boa parte dos eleitores.
Os governos de esquerda, por sua vez, incapazes de desenvolver propostas redistributivas compatíveis com o orçamento do Estado contemporâneo, gastam além da conta, quando não resvalam para o puro populismo, e enfrentam crise de endividamento e quebra da confiança do mercado financeiro dominante. Se buscam agir dentro dos limites do possível, não conseguem suprir toda a demanda social, e os cidadãos em desvantagem é que deixam de confiar neles.
Num movimento pendular, são em geral sucedidos por um governo de austeridade, que acarreta mais desemprego e mais perdas. A economia em transição não gera dinamismo suficiente para retornar ao pleno emprego nem para recuperar totalmente a renda real do conjunto da população.
A diferença é que as soluções da direita liberal-democrática cumprem seus objetivos e restauram as condições de funcionamento regular da economia, ainda que a alto custo social. As da esquerda democrática não resolvem os problemas que se propõem a resolver e criam novos, com custos sociais que atingem sua própria base.
O sociólogo Claus Offe, em ensaio para essa mesma coletânea ("Participatory Inequality in the Austerity State: A Supply-Side Approach", desigualdade de participação no Estado da austeridade: uma abordagem pelo lado da oferta), fala em governos sitiados, que não aumentam impostos porque não querem afetar a economia real, já em dificuldades crescentes.
Administrações de inclinação social, por outro lado, não conseguem cortar despesas porque a própria necessidade de diminuir o peso da carga tributária produz orçamentos cada vez mais comprometidos com gastos que não podem ser reduzidos.
Em resposta, os cidadãos deixam de acreditar na possibilidade de controle democrático sobre as políticas governamentais.
Esse ciclo, escreve Offe, agrava o dilema democrático. A desigualdade na repartição de recursos sociais, econômicos e educacionais (cognitivos) reforça as distorções eleitorais: após uma rodada de piora distributiva, os setores mais prejudicados têm ainda menos vontade de participar das votações.
BUSCA DE SOLUÇÕES
Como os governos são vistos como responsáveis pelo aumento das desigualdades, cresce o sentimento de que o sufrágio não faz diferença.
Desse modo, a alienação eleitoral, que incide com força proporcionalmente maior sobre os setores mais insatisfeitos e descrentes, reduz a possibilidade de renovação política, o que, por sua vez, realimenta a alienação eleitoral.
Dado esse cenário, o que farão os cidadãos que se abstêm nas escolhas eleitorais, descreem dos governos de todos os matizes e não acreditam que as instituições sejam capazes de oferecer soluções efetivas para seus problemas?
Parte encara esses duros fatos e enfrenta os riscos de se virar por conta própria. É essa fatia da população que termina servindo de base social para as teorias pós-democráticas, que miram um futuro de democracia despolitizada, sem povo, apenas guardiã dos direitos constitucionais e dirigida com eficácia, mimetizando a gestão privada.
Outra parte recorre a protestos como os realizados nas periferias pobres de Paris e Londres ou a manifestações com objetivos difusos, que somam demandas díspares de parcelas heterogêneas da sociedade, como se viu nas manifestações de 2013 no Brasil, e não criam apoio sustentado para movimentos políticos mais consistentes.
Nenhum analista imagina que esse estado de coisas seja durável, o retrato do futuro para sempre. Todos veem esta como uma situação transitória.
Em meu ensaio *"A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século XXI" [Companhia das Letras, 2017, 416 págs., R$ 59,90, R$ 39,90 em e-book]*, argumento que este é um quadro de transição radical e longa, que vai alterar nossas vidas muito profundamente e de formas ainda imprevisíveis.
Terminada a transição, é certo que o mundo será em tudo bastante diferente: na sociedade, na economia, na política, no clima e no ambiente. Não se sabe, contudo, o que resultará desse processo; o desfecho dependerá das escolhas que os distintos povos da sociedade global em formação farão nos próximos anos e décadas.
