Haverá ainda a chance de (re)construir no Brasil um campo político social-democrata?
Em meio às crises e incertezas do presente, pode parecer estranho voltar os olhos para o passado aparentemente longínquo. Mas é o que farei aqui, por motivos que espero deixar claros ao final.
Neste mês a Revolução Russa faz cem anos. Ela começa com a deposição do czar Nicolau II, em fevereiro, e desemboca na insurreição bolchevique de outubro de 1917. Vitoriosos, os bolcheviques dissolvem a Assembleia Constituinte recém-eleita, na qual são minoritários, e começam a implantar a “ditadura do proletariado”, que logo revelaria ser a tirania do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética e, finalmente, de seu secretário-geral, Josef Stalin.
Não é preciso idealizar o processo eleitoral que levou à Assembleia Constituinte para concluir que a insurreição bolchevique sepultou as possibilidades democráticas criadas em fevereiro de 1917. Essa é uma história conhecida, que se desdobrou em brutal repressão dos dissidentes; massacres e catástrofes humanitárias; campos de prisioneiros e trabalho forçado, os conhecidos gulags; falsificação histórica e judicial em larga escala, exemplificada pelos “processos de Moscou” – todos eles episódios “edificantes” do período stalinista. A União Soviética terminou melancolicamente em 1991.
Menos conhecida, mas muito mais fértil em sua contribuição à humanidade, é a história de outra esquerda, reformista e democrática, que começa a nascer exatos 20 anos antes da Revolução Russa. Suas origens se encontram na chamada polêmica revisionista, que entre 1896 e 1898 sacudiu o Partido Social-Democrata alemão. Sintomaticamente, poucos na esquerda latino-americana conhecem a obra intelectual e política de Eduard Bernstein, que abriu dissidência contra o dogmatismo doutrinário do maior partido marxista da Europa na virada do século 19 para o século 20.
Em Socialismo Evolucionário, Bernstein faz a defesa política da opção reformista com base na crítica à tese de que tendências intrínsecas ao desenvolvimento capitalista – crescimento e pauperização do proletariado, de um lado, e concentração da propriedade e da riqueza nas mãos da burguesia, de outro – tornariam a destruição do sistema pela revolução não apenas desejável, como inevitável. Esse filho de maquinista de trem, autodidata, expôs com rara coragem intelectual e política o principal calcanhar de Aquiles do marxismo – a sua filosofia da História – valendo-se de dados empíricos disponíveis à época.
A observação da realidade, sem a viseira doutrinária, mostrava não estar ocorrendo nos principais países da Europa nem a pauperização do proletariado, nem a “simplificação” da sociedade em duas classes sociais antagônicas. Não apenas as “leis do desenvolvimento do capitalismo” não se confirmavam na prática, como também o Estado não se cristalizava em “comitê central da burguesia”, frase famosa do Manifesto Comunista. Bernstein anteviu que a ampliação do direito de voto, por pressão social, aumentaria a participação dos partidos social-democratas nos Parlamentos e sua influência nas políticas de governo. Anteviu também que, num ambiente de maior liberdade, a luta sindical dos trabalhadores seria fortalecida. O caminho era o aprofundamento da democracia, não a insurreição proletária.
Neste ainda início do século 21 a social-democracia está em crise. O mundo em que se tornou força dominante na Europa e dali irradiou sua influência não mais existe. As sociedades tornaram-se muito mais heterogêneas do que mesmo a crítica ao dogmatismo marxista poderia imaginar.
Os Estados nacionais perderam graus de autonomia ante a mobilidade internacional do capital produtivo e financeiro. O financiamento dos Estados de bem-estar se vê ameaçado por mudanças produtivas e demográficas. O nível de sindicalização dos trabalhadores despencou e os partidos social-democratas europeus não conseguem ancorar-se em novas bases sociais.
Como o mundo mudou e não mais voltará a ser o que era, a social-democracia vê-se diante do desafio de dar respostas novas. Mas elas devem ser consistentes com os valores que a distinguem historicamente não apenas da esquerda não democrática, senão que também do liberalismo. A social-democracia e o liberalismo (econômico e político) são responsáveis pelos maiores avanços civilizatórios já realizados. Não são, porém, a mesma coisa. Por ser tributária da tradição de lutas sociais da esquerda, a social-democracia tem uma visão mais realista sobre as relações complexas e por vezes conflituosas entre capitalismo e democracia e um compromisso maior de responder com políticas de governo aos processos de transformação econômica geradores de maior desigualdade e exclusão social. Tem, além disso, maior sensibilidade aos temas da sustentabilidade ambiental. Num mundo onde a desigualdade social aumenta, o desemprego produzido pelo avanço tecnológico se amplia, os riscos ambientais à qualidade de vida e a própria sobrevivência da espécie humana se elevam, a social-democracia tem espaço para voltar a crescer, se conseguir reinventar-se mantendo os elos com os valores de sua própria tradição.
Guardadas as peculiaridades nacionais, a afirmação aplica-se ao Brasil. Aqui, desse ponto de vista, o quadro não é animador. O partido que leva a social-democracia no nome, e a incorporou às políticas de governo na Presidência de Fernando Henrique Cardoso, dela se tem afastado, na ausência de qualquer reflexão programática e por cálculos eleitorais e parlamentares de curto prazo. Já o PT, que sociologicamente, por sua base sindical e popular, poderia ter-se convertido num partido social-democrata, saltou do sectarismo inicial para um pragmatismo sem limites, embalado pelo carisma do seu líder máximo e por ideologias retrógradas, quando não antidemocráticas.
Fica a questão: ainda haverá chance histórica, no Brasil, de (re)construir um campo político social-democrata?
Fonte: O Estado de São Paulo (18/02/17)
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