Há cem anos, no 8 de março de 1917 (23 de fevereiro, no antigo calendário juliano), manifestações pelo Dia Internacional da Mulher combinaram-se à paralisação dos operários da fábrica Putilov, em Petrogrado (São Petersburgo), arrastando à greve quase todos os trabalhadores industriais da capital do Império Russo. No 11 de março, as forças militares convocadas pelo czar a suprimir o movimento negaram-se a bater nas mulheres, que compunham o núcleo das marchas de protesto, e começaram a se amotinar. Tumultuosos dias depois, abandonado por todos, o czar renunciou. A tormenta prosseguiu, sob outras formas, até a tomada do poder pelos bolcheviques (comunistas), em 7 de novembro (25 de outubro). Do desenlace, nasceu o principal mito político do século XX: a Revolução Russa.
Um mito não é uma falsificação, mas uma narrativa que condensa valores e reflete uma determinada visão de mundo. No mito da Revolução Russa, cristalizou-se a ideia da transição inevitável do capitalismo ao socialismo. A narrativa dominante dos eventos de 1917 estendeu até outubro a insurreição popular de fevereiro e descreveu todo o processo como um produto de uma implacável lógica do desenvolvimento histórico.
A História é escrita pelos vencedores? No caso da Revolução Russa, a sentença banalizada (e discutível) ajuda a entender a configuração da narrativa dominante. O assalto ao Palácio de Inverno, na noite de 7 para 8 de novembro, foi conduzido por tropas do regimento de Petrogrado e pelos marinheiros da base de Kronstadt, que obedeciam ao comando dos bolcheviques. Lenin, Trotsky e seus camaradas não chegaram ao poder à frente de manifestações populares insurrecionais como as da Revolução de Fevereiro.
Os líderes mencheviques tinham a verdade factual de seu lado quando acusaram um “golpe de Estado” bolchevique. Mas os vencedores tiveram sucesso no empreendimento de contar a história de outubro como um prosseguimento de fevereiro. O governo bolchevique nunca representou a vontade majoritária, como se constata pela composição da Assembleia Constituinte eleita em 25 de novembro, na qual os bolcheviques e seus aliados tinham apenas 30% dos deputados. A implantação da ditadura, pelo fechamento forçado da Constituinte, após 13 horas de sessão, semeou o terreno da guerra civil.
A comunista polonesa-alemã Rosa Luxemburg criticou acidamente o ato fundador da ditadura bolchevique (“A liberdade é sempre, exclusivamente, a liberdade dos que discordam de mim”), antevendo o caminho que levaria ao stalinismo. A História é escrita pelos intelectuais, o estamento social que dispõe de tempo e recursos para produzir narrativas, não necessariamente pelos vencedores. Como a maioria dos intelectuais do século XX, ao menos no Ocidente, deixou-se seduzir pelo marxismo, o relato bolchevique sobre a Revolução de Outubro sedimentou-se na forma de uma verdade literária quase indiscutível.
A inevitabilidade histórica do triunfo bolchevique complementa a narrativa arquetípica da Revolução Russa. Na Petrogrado de 1917, a Humanidade estaria ensaiando o passo seguinte (a “revolução proletária”), numa sequência evolutiva deflagrada pela queda da Bastilha, na Paris de 1789 (a “revolução burguesa”). A Rússia, “elo mais fraco da cadeia imperialista” (Lenin), serviria de modelo para as revoluções na Europa. No grande esquema histórico, os tiros de festim do cruzador Aurora, no Rio Neva, diante do Palácio de Inverno, marcariam a hora zero da substituição do capitalismo pelo socialismo.
Toda a narrativa exclui o acaso, a circunstância. Mas a Revolução Russa foi o fruto de uma série de acasos. O chamado “ensaio geral”, em 1905, derivou da derrota na guerra contra o Japão. A crise que demoliu o czarismo resultou do colapso social e político provocado na Rússia pela Grande Guerra. A Revolução de Outubro, especificamente, decorreu do controle político bolchevique sobre uma guarnição amotinada de soldados que recusavam a transferência para o front.
A “revolução proletária” jamais seguiu adiante. Na Alemanha, em 1918-19, a maioria dos trabalhadores industriais optou pelos social-democratas, não pelos comunistas, tanto nos conselhos (sovietes) quanto nas eleições para uma Assembleia Constituinte. O fracasso da insurreição alemã cerrou a via da revolução europeia na qual os bolcheviques depositavam suas esperanças. Um estranho “socialismo” espalhou-se pela Europa Oriental no imediato pós-guerra, levado pelo avanço do Exército Vermelho sobre os territórios submetidos à Alemanha nazista. Quatro décadas mais tarde, em 1989, revoluções populares derrubaram os regimes comunistas, fazendo a história “girar para trás”, do socialismo ao capitalismo. As “leis históricas” marxistas revelaram-se desastrosamente inacuradas.
O que a esquerda anticapitalista aprendeu com 1989? Uma facção, talvez a mais significativa, trocou a meta do socialismo estatista pelo caminho pragmático — e, sobretudo, rentável — do capitalismo de Estado. Mais à esquerda, emergiram correntes minoritárias que propõem, confusamente, uma “alter-globalização” — e que replicam os métodos de “ação direta” nascidos no amargo rescaldo das revoltas de 1968. Finalmente, no campo político-acadêmico, difundiu-se um rancor com a própria história, essa velha senhora que se rebelou contra as “leis da História” e seguiu veredas tão diferentes das profetizadas. A tentativa de revolucionar o currículo escolar brasileiro, pela abolição da “História ocidental”, foi uma manifestação singular desse rancor. Se a História não se curva ao nosso desejo, nós a condenamos ao pelotão de fuzilamento! — eis a mensagem desses intelectuais traídos pelo proletariado.
A Rússia reinstalou a velha bandeira czarista, e o inacreditável Boris Yeltsin chegou a propor que se desse “um enterro cristão” ao cadáver embalsamado de Lenin. Mesmo assim, cem anos depois, 1917 não terminou.
fonte: O Globo (23/02/17)
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