Daí por que é central a questão da democracia e da participação eleitoral justa e igualitária. Trata-se dos instrumentos de que a sociedade dispõe para fazer essas escolhas. Não haverá oligarquias ilustradas que possam fazer legitimamente essas escolhas por nós. A qualidade do jogo democrático, daqui para a frente, será decisiva para o futuro do mundo pós-transição.
BRASIL
Não é difícil ver que essas questões estão dolorosamente presentes na vida política brasileira, nas últimas duas décadas.
A campanha de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) pelo segundo mandato presidencial, em 1998, foi marcada pela crise do real e pela necessidade de realizar os já àquela época chamados ajustes fiscais. A reforma da Previdência era item saliente da agenda do governo e não passou por margem mínima no Congresso.
Na disputa de 2002, Lula (PT) divulgou sua "Carta ao Povo Brasileiro", na qual se propunha a manter a política de estabilidade e a responsabilidade com as contas públicas. O petista também fez sua reforma da Previdência, no setor público, estabelecendo idade mínima para as aposentadorias.
Dilma Rousseff (PT), no seu primeiro mandato, regulamentou a reforma de Lula. No segundo e incompleto período presidencial, fez mudanças no sistema de pensões, após ter reconhecido a inevitabilidade do ajuste fiscal –cuja premência negara como candidata.
A política econômica de Michel Temer (PMDB) baseia-se nos mesmos pilares. Suas prioridades são o equilíbrio orçamentário e a reforma da Previdência.
As crescentes limitações de recursos do Estado brasileiro são evidentes por si mesmas. Elas se agravam pelas enormes distorções técnicas e políticas de nosso processo orçamentário e pelo recurso recorrente à elevação de impostos, por vezes disfarçados de contribuição. Em decorrência, temos uma carga tributária brutal, desigual e complexa. Ficou difícil taxar ainda mais os contribuintes sem estrangular a economia e a sociedade.
Temos um Leviatã anêmico, grande, burocrático e ineficaz. Um quadro educacional em frangalhos, que contribui para o aumento das desigualdades sociais e políticas. Um sistema de saúde em colapso, que deixa a população a descoberto e sob risco de conviver com surtos epidêmicos, como os de dengue, zika, chikungunya e, recentemente, febre amarela.
As coalizões que se sucedem no poder, independentemente da orientação ideológica do partido presidencial, mostram-se incapazes de extirpar distorções no gasto público que premiam setores ineficientes, obsoletos e de impacto nocivo no meio ambiente.
As reformas já feitas não eliminaram os privilégios incrustados no Orçamento e no sistema de seguridade, atingindo sempre e somente os menos favorecidos e o cidadão mediano.
A Terceira República, inaugurada com a promulgação da Constituição de 1988, reafirmou o presidencialismo de coalizão como modelo político-institucional para o país, após a ditadura militar (1964-1985). A incapacidade de o partido que elege o presidente fazer a maioria não decorre de regras eleitorais, mas da realidade social de uma nação continental, heterogênea e desigual.
A fatia do Congresso Nacional que o partido presidencial consegue obter nas eleições diminuiu em relação ao padrão na Segunda República (1946-1964).
Essa redução se deveu a fatores sociológicos –como urbanização, industrialização, elevação dos níveis educacionais– e políticos –principalmente o aumento do número de partidos (em razão da liberalidade das regras de criação de legendas), a facilidade na distribuição de recursos públicos para seu financiamento corrente e a ausência de freios e contrapesos sobre o uso dessas verbas.
Na Segunda República, tínhamos um sistema de fragmentação moderada em comparação com outras democracias, como mostrei em meu artigo "Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro" ("Revista Dados", vol. 31, nº 1, 1988, págs. 5-32).
Hoje, com quase 30 anos de Terceira República, temos o sistema partidário com maior fragmentação entre todas as democracias, como mostra Jairo Nicolau em livro recente sobre o sistema partidário-eleitoral brasileiro, "Representantes de Quem? Os (Des)caminhos do seu Voto da Urna à Câmara dos Deputados" [Zahar, 2017, 176 págs., R$ 39,90, R$ 19,90 em e-book].

