Por décadas e décadas, o Brasil cresceu economicamente mais pela incorporação de mão de obra que mediante ganhos expressivos de produtividade, e avançou na construção da democracia mais pela “força das coisas” que pela ação conjugada de verdadeiros democratas.
Essas duas constatações me têm levado a martelar dois argumentos que considero essenciais para o bom entendimento da presente crise e de nossas perspectivas num horizonte de dez a vinte anos.
Na economia, ninguém ignora que estamos atolados na “herança maldita” de Lula e Dilma, agravada por uma obtusidade ideológica crônica, só comparável à de nossos vizinhos de fala espanhola. A combinação desses dois fatores poderá levar-nos a uma síndrome destrutiva generalizada, como a que Frederico Fellini pintou com extraordinária beleza em seu filme Ensaio de Orquestra.
O irrealismo com que visualizamos nosso futuro como país chega a ser comovente. Os primeiros sinais de recuperação econômica já nos aliviam, e logo reativarão nosso penchant panglossiano. O controle da “base aliada” pelo presidente Temer nos faz pensar que a política está nos eixos.
Mas a realidade é bem outra. Com essa classe política, com essa estrutura institucional, com os delírios da Constituição de 1988 e com um setor empresarial politicamente agachado, dificilmente veremos um crescimento do PIB por habitante superior a uma taxa anual média de 3%.
A crise dos últimos três anos provocou uma contração de 9% no PIB per capita, reduzindo-o, em números redondos, de US$ 11 mil para US$ 10 mil anuais. Nesse ritmo, levaremos praticamente uma geração para atingir o nível atual da Grécia, e lá chegaremos com desigualdades de renda e condições sociais muito piores. Numa avaliação circunspecta, estamos, pois, falando de um país à beira da insustentabilidade como um ente nacional viável.
Não estou delineando uma tendência inexorável, algo que acontecerá necessariamente. Estou apenas expondo uma profecia racional, na esperança de que ela se transforme numa self-denying prophecy, alertando a sociedade para a necessidade de impedir que ela se concretize.
Como sugeri acima, a democracia brasileira é uma construção paulatina, um processo que remonta ao século 19, que ainda se depara com obstáculos portentosos. Deixando de lado, por óbvias, as questões sociais, o obstáculo mais importante parece-me ser o ideológico. Ideológico, filosófico ou que outro nome se lhe queira dar. Parcelas consideráveis de nossa sociedade se recusam a entender que estamos “condenados” à democracia; que a democracia, necessariamente representativa, tem como fundamento a filosofia política liberal; e que um dos componentes centrais do liberalismo político é o comedimento.
Comedimento? Que quer dizer isso?
Ora, estipulações constitucionais não se autoaplicam, requerem interpretação e avaliação com base em critérios de realismo e prudência. É o senso de proporção a que se referia o nunca assaz louvado Max Weber. Os Estados Unidos são uma democracia liberal, mas Donald Trump é um descomedido. Esse traço de caráter do presidente americano é a fonte principal de uma preocupação (ou premonição) que poucos imaginariam que pudesse surgir naquele país: um sentimento de temor a respeito da própria saúde das instituições democráticas.
Na Venezuela, a democracia sucumbiu ao insano descomedimento de Hugo Chávez e de Nicolás Maduro. Nelson Mandela, ao contrário, realizou o que parecia impossível: justamente por ser um líder realista e comedido, evitou uma guerra civil anunciada e inaugurou uma ordem política relativamente viável na África do Sul. Esses exemplos poderiam ser facilmente multiplicados.
No Brasil, todos percebemos ou pelo menos intuímos que a crise para a qual fomos arrastados pelos governos Lula e Dilma é gravíssima, mas essa percepção não parece atenuar o descomedimento que grassa em certos setores. Na última quarta-feira, um dia útil, sindicalistas contrários à reforma da Previdência paralisaram praticamente as grandes cidades, impedindo que milhões de cidadãos se dirigissem a seus locais de trabalho. Não estou entrando no mérito da proposta em tramitação no Congresso, como eles também não entraram – se o objetivo fosse debatê-la, poderiam tê-lo feito num recinto qualquer de grande porte, num estádio, ou mesmo no sambódromo.
Mas o objetivo era obviamente outro. Era a chamada “ação direta” – quem leu Georges Sorel, Reflexões sobre a Violência, ou outros autores de tendência fascista sabe a que me refiro. Era usar a suposta manifestação como uma demonstração de força bruta. Um ato de violência. Quando tal limite é atingido, as autoridades competentes só podem responder recorrendo a uma força ainda maior, aceitando o risco de fazer muitas vítimas. Compreensivelmente não o fazem, e o resultado é a ordem democrática pisoteada e uma progressiva incrustação do descomedimento no tecido da sociedade.
Nas universidades, o descomedimento aparece travestido de marxismo. De norte a sul, centenas de professores dedicam-se com afinco a preparar a juventude para a “inevitável” revolução socialista. Intelectualmente desonestos, muitos deles sonegam aos alunos a análise das premissas filosóficas do marxismo em relação às demais ideologias; um exame histórico aprofundado do que de fato foram os experimentos socialistas, já amplamente estudados, nem pensar. O que importa é a emoção: o “anseio pela revolução total” a que Bernard Yack se referiu numa obra magistral em que usa essa expressão como título. E assim, recorrendo mais uma vez a Federico Fellini, la nave và.
Fonte: O Estado de São Paulo (18/03/17)
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