Não há nenhum grupo a quem entregar o bastão e que nos conduza a um futuro mais radiante
Vamo-nos fixar no Brasil, ignorando por ora a insanidade coletiva que caracteriza o estado do mundo. Afinal, seria demasiado desafiador entender por que o Parlamento russo sancionou a violência doméstica ou os deputados da Romênia tentaram liberar a corrupção até certo nível monetário. Por que será que países com História ilustre, como a Turquia, a Hungria ou a renascida Polônia e sua vibrante economia optaram por regimes autoritários tão primitivos? E os ingleses, sempre acesos, como se deixaram levar pela emoção e aprovaram o mergulho na escuridão fora da União Europeia? Sobre todos esses fatos, e muitos outros, surge um espertíssimo empresário, mas ignorante do mundo da política e, inacreditavelmente, os eleitores do país mais poderoso do mundo o elegem para a Presidência. São tempos sombrios e ameaçadores.
Sujeitos às nossas particularidades, não escapamos dessa marcha delirante. Basta abrir os olhos e ver à nossa volta, das episódicas evidências do cotidiano aos fatos mais impactantes. Somos um país que delicia os antropólogos, os especialistas dedicados às “coisas da cultura” que tentam explicar por que sempre escolhemos o irracional, o inconsequente e o mágico. Mas sua civilidade os impede de usar os termos corretos para designar as oceânicas patetices que conduzem a Nação. Mesmo a cordialidade permanente que nos caracterizaria (assim dizem) não camufla a gigantesca sensação de derrota e fracasso que está hoje fincada no fundo de nossos corações – a generalizada impressão sobre um país que, de fato, não tem futuro.
Como recordar é viver, diariamente observamos exemplos espantosos. Do presidente da República, que seria um especialista em Direito Constitucional, mas não se envergonha de exercer a censura em razão de uma infantilidade que teria incomodado sua esposa. E o outro que era então presidente do Supremo, mas nem ficou corado em “fatiar” a Constituição para proteger a ex-presidente, rasgando ao vivo e em cores a nossa Lei Maior?
E esta recente carnificina num presídio de Natal, quando atemorizados soldadinhos da Força Nacional entraram com contêineres para separar as facções em luta? Assustados, ficamos pensando: não conseguem sequer interromper a selvageria e dar fim à rebelião? São eventos nada educativos, sugerindo que o Estado brasileiro é ficcional e se vão esfumaçando os fundamentos da vida em sociedade.
Pior ainda: qualquer fato ou ação proposta sempre se defronta com duas expressões imobilizadoras tornadas obrigatórias no jargão da política. A primeira exige que “seja ouvida a sociedade”, vaga demanda que sugere democracia, como se esta fosse real no Brasil. E se for iniciativa com alguma implicação social, diversas vozes logo ecoarão:
“Chamem os movimentos sociais!”. É outra ficção, mas, na dúvida, opta-se por nada fazer. E seguimos entre a inércia e a boçalidade que talvez seja, esta sim, a nossa marca cultural mais distintiva.
Por que somos assim? Por que aceitamos tanta falsidade, tanto cinismo e manipulação com tal serenidade? Por que situações que são acintosamente ilógicas são passivamente recebidas pela população? Por que nos deixamos dominar tão rapidamente pelo autoengano, pelo fingimento e pelo pensamento mágico? Somos, de fato, estruturalmente incapazes de alguma reflexão crítica e, entre nós, a frase de Montaigne sobre o “maravilhoso trabalho da consciência: ela nos faz trair, acusar e combater a nós mesmos (...) nos denuncia contra nós mesmos”, não se aplicaria?
Por que somos assim? Ativado um debate nacional para obter respostas, listaríamos os fatores que são os mais conhecidos. Da baixa escolaridade às recentes raízes agrárias, pois a intensificação da urbanização se desenrolou no último meio século. Da modernidade industrial à extensão dos direitos e ao adensamento democrático, mudanças igualmente recentes. Outros enfatizarão o peso do catolicismo vigente, que exalta a pobreza e a vida comunitária, o que desenvolveria posturas que, na prática, acabam sendo anticapitalistas e inibem o empreendedorismo. Ou, então, heranças patrimonialistas de nossa História e até mesmo o legado de estruturas cartoriais que nos formaram ao longo dos séculos.
Todos esses determinantes, sem dúvida, têm algum peso que precisaríamos avaliar. Mas discutimos escassamente dois outros aspectos que parecem ser igualmente cruciais para explicar esse estado de prostração que atualmente é típico em nossa sociedade. Primeiramente, e ao contrário do que tem sido afirmado, nossas instituições (as formais e as informais) funcionam muito mal, são diáfanas de tão fracas, sem nenhuma robustez e eficácia, existem mais no papel e na retórica, com rala efetividade prática no cotidiano dos cidadãos. Não imagino que seja necessário ilustrar, todos conhecemos sobremaneira a inoperância de nossas instituições. Como adensá-las?
Por fim, o outro grande tema que está exigindo urgente discussão diz respeito à inacreditável indigência que caracteriza as nossas elites, seja no tocante ao seu minúsculo estofo cultural ou, então, em relação à sua incapacidade decisória. Todas elas, da política à empresarial, da educacional à estatal, da Justiça à científica.
Não há grupo algum a quem possamos entregar o bastão e pedir que nos conduza para um futuro mais radiante. Sobre esse tema novamente Montaigne nos inspira: “Para quem não tem na cabeça uma forma do todo, é impossível arrumar os elementos (...) nossos projetos descaminham-se porque não têm direção nem objetivo. Nenhum vento serve para quem não tem porto de chegada”.
Todas as grandes sociedades se consolidaram em função de projetos societários impulsionados sob o comando de elites que conseguiram desenvolver “uma forma do todo”. Ainda veremos essa estratégia transformadora concretizar-se no Brasil algum dia?
Fonte:O Estado de São Paulo (1º/03/17)
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