Tanto pior, a hiperfragmentação coincide com a máxima deformação dos partidos, que convergiram para um padrão comportamental comum: clientelista e de formação de coalizões de comparsas em lugar de coalizões de propostas.

Cria-se ambiente propício para o recurso frequente e desabusado ao financiamento ilegal e à propina para fins políticos e de enriquecimento ilícito, buscando a perpetuação das oligarquias no poder.
A oligarquização, o descolamento das bases sociais e do público em geral e o casamento espúrio com financiadores ou grupos de interesses levaram ao completo esvaziamento de nossa estrutura partidária. Se conhecesse o caso brasileiro contemporâneo, Peter Mair teria outra dimensão de vácuo representativo, que talvez ensombreasse ainda mais sua visão.
A hiperfragmentação engendra a necessidade de uma coalizão de dimensão tal que excede a capacidade de manejo político articulado, tornando o presidencialismo refém de facções partidárias e pequenas legendas.
CORRUPÇÃO
O fundo partidário, ao distribuir recursos de acordo com o tamanho da bancada da Câmara dos Deputados eleita na legislatura anterior, perpetua o poder das oligarquias.
Ao dar fatia generosa de dinheiro para todas as siglas, banca aventureiros dispostos a viver de legendas vazias e arrivistas políticos que achacam o governo.
Essa não é a fonte do deficit público, da corrupção ou do toma lá, dá cá, mas contribui significativamente para elevá-los a potências nunca antes imaginadas.
Corrupção e troca-troca de favores são elementos de nossa cultura política. Inserem-se nas regras de funcionamento do sistema, que incentivam intenso jogo de clientelismo e oportunismo no processo orçamentário e nas nomeações para cargos na máquina estatal.
Também aparecem nas licitações, com procedimentos puramente formais que acobertam o ataque aos cofres públicos por meio de sucessivos ajustes no preço final, gerando o sobrepreço que financiará as propinas e engordará o caixa de empresas sem méritos nem escrúpulos.
Essas negociatas provocam inversão terrível no papel da população. Esta, em tese, deveria ser fonte e objetivo das ações públicas. Na prática, não é origem nem destino, mas a base do financiamento do setor público e do setor privado a ele atrelado, além de destinatária da conta dos desmandos e dos sacrifícios da austeridade.
Não é natural nem necessário que seja assim, mas, nos últimos dias, o público brasileiro viu estarrecido duas gerações de donos da Odebrecht, uma das maiores empresas do país, cliente do orçamento oficial há décadas, detalharem o modus operandi da vasta máquina de corrupção política por eles montada.
Além de tratarem com naturalidade tenebrosas transações, mostraram que haviam transformado a geração de caixa para financiar a propina e sua distribuição em negócio sofisticado, estruturado com métodos de gestão empresarial.
As delações, agora sem o véu do sigilo, mostram a generalização do caixa dois e o uso de recursos de sobrepreço de obras públicas para bancar propinas via doações declaradas à Justiça Eleitoral.
Revelam que não havia fronteiras ideológico-partidárias. Era um arranjo pluralista. Os partidos e suas oligarquias igualaram-se na competição por essas verbas subtraídas ilicitamente do Tesouro.
Caberá ao Poder Judiciário fazer a limpeza criteriosa e dura dessa coalizão promíscua e ilegal entre partidos e empresários, políticos e gerentes. A correção desses desvios só será possível por meio da Justiça e dos órgãos de controle, como o Ministério Público.
Aumenta a judicialização da política, fato que Peter Mair havia previsto, em razão das distorções do sistema representativo.
O GRANDE DESAFIO
A crise interna que o Brasil atravessa encontra-se com os tremores da grande transição mundial. Uma transição que combina mudanças tectônicas nas estruturas da sociedade global e transformações locais, de adaptação e aproveitamento das novas possibilidades que vão sendo abertas.
