Uma combinação de mudanças fez emergir no mundo, com enorme força, o discurso mágico como forma de salvar a política. De um lado, a potência dada aos cidadãos pela ampliação inédita da informação e pelo aumento dos canais de participação/discussão. De outro lado, a incerteza crescente derivada da desigualdade, do choque causado pelo contato cotidiano com pessoas e visões de mundo diferentes, do medo da violência e do terrorismo, além da perda de status nas classes médias tradicionais. A soma dessas duas situações tem um resultado certeiro: os cânones da democracia estão em xeque.
O principal sinal desse problema está no surgimento de líderes chamados agora de populistas. Mas é preciso, antes de falar deles, entender que eles respondem a uma demanda social efetiva, resultante da combinação das potencialidades e incertezas citadas acima. As pessoas têm cada vez mais fontes de informação e capacidade de vocalizar publicamente suas opiniões, mas se sentem cada vez mais inseguras e desejosas de uma solução ou de alguém que possa lhes trazer um porto seguro, onde possam estar apenas com aqueles que concordam e confiam.
Parte importante do mundo ocidental, na verdade, vive tanto um choque em suas expectativas sociais e econômicas, como do ponto de vista cultural. Nesse sentido, se quer não só melhorar o padrão de vida como recuperar um suposto modelo de sociabilidade perdido. Mais e melhores empregos, para os pais os para os filhos, são requeridos, mas também se deseja garantir a identidade grupal, expelindo tudo aquilo - pessoas ou ideias - que é diferente.
Um elemento decisivo para alimentar esse estado de coisas é a revolta contra os políticos em várias partes do mundo. Obviamente que os sistemas representativos têm dado seu grau de contribuição para isso, com escândalos de corrupção, oligarquização dos partidos, dificuldade de tornar a política mais transparente, além de governos que não têm conseguido mudar as situações de desigualdade e estagnação dos grupos e classes sociais. O problema é que muitos, em nome de alterar esse quadro, têm optado cada vez mais pelo discurso antipolítico e por lideranças que prometem soluções rápidas e simples (ou simplistas) para desafios extremamente complexos.
É daí que nascem os novos populistas, bradando contra a globalização, os imigrantes e toda sorte de intempéries que se colocam contra o "homem comum", para usar o termo que mais repetem. Nessa proposta, destaca-se a crítica feita a três alvos: a ciência, a mídia e as instituições democráticas.
Os especialistas são vistos como obstáculos à melhoria de vida do "homem comum". Como li outro dia num desses blogs da direita populista, o saber científico só pede sacrifícios que impedem o livre desenvolvimento das pessoas. Primeiro, dizem os que alimentam o discurso populista, as ações contra a mudança climática - sempre questionada por uma minoria de cientistas e uma maioria de palpiteiros - prejudicam a economia e os empregos. Depois, as evidências científicas atacam cânones do modo de vida ocidental, como a civilização do automóvel e o porte de armas. E ainda, para piorar, uma parte relevante das ciências humanas, mesmo quando composta por membros que discordam entre si, afirma que as mudanças sociais e políticas são incrementais, exigindo tolerância em relação às opiniões divergentes e pedindo cautela contra soluções mágicas.
O modelo científico, na célebre definição de John Stuart Mill, exige parcimônia, algo que é o contrário do caldo de cultura populista, baseado na polarização e na ânsia por respostas definitivas. Um tipo de raciocínio sem evidências científicas e marcado por causalidades espúrias e simplistas ganha força. Os primeiros dias do governo Trump são típicos desse sentimento anticientífico. Se a maioria dos terroristas é formada por muçulmanos, que se impeça a chegada de qualquer um deles aos Estados Unidos. Tratados comerciais bons são aqueles que geram empregos no meu país - afinal, as empresas são americanas e não multinacionais. Como tenho, pensa Trump (sic), as maiores Forças Armadas do mundo, não preciso agradar nenhuma nação e todas se renderão a mim. Paro por aqui, porque a lista de incongruências lógicas dos trumpistas e afins (em todo o mundo) é tão extensa quanto fascinante em seu apelo popular.
