A tensão é alta. As delações dos executivos da Odebrecht continuam sob sigilo. Não há previsões sobre quando virão a público. A notícia aparecerá em edição extraordinária, provavelmente por meio de vazamentos que, em realidade, já começaram.
Para os preocupados com o combate à corrupção sistêmica, como se declaram Sergio Moro e Deltan Dallagnol, as delações não trarão grandes novidades. Ficaremos sabendo quem tomou dinheiro nesta ou naquela obra. Para eleitores, não há dúvidas, as informações serão relevantes e influenciarão eleições futuras. Muitas carreiras políticas dependem da memória seletiva dos delatores. Mas tudo que há por saber sobre as relações entre as grandes empreiteiras e os políticos já é conhecido. O modus operandi foi revelado pelas primeiras delações. Toda obra teria uma gordura de 3% sobre o total do contrato, a ser dividido entre o operador da limpeza do dinheiro, o diretor responsável pela obra e o partido político, na proporção 20%-20%-60%.
O esquema não precisa seguir à risca o padrão Petrobras em outras unidades ou esferas do Estado. Variações são menos relevantes do que a estrutura do pacto existente entre alta burocracia, políticos e empresários, sobretudo quando se atenta à forma como a bolada reservada aos políticos era paga: como doações às campanhas. Como afirmou Paulo Roberto Costa em delação premiada, é uma quimera acreditar que empresas fariam doações voluntárias às campanhas eleitorais. Assim, basta examinar as prestações de contas entregues ao TSE para flagrar as relações espúrias mantidas pelos políticos com as empreiteiras.
Quem se der ao trabalho de fazê-lo encontrará algumas dificuldades para organizar os dados, mas esta etapa não é difícil de ser vencida. Os menos dispostos podem consultar os muitos sites existentes que trazem as informações já organizadas. A evidência é gritante, imediata, óbvia e estarrecedora. As grandes empreiteiras financiam todos os partidos políticos, candidatos a todos os cargos e em todos os níveis de governo. Sendo concreto: as campanhas de Dilma Rousseff e de Aécio Neves não apenas foram igualmente irrigadas pelas empreiteiras, como o foram com uma largueza de fazer inveja a um sheik saudita. O investimento tinha retorno garantido: a farra iria continuar independentemente da vontade dos eleitores.
O exame destas informações é suficiente para suscitar dúvidas sobre a disposição das figuras no famoso slide de Dallagnol. Quem deve ser posto no centro? Quem é o chefe da quadrilha? A resposta não é simples e imediata. Atribuir todo mal a um personagem ou partido é um equívoco. Aliás, não é isto que se depreende do qualificativo sistêmico atribuído ao fenômeno?
O conluio entre as grandes empreiteiras e o sistema político brasileiro já veio à tona em escândalos anteriores, como o impeachment de Fernando Collor e a CPI dos anões do Orçamento. Ou seja, a corrupção sistêmica no Brasil se alimenta de um grande acordo entre empresas que vendem serviços ao Estado, burocratas e políticos. O conluio foi reformatado a cada escândalo e alternância no poder, mas manteve sua essência inalterada.
Vistos desse ângulo, os acordos firmados pelas grandes construtoras e o Ministério Público podem ser lidos como a ruptura de um pacto. Sendo cínico, as grandes firmas estão entregando seus comparsas à Justiça para salvar sua pele.
Um acordo de delação envolve uma troca de provas por penas mais brandas. Delações são justificáveis quando o 'bagrinho' pego com a mão na botija entrega o 'tubarão', o maior beneficiário do delito. É este o caso nas atuais delações? Não é óbvio que seja.
O frisson causado pelos vazamentos, a expectativa gerada junto à opinião pública, relegou o perdão embutido no acordo ao segundo plano. O Ministério Público tomou estas decisões de forma unilateral. Fez seus cálculos e considerou que amenizar as penas das empreiteiras e seus executivos viria para o bem do país e que obter provas contra políticos valeria o custo. Quem ganha com o acordo? Ganham os cidadãos e o interesse público?
A Odebrecht ganha com o acordo. As multas sofrerão abatimento e as penas serão reduzidas. A empresa está colaborando e promete se emendar. Cidadãos não foram consultados sobre a barganha. O Ministério Público age com a certeza de saber quais são os verdadeiros interesses da população e como preservá-los.
Burocratas e empresários encontraram formas de escapar da punição aliando-se ao Ministério Público e ao Judiciário. Visto pelo ângulo da classe política, trata-se de uma verdadeira traição, uma quebra da regra de ouro do silêncio, que sustenta alianças criminosas.
Nesta luta por salvar a própria pele, políticos têm seus trunfos: são eles que aprovam as leis. No clima de "cada um por si" em que o Brasil se encontra, é razoável supor que a classe política recorrerá às armas à sua disposição. Não foi outro o objetivo da operação impeachment, comandada com a desfaçatez habitual por Eduardo Cunha.
O grande líder da operação saiu de cena. Potenciais sucessores, como Romero Jucá, Renan Calheiros e outros menos capacitados, tiveram fim menos inglório, mas foram igualmente abatidos. A tarefa, ao que tudo indica, está confiada aos recém-eleitos presidentes da Câmara e do Senado. O tempo dirá se estão à altura (ou baixeza) da tarefa que lhes cabe. Os nomes de ambos, não por acaso, figuram na delação vazada.
Não se deve estranhar que políticos lutem por sua sobrevivência. Diretores da Petrobras descansam em seus sítios e casas de veraneio, alguns até sem as incômodas tornozeleiras. As empreiteiras, de sua parte, continuarão a operar no mercado de obras públicas e seus executivos logo estarão de volta ao convívio com seus entes queridos. Políticos, contudo, são os únicos que ainda buscam uma saída. De um tribunal, mais efetivo e exigente que o comandado por Sergio Moro, eles não escapam: o das urnas.
(*) Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap
Fonte: Valor Econômico (06/02/17)
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