Enfrentamos um grande desafio. Precisaremos refundar nossa democracia, redesenhar nosso modelo político e renovar nossa elite política para que possamos surfar as ondas do tsunami de mudanças.
Quanto menos escolhas coletivas virtuosas formos capazes de produzir, mais penosa será a travessia. Quanto mais aproveitarmos os potenciais e recursos que temos –e não são poucos– para atravessar bem a transição e lançar os alicerces sólidos da sociedade que seremos no futuro, maior a possibilidade de sucesso.
O futuro não está dado. Ele será o resultado de um misto de escolhas e imprevistos. Quanto melhores as nossas escolhas, menor o risco de sermos colhidos indefesos pelos imprevistos.
Há movimentos incontroláveis nas camadas tectônicas da transição. Mas há espaço, como nunca houve em tempos recentes, para iniciativas, inovações e livres escolhas –particulares e coletivas, domésticas e globais– que darão as formas da sociedade humana no futuro.
Temos a vantagem de saber que nosso sistema político, nossas elites políticas e boa parte da elite empresarial não estão aptos a fazer boas escolhas em nosso nome.
Um caminho muito ruim seria a sensação de impotência diante desse quadro de espanto e frustração, com a opção pelo silêncio político e pela alienação eleitoral. Pior ainda seria o recurso ao protesto violento e sem foco, às divisões polarizadas estéreis.
Nesses tempos líquidos, como os chamava o sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017), de incerteza, imprevisto e inquietude, não há possibilidade de consenso. Mas há espaço para a concorrência plural e democrática de projetos para o país, para que possamos escolher, coletivamente, os rumos que queremos para ele depois desse colapso moral e político que desafia nossa democracia.
Já superamos grandes perigos com sucesso. Afastamos a ditadura e construímos a Terceira República, a mais democrática de nossas experiências republicanas, com todas as falhas que temos visto. Vencemos a hiperinflação. Reduzimos a pobreza e a desigualdade.
Agora temos duas novas tarefas coletivas pela frente. Revigorar nossa democracia, tornando-a menos vulnerável à corrupção e ao controle oligárquico, e definir os modos pelos quais atravessaremos a grande transição do século 21.
Não é uma coisa que se possa fazer com a simples mudança de regras eleitorais.
(*) Sérgio Abranches, sociólogo, é autor do livro "A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século XXI" (Companhia das Letras, 2017)
Fonte: Ilustríssima/FSP (23/04/17)

Risco para a governabilidade (Murillo de Aragão)

Como esperado, a divulgação da lista do ministro Edson Fachin, do Supremo, com os nomes dos políticos contra os quais determinou abertura de inquérito provocou tumulto no mundo político. Mas o que realmente abalou as estruturas foi a divulgação dos vídeos de Marcelo Odebrecht e demais integrantes da construtora com seus depoimentos no âmbito das delações premiadas da Operação Lava-Jato.
Nos vídeos, estão expostas três desgraças: a desfaçatez do esquema, a ganância dos políticos e a influência do poder econômico na política. Tudo aponta para o fracasso de nosso modelo, que deve ser reconstruído.
Meses atrás, eu mencionei que o bombardeiro Enola Gay havia decolado rumo a Hiroshima. Pois bem, aqui, tal como uma bomba de nêutrons, as delações devastarão o mundo político tanto pelo impacto quanto pela radiação.
O impacto é imediato: os acusados estão com a reputação no lixo. Independentemente do acontecer, eles já estão maculados pela contudência das acusações, pela materialidade dos ilícitos, pelos valores envolvidos e pelo assombro que os vídeos causam.
A radiação será a nuvem de investigações que vai afetar os envolvidos. Passarão anos se defendendo e continuarão a ter o peso da suspeita obstruindo suas carreiras. O noticiário será poluído com informações sobre diligências, quebras de sigilo e novas revelações.