No fundo, a visão populista constrói uma dicotomia entre especialistas e povo. Os bons governantes devem ouvir os anseios e as opiniões do "homem comum", que entendem como realmente as coisas acontecem na realidade. Já os cientistas, esses "especialistas sem espírito, sensualistas sem coração", como diria Weber, vivem encastelados em seus mundos ou beneficiam, com suas teorias, apenas os poderosos. Evidentemente que formas tecnocráticas de agir não esgotam as energias de uma democracia, e podem mesmo ser perigosas caso não sejam controladas. Os cidadãos precisam ser ouvidos e são a última opinião em qualquer decisão coletiva, inclusive para escolher entre opções técnicas, como em políticas econômicas ou tributação.
No entanto, a ciência é uma conselheira indispensável para que o eleitorado e os governantes optem por melhores políticas públicas. Imagine se o senso comum dominasse a política de Saúde, se os professores ensinassem aquilo que o pai de cada um quer (como se fosse possível essa equação), se o governo pudesse gastar tudo o que quisesse ou se não tivéssemos tecnologia (que exige conhecimento científico) para distribuir informação. Aliás, o paradoxal é que foi o avanço científico-tecnológico que permitiu a expansão e a publicização do arsenal de bobagens contra a ciência, pela via da internet. E não se espante se nas redes sociais parte dos trumpistas e seus similares brasileiros não acreditarem que o homem foi à Lua....
A mídia é outro alvo preferencial dos novos populistas. Evidentemente que a imprensa não é perfeita e nunca será, pois é feita por seres humanos. Há interesses e visões de mundo que guiam os jornais e tais concepções não esgotam a verdade das coisas. Ademais, é preciso ter maior competição e pluralidade nos meios de comunicação em todo o mundo e no Brasil. E como me disse certa vez o maior jornalista que conheci, Celso Pinto, se o povo soubesse como as salsichas, as leis e os jornais são feitos, não os consumiria.
Com todos os seus defeitos, a mídia ainda continua sendo muito importante para a democracia. Inclusive porque ela admite a autocrítica e a autoironia (como na frase acima), algo que o modo de pensar populista não suporta, porque se alimenta do sectarismo e das soluções mágicas. E mesmo levando em conta todas as falhas da imprensa, ela tem condições de exercer um contrapeso aos governos, que nem sempre será a posição mais correta do mundo, como também não será o único freio ao poder. Mas, sem dúvida alguma, as sociedades que tiveram maior sucesso democrático devem parte disso a repórteres que descobrem Watergate ou entrevistam motoristas que falam sobre os segredos do poder. O que Trump e outros candidatos a esse perfil não querem é ouvir o contraditório, que haja investigação sobre os fatos. Em suma, desejam somente ser tratados como o apresentador do Programa da TV, cuja plateia vibra quando ele humilha o povo e demite os participantes.
O ataque mais perigoso derivado desse sentimento populista dirige-se às instituições políticas. A democracia depende de um ritual institucional que pode ser chato, por vezes parecer lento demais, mas que garante a pluralidade de opiniões, a construção de consensos possíveis e a defesa dos acusados. O espaço para o dialogo, para a mudança de posição e até para fazer alianças com antigos adversários está no DNA dos sistemas representativos. Em épocas de crise como a que vivemos no mundo, e com grande força no Brasil da "Lava-Jato", tais características do modelo democrático podem ser colocadas em xeque em nome de soluções mais rápidas e que busquem um líder enérgico, quando não autoritário.
Embora os principais políticos populistas atuais estejam, por ora, seguindo os tramites do jogo democrático, suas críticas institucionais, como as de Beppe Grillo na Itália, corroem a arquitetura do sistema político sem propor uma nova estrutura. Isso alimenta o sentimento de parte relevante dos cidadãos pelo mundo que quer heróis, líderes que sejam capazes de passar por cima de toda formalidade para alcançar os resultados esperados.
A democracia exige paciência, tolerância, dá muito trabalho e nunca resolverá todos os problemas humanos. Mas oferece caminhos para soluções baseadas na argumentação embasada e posta à prova pelo diálogo e pelo voto constante. No começo do século 20, alguns pensadores se colocaram contra essa concepção política. Carl Schmitt criticava a lerdeza dos Parlamentos e dizia que o soberano tinha de ter mais poder para o povo realizar-se nele. Outro escritor de menor calibre viu a solução mágica nos pensamentos do "homem comum", e odiava intelectuais e a imprensa. Foi com esse discurso que ele chegou ao poder na Alemanha. Deveríamos nos lembrar disso quando acompanhamos o debate político atual.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP.
Fonte: Valor Econômico (10/02/17)
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