A divulgação do resultado do IDH brasileiro, referente ao ano de 2015, revelou que estamos estagnados na melhoria das condições de vida dos brasileiros, afetando sobretudo os indivíduos e famílias mais carentes. Mesmo que, incrementalmente, o Brasil tenha avançado nos últimos anos, algo que refletia tanto os avanços contidos na Constituição de 1988 como as políticas públicas desenvolvidas de 1993 a 2013. A perda da capacidade de, ao mesmo tempo, criar mais riqueza e combater a desigualdade deveria ser o tema da próxima eleição presidencial. Mais do que isso, essa questão deveria gerar um projeto de país, de longo prazo, para que a justiça seja a marca da sociedade em que viverão nossos filhos e netos.
Infelizmente, no entanto, o debate político tornou-se tão polarizado, pelo menos desde as jornadas de junho de 2013, que tem sido difícil reconciliar produção de riqueza e combate à desigualdade. Obviamente que é necessário retomar o crescimento e aumentar a eficiência econômica do país. Isso é uma condição sine qua non para termos uma sociedade mais justa. Entretanto, a metáfora do bolo criada por Delfim Neto nos anos 1970 não dá conta dos anseios da sociedade brasileira atual.
Primeiro porque as políticas sociais podem ser vistas, em si mesmas, como condições ao desenvolvimento socioeconômico do país. Investir em educação e saúde é essencial para se produzir riqueza. O capital humano é peça-chave para termos um crescimento sustentável nos próximos anos, com um bolo maior e que não seja estragado. Neste sentido, a sociedade e os políticos deveriam estar discutindo mais profundamente como dar prioridade à política educacional, dando-lhe os recursos necessários (financeiros e administrativos) para atingir metas ousadas, sem as quais não há futuro melhor pela frente.
Não se pode ter mais um descasamento entre a produção de riqueza e sua distribuição porque desde a Constituição de 1988 o país é organizado em torno dos direitos dos cidadãos. Desse modo, combater as diversas formas de vulnerabilidade é dever do Estado. Os resultados divulgados pelas Nações Unidas revelam tanto o crescimento da pobreza como da desigualdade - se for utilizado o Índice de Gini, o Brasil é o 10º mais desigual de uma lista de 143 países. Embora a retomada do crescimento seja estratégica nessa luta, não se pode esperar a volta completa aos trilhos - isso pode demorar de dois a três anos - para aperfeiçoar o combate à miséria e ao empobrecimento. Na verdade, ao fazerem políticas que favoreceram os mais carentes, FHC e Lula ajudaram a economia colocando mais gente para consumir produtos, mostrando que a atuação sobre o social pode ajudar o campo econômico.
A noção de desigualdade hoje é mais ampla do que no passado. Esse é outro elemento que vai além da teoria do bolo. Políticas voltadas à diversidade social e cultural têm um papel central na criação de um país mais civilizado. Programas que ajudem na inclusão de pessoas com deficiência, cotas para a população negra nas universidades, ações para combater a violência contra a mulher, o respeito à orientação sexual dos cidadãos, entre outras medidas, são essenciais no caminho de uma sociedade mais justa. É triste como o Brasil retrocedeu nesse debate, depois de avanços em duas décadas. Deve-se recuperar, aqui, o elo entre desigualdade e diversidade, nos termos expostos pelo sociólogo português Boaventura de Souza Santos: "Pelo direito de ser igual quando a diferença inferioriza, e o direito de ser diferente quando a igualdade descaracteriza".
A igualdade de acesso aos bens e direitos públicos é mais uma batalha importante para tentar conjugar a eficiência econômica com o combate à desigualdade. Esse é um dos elementos que deveria ser central na reforma da Previdência: não se pode ter cidadãos de primeira e segunda classe no acesso aos benefícios previdenciários. É preciso eliminar privilégios e fazer com que aqueles que tenham maior renda contribuam mais para esse processo reformista, que será essencial para as finanças públicas, com prováveis efeitos positivos sobre o desempenho econômico. Ao mesmo tempo, deve-se garantir uma velhice digna a quem não teve acesso à educação e nem ao mercado de trabalho formal nas últimas décadas. Exemplificando: é justo discutir uma idade mínima maior para todos, com garantias a direitos via regras de transição, mas é um absurdo mexer abruptamente no Benefício de Prestação Continuada (BPC), afetando pessoas que não tiveram e não terão, por razões históricas, as mesmas condições que as demais.