Natural seria que o mundo político buscasse uma solução. Mas a força das delações impede uma reação organizada. Na falta dela, ocorre um salve-se quem puder. O ex-ministro Antonio Palocci pode fechar acordo de delação, o que equivaleria ao lançamento de outra bomba atômica na conjuntura.
Paradoxalmente, o ambiente favorece as reformas. Assim, os políticos se agarram a elas como maneira de melhorar o ambiente econômico e, quem sabe, reduzir a pressão da Lava-Jato sobre si. A fórmula pode funcionar em parte, já que o eleitorado não está tão engajado no andamento diário das investigações. De certa forma, a Operação já faz parte da paisagem. Horroriza mais a elite do que o povão, que não crê em política desde sempre.
Caso a economia melhore de forma evidente, a política ganha força. Do contrário, até mesmo a governabilidade pode ficar comprometida.
Fonte: Blog do Noblat (22/04/17)

Depois das delações, o tempo (Marco Aurélio Nogueira)

Pode-se dizer que delação não é prova ou que faz parte do mesmo “golpe” que afastou Dilma Rousseff da Presidência. Pode-se dizer que os Odebrechts deitaram e rolaram como verdadeiros donos do Brasil e agora estão querendo livrar a cara, descarregando tudo nas costas dos políticos. Pode-se dizer o que for, mas não há como fazer de conta que nada acontece de extraordinário.
Com a divulgação das delações dos executivos da Odebrecht, o espanto se combinou com o mal-estar, tamanho foi o buraco que se abriu. Dinheiro sendo distribuído a rodo, a partir de extorsões feitas por pessoas empoleiradas no topo do poder e impulsionadas pela volúpia de empresas que escolheram correr o risco de dilapidar seu patrimônio ético e material.
De uma só penada, empresários poderosos, com enorme cinismo e hipocrisia, emporcalharam a vida política nacional, atando-a a crimes cometidos ao longo de anos, nas barbas de todos, sem perdoar ninguém, da direita à esquerda. Veio à tona o padrão de capitalismo que se forjou por aqui, alimentado por uma mixórdia de laços e anéis entre o público e o privado, indiferente à sorte da população. Chamaram de “campeãs nacionais” essa versão tupiniquim da exploração sem peias das gentes, do poder e das riquezas de um país.
A extensão dos fatos impressiona. Décadas de malfeitos, de invasão do público pelo privado, de degradação da função pública, de sonegação, de manipulação de obras e contratos para fins eleitorais, de enriquecimento à custa do povo. Não foram somente alguns políticos e grandes empresários. Montou-se um circuito diabólico de corruptos e corruptores, que se naturalizou e cresceu com a cumplicidade do sistema e de seus protagonistas, que fingiram não ver o veneno que impregnava a corrente sanguínea da Nação.
É hora de começar a distribuir culpas, penas e responsabilidades. Não se pode perder uma oportunidade destas para limpar parte importante da história da República brasileira. Seria obsceno um “acordão” que zerasse tudo para “salvar a política”. Empresários e políticos que desonraram sua atuação precisam ser enquadrados, com as distinções cabíveis, para que assumam o que houve de escabroso e se desculpem.
Muita pedra terá de ser carregada para se chegar ao fim do processo sem que se jogue fora a criança junto com a água suja do banho. Proteger a democracia, fazer com que prevaleçam seus valores e suas regras, renovando o que precisa ser renovado, enterrando os mortos que nos atormentam e isolando os demagogos, os ilusionistas.
As delações não foram o fim do mundo. Contaram histórias que se conheciam ou de que se ouvia falar. Puseram-nos em frente a um espelho no qual vimos algumas de nossas piores vergonhas. Na melhor das hipóteses, poderão ajudar a que termine um mundo.
Delações são relatos subjetivos de fatos. Quem delata fornece uma versão, uma “narrativa”. Age em interesse próprio. Pode distorcer situações, esquecer detalhes. Delatores mentem. As investigações servem para que se chegue ao máximo possível de verdade, evitando que se puna indevidamente.
