5 de março de 2017
Nessa loucura que nos assola deve haver um método. Mas qual?
Se observadas as coisas pela sua superfície, há quem procure remédio para nossos males atuais na remoção imediata do governo Temer, que estaria identificado com ações que visariam a criar obstáculos ao andamento da chamada Operação Lava Jato, em sua intervenção saneadora sobre nosso sistema político. Removê-lo dependeria de uma decisão congressual ou de um ato de força, mas como essas alternativas estão bloqueadas tanto pela larga coalizão parlamentar que o sustenta como pela recusa das Forças Armadas a admitir caminhos de aventura, parece aos interessados na empreitada que não lhes resta outra via que não a de um levante das ruas.
De modo explícito ou em surdina, o argumento ecoa nos meios de comunicação, e não só nas redes sociais, em artigos que não hesitam em cogitar de um colapso iminente de nossas instituições. Importa pouco se em meio a essas fabulações os blocos carnavalescos, até na outrora mais recolhida São Paulo, tenham comemorado as festas de Momo como se não houvesse amanhã. Se a saída não se encontra na política nem nas armas, é deixar o carnaval passar que ela viria pela convulsão social, em embrião nas revoltas do sistema penitenciário e nos motins da Polícia Militar do Espírito Santo.
A convulsão social teria o condão de fazer o que seria inacessível à Lava Jato: zerar a vida institucional – a Carta de 88 incluída – e, bem mais que isso, zerar nossa História e dar a ela um novo começo, com qual programa se veria mais à frente. Para alguns, nestes tempos de Trump, bem poderia ser o da direita, que está aí à espreita e criando musculatura.
O inconformismo com o impeachment era esperado, afinal a presidente Dilma Rousseff fora eleita pelo PT, partido com fortes vínculos com o sindicalismo e movimentos sociais, além de encontrar apoio em círculos significativos da vida cultural. Mas como ele se tem alimentado apenas do espírito de vendeta e do ressentimento, sua marca tem sido a da esterilidade política.
A lenda urbana do golpe, em que pese o processo do impeachment ter transitado sob jurisdição do Supremo Tribunal Federal, mais do que enervar a vida política e social do País, vem servindo como um álibi perfeito para que não se reflita sobre as circunstâncias que levaram ao amargo desenlace do governo Dilma e se mantenha a política na expectativa de soluções salvacionistas, mesmo as que ameacem abrir as portas do inferno.
Os idos do regime militar têm lições que merecem ser lembradas, talvez principalmente pela militância petista e seu amplo círculo de simpatizantes entre os intelectuais. Nos primeiros tempos daquele regime, esquerda e setores democráticos se fixaram no diagnóstico equívoco de que sua derrota se explicaria por uma conspiração do imperialismo em conluio com setores internos a fim de barrar o processo de desenvolvimento do País. Na compreensão da época, o desenvolvimento estaria animado por uma lógica interna tendente a nos levar a um governo nacional-popular sob hegemonia da esquerda.
O trancamento desse processo pela via da violência política foi então interpretado por uma parcela da esquerda como se não lhe restasse outra solução senão a da luta armada, desertando do campo da política. Esse caminho se sustentou numa narrativa escorada numa teoria, a do foco, inspirada no modelo cubano e nos escritos de Régis Debray. A recusa a esse caminho exigia a desconstrução do que suportava essa alternativa, que, longe de abalar o regime ditatorial, o reforçava.
Em 1971 dois economistas brasileiros, Maria da Conceição Tavares e José Serra, produzem no Chile, onde viviam – ela como pesquisadora de um instituto internacional, ele como exilado político –, um pequeno texto seminal, Além da estagnação – uma discussão sobre o desenvolvimento recente do Brasil, de intensa repercussão na época. Nesse texto, seus autores argumentavam que a economia brasileira sob o regime militar, ao contrário de estagnar, crescia a olhos vistos, ampliando a sua sustentação social. O ensaio de Conceição e Serra, recusando o determinismo esquerdista, sinalizava para uma direção oposta da que ele preconizava – a resistência ao regime militar encontraria seu melhor terreno no campo da política. Como se sabe, essa inflexão está na raiz das lutas que nos devolveram à democracia.
Hoje, o imobilismo imperante na reflexão sobre a política entre os quadros dirigentes do PT, boa parte deles prisioneiros do slogan vazio do “fora Temer”, começa a ser contestado, tal como na importante entrevista do senador petista Humberto Costa publicada nas páginas amarelas da revista Veja (edição de 22/2). Diz ele: “O PT foi fragorosamente derrotado. O resultado das eleições obriga a gente a virar essa página. A população não quer isso que está aí, mas também não queria o que estava lá com a Dilma”. E vai fundo ao negar que estaríamos sob a vigência de um estado de exceção, visando, ao que parece, a devolver a seu partido liberdade de movimentos na arena política a fim de tentar recuperar a influência perdida.
A reanimação do campo reflexivo entre os intelectuais e políticos é também animadora na comunidade dos economistas, envolvida na controvérsia suscitada por um dos seus notáveis, André Lara Resende, sobre as complexas relações entre políticas fiscais e inflação, em que um dos temas de fundo versa sobre o papel maior ou menor do Estado na economia, uma questão ainda em aberto não apenas entre os especialistas. Mas, tudo contado, ainda é lento o movimento reflexivo, tal como na economia a retomada de um ciclo expansivo. Enquanto esses movimentos não ganham maior vigor, o que importa é manter os antagonismos em equilíbrio, tema maior de Ricardo Benzaquen de Araújo, notável intérprete da obra de Gilberto Freire, que há pouco, infelizmente, nos deixou.
Fonte: O Estado de São Paulo (05/03/17)
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