A reconciliação entre produção de riqueza e sua distribuição depende não só da construção de pontes e nexos entre estes temas, mas também de outras condições. A primeira é a reforma do Estado, que precisa ser mais ético, eficiente, efetivo, voltado à equidade e ao empoderamento da sociedade. Não se pode mais ter um conjunto de atividades essenciais ocupadas pela "pemedebização" da administração pública, com a indicação política de fiscais do Ministério da Agricultura, de dirigentes de órgãos técnicos, como na área nuclear, ou profissionais da Funasa. Esse modelo está destruindo o Estado brasileiro e é urgente sua reformulação. Não haverá como o governo atuar positivamente em torno do desenvolvimento econômico e social se ele não for mais profissionalizado.
Fora algumas exceções de relevo, o fato é que o núcleo central do governo brasileiro está basicamente ocupado por políticos com práticas do século passado, quando o Brasil já era atrasado para aquela época. A justiça social que se demanda hoje exige uma renovação do modelo político-administrativo e das cabeças que o operam. Governos mais plurais em sua composição, ministérios mais coordenados em ações e políticas intersetoriais, maior transparência e abertura ao diálogo com a sociedade, uso maior das evidências - e não do voluntarismo - e de instrumentos de inovação como base dos programas governamentais, reformulação profunda da estrutura de incentivos do setor público, entre os principais aspectos, deveriam ser a bússola orientadora do Estado.
A mudança de nossa posição no ranking mundial de qualidade de vida vai depender do lugar que a desigualdade terá no debate político nos próximos anos. O ano-chave será 2018, pois o próximo governo terá mais condições de legitimidade para abrir um novo ciclo. O populismo, de qualquer tonalidade, não trará as soluções para a reconciliação entre a produção da riqueza e sua distribuição, mas soluções elitistas que desconheçam a realidade do país, marcado por uma enorme heterogeneidade, também não serão efetivas. A crise dos grandes partidos, derivada sobretudo da Operação Lava-Jato, pode ser um espaço para uma renovação orientada por um projeto de país mais justo, aprendendo com os acertos e erros da trilha posterior à Constituição de 1988.
A transformação da política não é um processo isolado da capacidade de mobilização da sociedade. É bem verdade que vários setores sociais se mobilizaram desde a jornadas de junho de 2013, pedindo mais direitos e criticando a corrupção. Não se pode dizer que tais movimentos não tiveram efeito, porque sem dúvida impactaram no impeachment da presidente Dilma, embora o jogo decisivo tenha se dado internamente ao sistema político - o principal condutor do processo, gostem ou não, foi o ex-deputado Eduardo Cunha, com o apoio de líderes pemedebistas baseados no "Plano Jucá" de purificação do poder e salvação dos poderosos. Porém, essa efervescência social foi limitada em seu aspecto transformador em três âmbitos: na mudança dos partidos políticos, no alcance em relação aos mais pobres e menos favorecidos, bem como na criação de uma agenda que produza maior justiça ao país.
No caso dos partidos políticos, o fato é que a quase totalidade deles, e os grandes em particular, está ainda buscando se salvar do furacão da Lava-Jato. Essa é a maior preocupação do momento, mais do que a absorção das demandas sociais. Por isso que possíveis renovações se dão, no debate atual, mais em torno de nomes do que da alteração das siglas partidárias por meio de novas práticas e ideias.
A mobilização social dos últimos anos também não alcançou as camadas mais pobres da população. Pior: parte dos movimentos sociais, com composição majoritariamente de classe média, tem ficado entre ignorar a questão da desigualdade e nutrir uma aversão aos mais pobres. A grande maioria dos brasileiros está fora do radar dos que foram às ruas de 2013 para cá. Sem incorporá-los, será impossível transformar o país.
Diante dessa situação, de partidos velhos resistindo ao novo, e de movimentos sociais novos desprezando a herança do atraso de nosso país, não há por ora um projeto capaz de modernizar o Brasil com reformas que gerem riqueza e sua distribuição. Se não mudarmos esse quadro, pioraremos nos próximos rankings de IDH mundial, tornando cada vez mais difícil a construção de uma civilização melhor aos nossos filhos e netos. Por isso, é preciso anunciar em alto e bom som: procura-se um projeto para um país mais justo.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP
Fonte: Valor Econômico (27/03/17)
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