É um nó a ser desatado. Sem isso não haverá como dosar penas, estabelecer o que é crime, dolo e má-fé, distinguir propina e doação eleitoral. Para isso será decisiva a inteligência tática e estratégica dos democratas, que ainda estão desarvorados e em busca de um eixo.
Qual será o tempo de reação dos democratas? Que tempo haverá para que se arrume a casa e se façam nela alguns pequenos reparos? Haverá tempo para que os cidadãos entendam o que está a ocorrer e se posicionem com firmeza? Precisamos levar em conta o timing dos processos, mas, paradoxalmente, não temos muito mais tempo a perder.
Nem tudo virá em sintonia com as expectativas dos cidadãos. A Justiça tem seu ritmo e seus procedimentos. Move-se com lentidão. Permanecerá soberana, mesmo que não possa imunizar-se contra eventuais pressões populares. A criação no STF de uma força-tarefa para acelerar os julgamentos da Lava Jato é um sinal de que há sensibilidade na Corte.
Também não se pode descartar a resiliência da classe política. Ela sabe agir corporativamente e se autoproteger, como qualquer corpo vivo. Pode-se torcer para que haja uma “renovação radical” na próxima composição do Congresso Nacional, mas é grande a probabilidade de que muita coisa se reproduza.
A emergência de uma nova elite política vem por etapas e mediante avanços difíceis. Sobretudo quando o sistema político está desajustado, quando a própria sociedade se vê às voltas com transições complicadas que comprometem seus nervos e suas estruturas, quando os partidos não são boas escolas de quadros. Aqui também, portanto, o tempo terá de ser bem considerado, até para não se fabricarem ilusões desnecessárias.
Os riscos inerentes ao processo em curso se alimentam de ilusões deste tipo. Há muita gente à espreita, de oportunistas a protofascistas, interessados em ganhar a massa decepcionada com os políticos e mordida pelos escândalos. Não são idênticos entre si, nem em termos políticos, nem em ideologia. Alguns têm mais substância, proposta e estilo, outros são provocadores baratos. Mas todos oferecem “ordem”, trabalho e “seriedade” ao povo.
Aos bons políticos dispostos a agir na esfera pública estatal caberá produzir uma articulação e apresentar suas postulações juntamente com uma visão do País que merecemos.
A solução do enigma não está no meio, mas num ponto futuro ainda não claramente delineado, para o encontro do qual os democratas deveriam estar trabalhando com afinco e realismo. Seja a opção por uma Constituinte, seja o caminho o das reformas pontuais no curto prazo, teremos de assistir à gestação de um pacto de novo tipo, que envolva a sociedade e todos aqueles com disposição para garimpar democraticamente o novo e recriar o modo de fazer política no País.
Fonte: O Estado de São Paulo (22/04/17)

A crise e o fortalecimento da democracia (Fernando Abrucio)

O sistema político construído desde a Nova República, e cuja consolidação foi resultado do processo de impeachment do presidente Collor, teve sua morte decretada na semana passada. É bem verdade que PMDB, PT e PSDB tendem a sobreviver como agremiações partidárias, mesmo que com um tamanho menor. Mas é difícil que tenham a centralidade dos últimos 25 anos, seja na definição da eleição presidencial, seja como peças principais da governabilidade. O que virá no seu lugar e com qual modus operandi são duas questões estratégicas para o futuro de nossa democracia. Nada diz que saíremos melhores ou piores da crise. Tudo vai depender da leitura correta e parcimoniosa do tsunami que nos atingiu.
A reformulação das estruturas que geraram a crise é essencial, embora as soluções institucionais não caibam numa fórmula mágica. O diagnóstico envolve vários elementos. Primeiro, as campanhas políticas tornaram-se muito caras, especialmente com a centralidade que o uso do tempo de rádio e TV ganhou no jogo político. Terminar com o horário eleitoral gratuito, pura e simplesmente, não seria o correto, porque acentuaria o poder de quem tem mais recursos financeiros e organizacionais prévios, ou de quem já é mais conhecido, geralmente por conta do uso dos meios de comunicação de massa.
Uma linha de ação mais consequente deve mudar as regras de acesso ao horário eleitoral gratuito, dando-lhe a quem tem representação social efetiva e reduzindo o seu papel de moeda de troca para as campanhas legislativas e, sobretudo, para cargos majoritários. Também precisa ser alterado o seu formato, voltando-o mais para a definição e o debate das diretrizes dos candidatos, em detrimento do aparato de marketing que é dominante hoje. Desse modo, todos os ilícitos realizados pelos marqueteiros serão reduzidos fortemente. Indiretamente, haverá outra consequência positiva: os candidatos e seus partidos não poderão terceirizar a responsabilidade pela estratégia eleitoral aos gurus de comunicação, que tanto mal causaram nas últimas eleições.
A vitória no primeiro round passa, portanto, pelo combate contra a dominância do marketing político, caro, corrompido e criador de campanhas vazias de conteúdo político. O segundo round tem seu foco nas regras do sistema político, em seu sentido mais amplo. Aqui é preciso ter cuidado com soluções sem um diagnóstico acurado ou consenso entre especialistas, políticos e a própria sociedade.
Um exemplo revela como devemos ter cuidado nas conclusões: a fragmentação partidária pode gerar estímulos a negociatas, mas a concentração do poder nos chefes dos principais partidos também tem esse efeito. Basta lembrar que o número de deputados presentes na lista da Odebrecht é proporcionalmente menor do que o de senadores. A razão disso está no fato de que lideranças e/ou dirigentes partidários concentravam os recursos em suas mãos e só depois distribuíam para os parlamentares - talvez esteja aí uma das fontes de seu poderio e da coesão partidária, num ângulo não explorado pela literatura de ciência política. Eduardo Cunha já tinha nos contado essa história que agora ficou mais crível: ele financiou a campanha - com dinheiro alheio - de pelo menos cem deputados. As barganhas fisiológicas mais importantes do baixo clero são intermediadas pelos oligarcas partidários.
Por essa razão, é preciso combater, ao mesmo tempo, tanto a fragmentação multipartidária excessiva como a concentração do poder nas mãos dos líderes e/ou dirigentes partidários. Não é fácil resolver, com uma resposta única e definitiva, essa equação. Um ponto de partida mais parcimonioso passa por aprovar medidas cujo debate esteja mais maduro, como o fim das coligações para eleições proporcionais e alguma cláusula de desempenho. Também podem ser propostas ações para ter maior controle e renovar as direções partidárias, bem como para estimular a vida partidária para além das eleições, em ambos os casos com potencial para motivar mais gente a atuar no jogo político.
A adoção desse rumo, somado às alterações no horário eleitoral gratuito, levaria a reformas mais certeiras - embora mais comedidas - em prol da transformação do sistema político. Propostas maiores de mudança do sistema eleitoral, seja para um modelo distrital ou para a chamada lista fechada, contêm perigos e incertezas demasiados. Para sair dessa enorme crise, não é preciso produzir uma solução tão grande quanto ela. O que é necessário é saber bem o diagnóstico e aonde se quer chegar.
Mudanças no sistema político representativo não serão suficientes para evitar processos generalizados de corrupção. O caso Odebrecht revelou uma forte conexão com o modus operandi da política subnacional. O número de governadores e obras estaduais que foram atingidos pelo esquema é impressionante. É preciso mudar o que intitulei, faz muitos anos, de ultrapresidencialismo estadual, para que o Poder Executivo seja mais "accountable" aos eleitores e as instituições de controle mais efetivas - e o TCE carioca certamente não é o único entre os entes federativos que vendiam proteção aos governantes. O Rio de Janeiro é a experiência em que essa lógica perversa mais teve sucesso. Porém, esse modelo concentrador de poder e pouco transparente é majoritário no país, fato que se torna mais grave pela constatação que os grandes caciques regionais têm no jogo político estadual sua base de poder. Que o digam Renan, Sarney e muitos outros que têm resistido à qualquer tentativa de renovação política nos últimos 20 anos.
Depois de ler e ouvir as delações da Odebrecht, fiquei mais convencido de algo que defendo há anos: a principal reforma institucional do país é a reformulação da administração pública. São suas regras e práticas que impediriam muitas das falcatruas encontradas. Por vezes é o excesso de procedimentos e controles desnecessários que cria um ambiente favorável a máxima "criar dificuldades para vender facilidades". Noutras circunstâncias, é a falta de transparência que permitiu a corrupção, somada à hipocrisia de não regulamentar o lobby. E ainda há o fato de que boa parte do Estado é loteado sem nenhum critério de mérito e "accountability" por parte de quem indica e de quem é indicado. O alto escalão engorda seu tamanho e se transforma numa verdadeira caixa preta, gerando as condições para o patrimonialismo predatório presente no casamento entre o Poder Executivo federal e os empresários.
A tsunami político revela que o leque de transformações necessárias para fortalecer a democracia não é pequeno nem trivial. A questão é saber quem as fará. Para liderar esse processo, não basta se colocar fora da lista da Odebrecht ou de outras que poderão surgir nos próximos meses. É importante, em primeiro lugar, ter consciência clara do diagnóstico dos problemas. Afinal, alguns vão dizer que o tamanho do Estado é a origem da crise, quando a maioria dos cidadãos brasileiros não tem serviços públicos básicos. Precisaríamos de mais professores, médicos, policiais e outros profissionais para reduzir a desigualdade no Brasil. O que não precisamos é do inchaço da máquina pública para defender e financiar os mais ricos, dentro e fora do aparelho estatal.
Dentro desse diagnóstico, é preciso reconhecer que foi o próprio aperfeiçoamento da democracia nos últimos anos que permitiu a descoberta dos escândalos, bem como a possibilidade de algum tipo de punição aos envolvidos. A corrupção também existia no regime militar, que foi o período áureo das empreiteiras e do crescimento de um conjunto de novos ricos que geraram aquela desigualdade representada pela ideia da "Belíndia". O que não havia era o sol democrático que desinfeta os sistemas políticos. Por isso, qualquer solução para a crise passa por rechaçar os líderes autoritários, saudosos de um passado trágico para o país.
Igualmente nefasta é a suposição de que precisamos de líderes e heróis messiânicos que vão tornar desnecessária a política. Como escreveu o sociólogo Max Weber em meio à crise alemã na 1ª Guerra Mundial, "fora da política não há salvação". Os alemães não ouviram o seu conselho e anos depois produziram o nazismo. O que precisamos no Brasil é gente com vontade de fazer política. Obviamente que a boa política exige um comportamento ético melhor do que o adotado pela maioria dos nossos políticos. Mas isso só não basta.
Bons políticos combinam bem ideias com pragmatismo, reformulando suas propostas à medida que aprendem com as possibilidades da política e com os resultados das políticas públicas. Bons políticos conversam com todos os lados, negociam e encontram saídas que quase sempre precisam levar em conta a heterogeneidade da sociedade. Bons políticos são falíveis como todo ser humano, admitem seus erros e devem ser fiscalizados pela sociedade, não apenas para que não sejam corruptos, mas principalmente para que possam aperfeiçoar suas ações e sejam sensíveis às demandas da sociedade.
Se a saída da crise partir de uma visão idílica, meramente moralista, integrista - "só minhas ideias estão certas" - e personalista dos políticos, poderemos fazer da Lava-Jato a antessala do Berlusconi local. Uma concepção bem embasada e parcimoniosa da reforma das instituições e da renovação dos políticos é um remédio mais seguro diante do presente Tsunami.
Fonte: Valor Econômico (21/04/17)